Pesquisar este blog

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Profissão de Fé - Parte 2



Profissão de Fé – parte 2
por Gustavo Macedo
Fonte:  Reformador (FEB) a partir de 15 de Abril de 1905
7
                   Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas, porque sois semelhantes aos sepulcros branqueados, 
que parecem por fora formosos aos homens e que por dentro estão cheios de ossos de mortos e toda a asquerosidade: Assim também vós outros por  fora  vos  mostrais, na verdade, justos aos homens, mas, por dentro estais cheios de hipocrisia e iniquidade. (Mateus XXIII vv. 27-28). 

            Os versículos acima citados têm aplicação perfeita às ordens religiosas. O povo vê apenas naqueles homens, vestidos de hábitos monásticos, santas e abnegadas criaturas, que morreram para o mundo e suas ambições, a fim de viverem para Deus, edificando os homens com o exemplo de suas virtudes.

            No entanto, não poucas vezes, os pontífices e os bispos têm extinguido e pedido extinção de ordens religiosas, por serem focos de desordens e desmoralização.

            Clemente XIV extinguiu em todo o orbe a Companhia de Jesus, proibindo aos seus membros administrar ao povo o sacramento da penitência (confissão) e pregar sermões. Temos em vista tratar do nosso país de preferência; por isso vamos dar uma amostra de viver angélico das nossas comunidades religiosas, cedendo a palavra às autoridades eclesiásticas.

            O que se segue é tirado da Revista Catholica, que se publicava nesta Capital, fascículos 1 e 2, de 1 e 15 de julho de 1896.

            “Logo no relatório de 1854, meses depois de tomar conta da pasta da justiça, Nabuco exprime-se desta forma em relação aos conventos:

            “Os conventos se acham pela maior parte em estado deplorável quanto a disciplina e administração; alguns estão abandonados e sem culto divino, entregues a um só religioso, que desbarata ou não aproveita os seus ricos bens, e vive sem inspeção alguma;  outros conventos mais numerosos dão o triste espetáculo da intriga que os dilacera, com prejuízo de sua santa instituição, e essa intriga procede em geral, como sou informado, das cabalas que sem pejo de somonia ai se agitam por amor aos cargos; providências enérgicas são urgentes para restituir os conventos à sua santidade primitiva, a fim de que se não tornem focos de imoralidade, sendo preciso que neles penetre a polícia, como aconteceu no convento da Maranhão.”

            Depois de enumerar as medidas que julga necessárias, no ano seguinte, 1855, reitera os mesmos pontos e expede a circular seguinte, muito citada e pouco conhecida.

            - Ministério dos Negócios da Justiça. Rio de Janeiro, em 19 de maio de 1855.

            S.M. o Imperador há por bem cassar as licenças concedidas para a entrada de noviços nessa Ordem Religiosa, até que seja resolvida a Concordata que a Santa Sé vai o Governo Imperial propor.

            Deus guarde a V. P. Rev.ma. - José Thomaz Nabuco de Araujo. - Sr. Provincial dos Religiosos Franciscanos da Corte. (Na mesma conformidade às demais Ordens Religiosas do Império).

            Nabuco consultou a opinião dos prelados sobre a resolução do governo.

            Ouçamos um pouco o que diziam os bispos sobre o estado dos conventos.

            O bispo de S. Paulo escrevia a Nabuco, em outubro de 1853: “No estado em que se acham (os frades) não é serem inúteis, são muito prejudiciais.” Pede a secularização dos religiosos, uma diária para cada um e a ronda, para mestre de seminários, de Redentoristas, Dominicanos, Lazaristas e religiosos de S. Felipe Nery.

            O bispo do Pará, atesta “o estado de decadência de algumas ordens, entre as quais a do Carmo do Belém era governada por um único religioso, que desfrutava um patrimônio de mais de trezentos escravos.[1]

            O de Mariana, D. Antônio, dizia ser impraticável a reforma do clero. Mandado reformar os carmelitas da Bahia, quase não achou quem nomear prelados.

            Refere que o arcebispo lhe dissera: davam-lhe mais que fazer três ou quatro conventos de freiras que todo o resto do bispado.

            O arcebispo da Bahia, D. Romualdo, demorou a opinião para depois que presidisse o capítulo da congregação beneditina; achou-a acéfala e anarquizada por uma minoria turbulenta, cabalando para as eleições e afastando do comício os religiosos prudentes e sérios.

            O do Rio Grande era contrário à jurisdição dos bispos, alegando ter murchado o convento do Carmo reformado por ele, e os de freiras sujeitos aos ordinários das dioceses.

            A opinião do internúncio, concorde com a dos bispos, desejava reunir os religiosos esparsos, quatro nos conventos pequenos, e dez nos das capitais, vendendo os prédios rústicos e convertendo-os em apólices.

            Dada a resolução do Conselheiro Nabuco, no Brasil, por mais de meio século não se realizaram solenidades de profissões religiosas.

            A Constituição Federal, tendo proclamado a liberdade religiosa, deu às congregações o direito de se renovarem. Os antigos religiosos não tinham esse desejo; queriam gozar os patrimônios a seu bel prazer, desbaratando as rendas em benefício dos... parentes.

            Os conventos viviam das tradições primitivas, celebrando as festas dos oragos.

            Em certo mosteiro desta Capital eram famosos os banquetes, de preço de cinco e seis contos de réis, onde parte dos numerosíssimos convidados acabavam embriagados, despejando com prodigalidade a retórica da sobremesa.

            A Santa Sé, vendo que a morte do último religioso ocasionaria a transferência de seus patrimônios para o governo, distribuiu os conventos pelas seguintes congregações: a ordem beneditina coube em partilha a congregação de Beuron, composta de belgas e alemãs. A carmelita divide-se em três províncias: Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro: está dividida entre frades holandeses e espanhóis.

            A franciscana - Bahia e Rio de Janeiro - pertence aos alemãs.

            A entrega dos conventos aos religiosos estrangeiros não foi feita sem resistência.

            Os leitores devem se lembrar da questão de S. Bento, aqui na Capital.

            Em S. Paulo está suspenso e talvez excomungado um carmelita, que opôs embargos judiciais à posse dos conventos de sua ordem por parte dos carmelitanos holandeses.

            Acima ficou dito: certos bispos entendiam ser necessária a vinda de religiosos para a restauração das ordens, por serem relaxados os velhos brasileiros. Pois bem: os vindos de fora em nada são melhores que os nacionais, como veremos; são, pelo contrário, menos caritativos e muito ambiciosos.

            Fiquemos por aqui, para não alongar este escrito. No próximo número tornaremos ao assunto.
8
               Pouco adiantam o hábito e a tonsura; os costumes apurados, as paixões totalmente mortificadas, eis o que faz o verdadeiro religioso.  “Da Vida Religiosa” Imitação de Cristo, Liv. I, cap. XVII).
                 Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho,  e então verás como hás de tirar a aresta do olho de teu irmão.  (S. Mateus: cap. VIII, v. V).

                Em nosso artigo passado vimos que o bispo de S. Paulo era de parecer viessem da Europa religiosos para a reforma de nossas ordens.

            Vimos também que esse desideratum foi obtido por intervenção direta da Santa Sé, que partilhou a seu talante os ricos patrimônios das nossas congregações. Por informações obtidas, sabemos que os seus bens podem ser avaliados pelo mínimo do seguinte modo: os imóveis de S. Bento em cerca de 3 mil contos; os dos carmelitas em mil contos; os da Ajuda em mil contos, e os de Santa Teresa em trezentos contos. O de Santo Antônio possui trezentos contos em apólices, e até bem pouco recebia o provincial o soldo de Santo Antônio, que era Alferes do exército brasileiro. É sabido: em geral as ordens religiosas são ricas, e na França uma grande parte da riqueza estava com as comunidades.

            Dizíamos pois: o desideratum do bispo de S. Paulo (e de muitos outros católicos também) foi obtido. Todos os conventos, como já vimos anteriormente, estão entregues a congregações europeias, que desfrutam seus patrimônios, e nem disfarçam a preocupação nativista que os caracteriza. Evitam o mais que podem o ingresso de brasileiros nas ordens, não admitem pessoas de cor e mestiços. Quando éramos postulante da ordem franciscana, disse-nos um dia o superior geral do Brasil:

            “-Você não é um mal sujeito, porém não é alemão.”

            O falecido abade de S. Bento nos referiu muitas vezes ter mandado moços para noviços de sua ordem, e todos voltaram desolados dos conventos, quase nus, e queixosos da brutalidade de trato dos reformadores europeus! Os leitores devem saber: clero católico quer dizer universal, logo, a denominação de clero alemão, francês, italiano ou nacional é inteiramente descabida. Acusam o clero nacional de devasso e relaxado, no entanto, temos exemplos frisantes de que os reformadores não são santos, e de que a história de suas ordens na Europa e na América não é das mais edificantes.

            Na história do ministro da justiça Euzébio de Queiroz, foram deportados dois capuchinhos, um pela prática de atos que tornaram tristemente célebres as cidades bíblicas de Sodoma e Gomorra, outra de furto a uma viúva sua penitente. Mais tarde, no mesmo hospício dos capuchinhos houve cena escandalosa, pois um religioso resolveu investir, armado de faca, contra o seu superior. No convento de S. Bento, o bondoso e último abade brasileiro teve necessidade de tomar sob sua proteção um religioso estrangeiro, acusado e perseguido pelos seus companheiros, que afirmavam existirem no perseguido intuitos sinistros e sanguinários. Esse homem morreu fiel e dedicado ao referido abade protetor. Um cônego, membro do cabido metropolitano, já nos afiançou não ser impecável a conduta dos Lazaristas franceses, quando dirigiam o seminário. Certo padre francês, que aqui houve, foi suspenso de ordens por celebrar duas missas diárias, o que constitui gravíssimo pecado. Na França alguns irmãos maristas têm sido arrastados aos tribunais pelo crime de atentado ao pudor. O mesmo se deu no Chile e na República Argentina com os dominicanos docentes.

            Os leitores se devem lembrar: o clero regular e secular são rivais; pois bem, são também rivais as ordens religiosas.

            O ciúme das congregações é antigo. Deu até motivo para a apostasia de Lutero. 

            Quando Leão X vendia indulgências para o acabamento da igreja de S. Pedro, encarregou desse negócio o monge dominicano Tetzel. Lutero, não só indignado com o espetáculo da traficância, mas ainda por ser monge agostiniano, e por isso adversário dos dominicanos, ao voltar de Roma fez afixar às portas da igreja de Wittenburg as célebres noventa e cinco proposições a respeito das indulgências, por contrárias ao dogma da graça.

            Tetzel respondeu publicando cento e dez proposições contrárias às de Lutero.

            Era o começo da Reforma.

            Os dominicanos são também rivais dos jesuítas, por causa do dogma da graça, e sobre este assunto têm escrito bibliotecas.

            Fiquemos por aqui.

            No próximo número trataremos do nosso convento, particularizando o que lá se fazia.

            Antes, porém, de entrar no assunto, será, talvez interessante - e os leitores no-lo permitirão - que descrevamos em ligeira síntese o nosso estado mental, de verdadeiro louco, que outra coisa não é o misticismo vulgar. Oxalá o nosso triste caso sirva de instrução, não só a nós, como a muitas outras criaturas que sem cautela se abeiram do abismo terrível do fanatismo clerical.
9 
                    A fé inabalável é somente aquela que pode encarar a razão face a face em todas as épocas da humanidade. (Allan Kardec)

            Quando éramos criança, foi chamado para tratar-nos de uma enfermidade um abalizado clínico da nossa cidade. Dado que já éramos a tomar parte de atos religiosos, o médico disse a nossa mãe, à cabeceira do leito;

            - Evite a convivência deste menino com padres, quando não ele quererá ser sacerdote.

            Nossa progenitora não deu atenção às palavras sensatas do médico, e fomos crescendo e nos afazendo à vida cultual.

            Nossa família não tinha devotos; nossos pais eram livre pensadores; não entendíamos, por nossa parte, a significação moral dos atos religiosos, mas gostávamos de aparecer amortalhado nas batinas vermelhas e negras, ornado com a alva sobrepeliz, figurando nas missas e nas solenidades religiosas, como cumprimário do teatro católico. Éramos uma miniatura do padre Salgueiro, de Eça de Queiroz.

            Nada víamos que nos edificasse. Éramos profissional da devoção, e começamos também a auferir lucros do nosso papel de sacristão.

            O espírito ia-se assim predispondo para a loucura mística - que não tardaremos a descrever ao leitor, como objeto de estudo psicológico.

            Quando ficamos mocinho, já não éramos simples sacristão, tínhamos subido a mestre de cerimônias; apuramos mais as vestes sacerdotais, era mais completo o nosso uniforme.

            Em nossa matriz, éramos olhados pelo beatismo com certa consideração e respeito, oriundos da dupla qualidade de meio homem e meio padre.

            Nas solenidades religiosas, era de ver-nos sentado em nosso tamborete[1], dirigindo o pé do altar[2] com todos os rigores da pragmática.

            Certa vez, tinha que entrar a missa solene, a orquestra já terminara a ouverture, e um padre essencial à festa faltara. O vigário nos lançou a mão e fomos desempenhar as funções de sub-diácono[3]. Ao entrarmos revestido da dalmática[4], coberta a cabeça com um barrete, houve uma tal ou qual sensação no templo. Alguns católicos, entre os quais certo doutor em direito canônico e o pregador, censuravam o ato do vigário, por não sermos ordenado. Outros gostaram, acharam natural, e a maior parte ficou indiferente.

            Éramos, pois, o herói do dia, e tivemos desde então um aumento de prestígio religioso. Usávamos a barba raspada e o nosso gesto, o lenço e os trajes eram de um eclesiástico à paisana.

            Nosso espírito começou então a se preocupar com a significação moral das cerimônias religiosas; já nos não bastava acompanhar dentro da tipoia os mortos ao cemitério e aspergi-los de água benta. Começamos a estudar o ritual, a teologia moral e dogmática e a carreira sacerdotal. Nunca havíamos feito, entretanto, a primeira comunhão, e envergonhado disto pela pergunta que a tal respeito nos fizera uma senhora na sacristia, fomos um dia galgando a ladeira do Castelo, nos confessar a um capuchinho, bruto e seco, que invés de nos acolher como um filho que achou o caminho da salvação, se admirou muito pouco cristãmente de nunca termos confessado e comungado! Deu-nos afinal a comunhão na capela do Sacramento, e daí data o início do nosso fanatismo, cujas peripécias vamos contar, e é interessantíssimo. Foi no dia 16 de julho de 1892.

            O homem fanatizado é um ser intratável, por isso que é intolerante. O mundo artificial em que vive, as práticas devotas, a privação das satisfações naturais, o tornam incaridoso, egoísta e sobretudo muitíssimo orgulhosos, por se julgar santo, acima da vil canalha pecadora.

            Esse orgulho se revela no cultivo da maledicência, pois o apontar constantemente faltas alheias é indiretamente fazer o elogio próprio. Nosso pai, homem de espírito lúcido e livre pensador, desgostava-se com esse fanatismo; vendo, porém, que nos tornamos inapto para funções seculares, dignou-se permitir o nosso ingresso no seminário.

            Foi uma grande decepção que sofremos.

            Colocaram-nos entre crianças; a estupidez da vida nos enfarou, nada correspondia às nossas aspirações místicas. Decididamente o clero secular era pouco piedoso, frio: tinha a prova no seu convívio desde a infância.

            Aguardamos a primeira saída, e no fim de dez dias abandonamos aquela casa, onde um moço não podia sair senão acompanhado por um criado, quando muitas vezes era um rapaz independente como nós, que antes do nosso fanatismo - convém saber - vivíamos na pândega, nos teatros.  Voltamos às funções de mestre de cerimônias da matriz. O clero secular não nos induziu a ser padre, porém cometeu a falta de não nos dissuadir desse intuito. Sempre a ausência de sinceridade. Um único padre nos disse:

            - Seja feliz; em breve estará de volta.

            E fechou a frase com uma gargalhada expressiva e gostosa.

            Não tardava a hora em que as portas do convento se nos abriram. Nosso progenitor, quando enfermou da moléstia de que veio a desencarnar, em 22 de julho de 1893, teve antes que se confessar; levamos à sua cabeceira alta noite um padre para esse mister, aproveitando-nos de uma palavra sua de consentimento, para livra-lo das chamas do inferno.  Caía sobre mim a responsabilidade de uma pequena família.

            Mas o fanatismo cruel nos repetia deturpadas as palavras de Jesus - “aquele que não abandonar pai e mãe por amor de mim, não é digno de mim.”

            E estas palavras santas do meigo cordeiro imaculado têm justificado a crueldade da igreja, que arranca desumanamente dos braços de pais aflitos, filhos amados, alegria de lares e arrimo de família, para a inutilidade esterilizadora do fanatismo monacal.


[1]  Banco próprio do altar.
[2]  Padres que tomam parte na festa religiosa.
[3]  O terceiro padre na ordem hierárquica da festa.
[4]  Capa dourada que se põe por sobre as outras vestes, nas missas solenes.

10
               Bem podes envergonhar-te, considerando a vida de Cristo, que tão pouco cuidaste em conformar com a Dele a tua, estando há tanto tempo no caminho de Deus.  (Imitação de Cristo,  Livro I, cap. XXV.)

            Quando a gente trata da loucura, descreve os seus efeitos, porém não define o que ela seja.

            Um dia, um discípulo do grande alienista Esquirol insistiu para que lhe desse uma definição da loucura.

            O médico achou difícil a empresa; convidou o discípulo - era interno do manicômio - para jantarem juntos e então delinearem o estado patológico.

            À tarde, tomaram lugar à mesa o médico, o discípulo e dois convidados. Corria o jantar animado, principalmente pela vivacidade e graça de um dos convivas, em contraste flagrante com o silêncio do outro, que mal se dignava responder às breves perguntas que lhe faziam. Ao terminar o ágape, perguntou o mestre ao discípulo:

            - Qual dos dois te pareceu o louco?

            - O que muito falou durante a refeição.

            - Pois te enganaste. O louco era o silencioso, que, na presunção de grandeza, mal se dignava responder às perguntas. O falador era Balsac! Vede a dificuldade da definição da loucura.

            Apegamo-nos a Esquirol e não definiremos, pintaremos apenas os efeitos da nossa loucura mística.

           Lá já adiantada essa enfermidade, quando em dezembro de 1893 encontramos, no hospício dos capuchinhos, com um religioso franciscano alemão, aguardando paquete para Santa Catarina, onde demorava o seu convento. Agregamo-nos a esse frade, e rompendo todos os laços da família, fazendo atroz violência ao coração, na manhã de 21 de dezembro daquele ano, por entre lágrimas sentidas de uma família desolada, seguimos rumo do Castelo, em busca do religioso em cuja companhia seguiríamos. À tarde, quando o manto da noite descia sobre o mar e a terra, o monstro marinho, que nos conduzia em seu bojo, saía barra fora, afrontando o canhoneio dos irmãos que se digladiavam na inglória luta civil.

            É possível que as balas inimigas matassem nesse momento alguns deles; o fumo do estampido do tiro era o luto antecipado dos que iam morrer; mas não era menos verdade que, no bojo do transatlântico, éramos um ser que agonizava, até que o hábito religioso nos produzisse a morte moral.

            Mas, convém dizer, havia vaidade no ato de nossa abnegação. Amortalhado na estamenha do franciscano, antevíamos a consideração que nos granjearia a condição de frade. Os ósculos de respeito, depositados em nossas mãos seráficas, e os aplausos da turba beata, quando pregássemos pedantesca e teatralmente nos púlpitos da igreja católica, nos traziam, como sempre aí acontece, a vaidade e o orgulho sob o manto hipócrita da humildade. É coisa por nós observada: os padres preferirem a prática de certos atos, quando haja assistentes.

            Querem tocar nos vasos sagrados e nas hóstias, abrir o sacrário, para causarem admiração ao beatismo, que a tem pela função, que julgam sobrenatural, desses homens, cujas mãos sagradas pegam Deus eucarístico, como nós os objetos materiais.

            Depois das peripécias de viagem, oriundas do estado então anormal do nosso país, após uma breve estadia no Paraná, seguimos no vaso de guerra Urano, todo avariado pelas balas inimigas, até S. Francisco, em S. Catarina, e daí até Itajaí. Nesta última cidade, sulcamos o rio deste nome, e, após um dia quase inteiro de viajar, era já noite fechada, quando aportamos a Blumenau, onde estava situado o convento que nos destinaram. Era o dia 29 de janeiro de 1894.

            Ao entrarmos no convento, fomos logo para o refeitório, que era o porão do prédio, cavando-se o solo para ser adaptado àquele mister.

            Ao nosso encontro veio logo uma chusma de padres, enfronhados em hábitos de cor marrom com grossas cordas nodosas caindo da cintura. Era semelhante a um enxame de formigas.

            Fomos acomodados em um quarto junto à portaria. Ao acordarmos no dia seguinte, estávamos picados de mordidelas de mosquitos, prelúdio talvez ou símbolo das picadas morais que teríamos depois a receber.

            Não causou agrado na comunidade a entrada de um postulante[1] brasileiro.

            Começaram por querer que fizéssemos o curso de alemão! A má vontade da congregação, o desprezo mesmo por tudo o que era brasileiro, ao ponto de raros religiosos conhecerem imperfeitamente o português, criou uma verdadeira incompatibilidade de nossa parte pra aprendermos a língua alemã. Os frades eram positivamente inimigos dos brasileiros, chegando no colégio infantil, existente no convento, a existir verdadeiras rivalidades entre alunos por causa da nacionalidade. Note-se: os que se diziam alemãs eram filhos de brasileiros germanizados.

            Não nos deve surpreender essa patriotada, pois o clero teve a habilidade de fazer de Jesus, judeu aos olhos dos homens, um terrível anti semita!

            As crianças eram sujeitas a um conjunto de práticas religiosas, ou, antes, supersticiosas; mas longe estavam de ser carinhosamente tratadas; imperava o regime da vara.

            Andavam descalças, em mangas de camisa, e eram sujeitas até a trabalhos manuais, etc., em resumo, essas crianças, que pagavam a estada no colégio, pareciam antes garotos da rua do que alunos de um estabelecimento de ensino. Tivemos lugar à mesa da comunidade, nós e um bugre que lá havia. Deram-nos, para dormir, lugares que não daríamos a criados íntimos. Acometido muitas vezes de erisipela e febre, não tínhamos a cabeceira um irmão para nos consolar e medicar, e certa vez até nos mandaram um prato de barro cheio de feijão. Mal curado nos levantávamos do leito, e sujeito que nos julgávamos à disciplina da ordem, praticávamos logo o jejum. Não havia quem nos viesse dizer que estávamos dispensado da penitência. As decepções que sentíamos, oriundas da falta de caridade e bondade, eram terríveis: mas o leitor não imagina o triste estado de trevas de um fanático.

            Que fazer? Queríamos ser servo do Senhor; o único convento era aquele, e nós ardíamos pela salvação do próximo.  Um religioso que lá havia, e que de nós tinha rancor gratuito, nos disse pouco antes do nosso ingresso para o noviciado:

            - Gustavo deseja ser religioso e não tem vocação para isso. Tem praticado faltas. Não, me tenho oposto a sua entrada, por escrúpulos de consciência: não quero que digam que contrariei uma vocação...

            - Folgarei de saber as minhas faltas em que consistem.

            - Há pouco tempo um menino rachava lenha, e você se apiedou dele, dizendo ser um trabalho superior às suas forças. O menino mesmo declarou: você achava o trabalho demasiado para uma criança? Nada tinha a ver com isso; ele próprio devia saber melhor as suas forças.

            - E a outra falta, Sr. Padre?

            - Você achou que nosso superior não devia ir à Alemanha receber ordens, quando tínhamos outro superior imediato na Bahia! Grave falta! Eu mais velho não fiz comentários!...

            E desse modo vivia a esmiuçar faltas graves. A intriga medrava assim em campo próprio. Se todos falassem a mesma língua, devia florescer. Em resumo, o guardião do convento teve necessidade de nos declarar que não fizéssemos caso das implicâncias do referido padre. Com esse corriam parelhas os períodos de má vontade que tinha contra nós o cozinheiro, que também era religioso. Deus, porém, em sua misericórdia infinita, deparou-nos um religioso, chamado para mestre dos noviços, em atenção à sua virtude e piedade, o que nos foi alívio e consolo, e era a única exceção em uma ordem, onde a hipocrisia, a dissimulação exterior, acobertavam o egoísmo e a falta a mais absoluta dos rudimentos da caridade cristã. Queríamos, no entanto, ser frade, e pensávamos poder exercer a caridade; os livros estavam cheios de exemplos de religiosos caridosos e bons; e assim, a 8 de setembro de 1894, depois da repugnância do Provincial do Brasil, que nos julgava maculado pela nacionalidade brasileira, como vimos no artigo anterior, recebemos na igreja do convento, sob o nome de Frei Francisco Solanus, o hábito do patriarca S. Francisco de Assis.

[1]  Estado anterior ao de noviço.
11
             O melhor dos livros, que não prega senão a igualdade, a amizade e a concórdia - o Evangelho - serviu, durante séculos, de pretexto aos furores dos europeus. Quantas tiranias públicas e particulares se praticam ainda em seu nome sobre a Terra! (Bernardin de Saint-Pierre, Paulo e Virgínia,  pág. 164)

            O convento tinha todo o conforto necessário. Havia lá oficinas de ferreiro, alfaiataria, sapataria, padaria, e não sabemos que nome devamos dar ao local em que se preparava o excelente vinho de laranja. Nada disso é censurável, porém é inteiramente contrário ao espírito da regra[1] franciscana, que prescreve a mais absoluta pobreza, e até que os religiosos vivam de esmolas. Por isso se chamam mendicantes.

            S. Francisco de Assis ia de escudela em punho, de casa em casa, suplicar os restos de comida para sua alimentação. Os franciscanos, porém, só conservaram do patriarca o hábito exterior.

            Poucos dias antes de nosso ingresso no noviciado, fomos ao irmão alfaiate tomar medida de um hábito velho remendado (consoante às prescrições da regra) para com ele solenemente nos vestirmos na cerimônia de nossa admissão na ordem.

            Três dias antes fomos recolhidos à capela interna da comunidade, a fim nos prepararmos pelos exercícios espirituais para tão grande missão.

            O mestre de noviços, único religioso, apesar de fanático, de alma aberta a todos os sentimentos nobres e generosos, nos apresentou o programa dos exercícios. Tínhamos que ficar inteiramente silenciosos; abstenção completa de recreio; meditações longas sobre os novíssimos do homem: morte, juízo, inferno, paraíso. Uma confissão geral quer dizer: que abranja todas as anteriores, muito recomendada em ocasiões graves, como ensinam os teólogos.

            O mestre de noviços martelava-nos os ouvidos com longas prédicas sobre o horror do pecado, do diabo e da carne. Nosso espírito estava no último grau da excitação mística. Quando, prostrado aos pés do sacerdote, acabamos a longa confissão (rosário de banalidades da vida, de prazeres legítimos e até de necessidades fisiológicas) o pranto nos sufocou, e curvado até o chão recebemos a grave absolvição sacramental.

            Na noite da véspera de tomarmos o hábito, depois de respondermos ao instrutor, afirmativamente, se persistíamos no intento de entrarmos na visa religiosa, na ocasião em que a fradaria tomava lugar no refeitório para a ceia, de joelhos ante o guardião[2], pedimos em latim, pelo amor de Deus, a estamenha dos mendicantes. O superior concedeu-nos a graça para a salvação de nossa alma.

            Amanhecemos enfermo no dia seguinte.

            Houve necessidade de se modificar a cerimônia. Tomamos, primeiro, a comunhão, depois alimentamo-nos; não resistiríamos a ir em jejum para a igreja. Na ocasião da missa solene a comunidade foi para o coro, entoar o cantochão.  Entramos no templo, na frente do celebrante e acólitos. Vínhamos a secular, camisa de meia, um paletó com a gola levantada, um crucifixo nas mãos postas, e assim tomamos lugar de joelhos ante o altar-mor.

            Sobre uma credencia[3] estava o nosso hábito com a respectiva corda. No momento dado, colocou-se ao pé do altar uma cadeira virada para o povo e o padre nos dirigiu a palavra. Não entendemos patavina: o discurso era em alemão. Era dirigido ao povo ou por outra, era um alocação por tabela. Tínhamos que responder em alemão: sim. Não estávamos bem certo e demos o sim antes do tempo. Foi o que se chama, em bastidores, uma entrada falsa.

            Quando, pois, o frade nos perguntou: - “quer ainda entrar na ordem de nosso pai S. Francisco?” Nada respondemos; ele, porém, nos disse lá mesmo do altar:  “diga sim.”  Esta segunda parte é o que se chama na gíria teatral: perder a deixa.

            Houve, conseguintemente, uma parte pitoresca. Seguiu-se a bênção do hábito e cordão, tiraram-nos o paletó, amortalharam-nos na estamenha, cingiram-nos com o cordão, tudo acompanhado das respectivas rezas do ritual, e por fim o padre nos impôs, de acordo com as prescrições da regra, o nome de Francisco Solanus. Recebemos os abraços dos irmãos e os parabéns do devotismo. Éramos o primeiro brasileiro que, após cinquenta anos de interdição da entrada de noviços nas ordens religiosas, recebia o hábito, como vimos do aviso ministerial transcrito em número anterior.

            Pela segunda vez figurávamos como herói do dia em religiosa festividade. Na primeira vez, como se viu, de batina, na segunda, de hábito.

                                                                                      *

            A comunidade se levantara às quatro horas e meia da manhã. O irmão encarregado desse mister gritava pelos corredores: - Ave Maria! - e das celas respondíamos: Deo gratias! Nas segundas, quartas e sextas-feiras, tínhamos disciplina, estalada em nossos corpos ao som plangente do miserere. Era um chicote com cinco pernas de ouro couro, com que nos flagelávamos. No dia de finados a dose era dobrada, adicionando-se um de profundis, em intenção das almas do purgatório!

            Se era dia de festa, ou de santo privilegiado, nossos corpos ficavam sem essa dose de pancadaria. Íamos para a igreja meditar meia hora, ouvir missa, em alguns dias comungar, depois tomar café e entregar-nos aos nossos trabalhos. Pouco antes do meio dia o sino nos convidava ao templo; depois de rezarmos em comum o Ângelus, íamos nos colocar em forma no refeitório, dando começo às orações decoradas em latim, logo que o superior chegava ao seu lugar. Depois um frade se curvava ante o superior, pedindo a bênção, e este lha dava com o sinal da cruz. Todos tomavam seus lugares pela ordem de hierarquia e antiguidade, conservando-se em pé, enquanto um leitor contava em voz soturna um versículo do Evangelho, ao qual a fradaria respondia com um amém em tom plangente.

            Os bancos são colocados às quatro paredes do refeitório, ficando as mesas de maneira que se conserve o centro da sala vazio. O maioral ocupa o centro das mesas, tendo por trás de sua cabeça um crucifixo. Durante a refeição dois irmãos leem, alternadamente, trechos espirituais.

            Ao terminar o jantar todos vão rezando em voz alta para a capela, onde, ao entrar, beijam o chão.
            De braços abertos em forma de cruz, a congregação reza, alternadamente com o superior, um punhado de padre-nossos, ladainha, etc. A última prece é rezada com os frades prostrados no chão.

            Segue-se o recreio, que dura até às duas horas da tarde. Dessa hora até às seis, cada um se entrega às suas ocupações, quando se reproduz a mesma cena que descrevemos atrás, precedida de meia hora de meditação. Depois do jantar, silêncio profundo, os frades correm a via sacra na igreja.

            É uma devoção que consiste em ajoelhar e, rezar diante de quatorze quadros que, ao longo das paredes das igrejas, representando os quatorze passos dolorosos da paixão de Cristo.

            Outros passeiam ao longo dos corredores e jardins, recitando o rosário, ou os padre-nossos da regra.

            Os clérigos e padres dizem o ofício divino do breviário: é um livro que contém fatos e preces para todos os dias do ano litúrgico.

            Às nove horas cada religioso vai se sumindo para o seu aposento, onde dorme beatificamente.
            Às sextas-feiras havia uma cerimônia tocante:  antes do jantar, a comunidade se punha de joelhos ante o superior; este tomava sobre os ombros o manto de sabir, e de pé ouvia as confissões, em voz alta, dos seus inferiores. Toda a comunidade confessava, a começar do mais graduado ao último noviço, as faltas cometidas na semana: um teve sono ao levantar-se, outro distraiu-se no ofício[4], outro cochilou no coro, outro quebrou o silêncio, um prato, uma caneca, um garfo. Nós, como tínhamos o encargo de cuidar do refeitório, invariavelmente confessávamos a falta de quebrar xícaras de barro. Vem daí a nossa benevolência para os criados quebradores de louça. O guardião nos dava uma penitência, umas três Ave-Marias por exemplo, enquanto a congregação prostrada no solo recebia a absolvição sacramental, que o superior lhe concedia, coroando-a com o sinal da cruz sobre a fradaria.

            Nos conventos há duas espécies de frades: os padres e os leigos. Com exceção do noviciado, que é comum, há depois desse período, que dura um ano, uma verdadeira e completa separação. Os leigos usam tonsura, isto é, a nuca e as fontes raspadas a navalha. Ocupam-se dos trabalhos manuais, em bom português:  são os criados do convento. Os outros têm todas as distinções e comodidades, todas as preferências, e usam, além da tonsura, coroa grande aberta na cabeça, também à navalha; são padres. Cada um vive para si; é raro um ajudar ao outro; com os estranhos quase não têm comércio; os padres nas recreações do refeitório conversam entre si, os leigos fazem o mesmo. Nos dias festivos dispensa-se parte da leitura espiritual nas refeições; os irmãos se cumprimentam uns aos outros, dizendo: “tenha bom apetite.”

            Constantemente se celebravam quaresmas de jejum. Havia, se não nos enganamos, umas três. Se hoje comêssemos o que então comíamos, seríamos gastrônomos. Consistia o jejum em tomar, pela manhã, uma palangana de café com grossa fatia de pão de milho. Ao meio dia, jantar abundante em que se podia comer até fartar. Às seis horas, ceia: um prato de sopa com um outro qualquer, um ovo e chá ou mate.

            Era permitido, fora dessas refeições, tomar café, refresco ou qualquer outra coisa. É, em geral, a única satisfação material que o religioso tem: comer. É quase a mesma do irracional.

            Outra recreação que muitos apreciavam era a noturna no refeitório. Ao noviço mais moço chama-se ‘júnior’[5]; em dias de festa beija a mão do guardião e pede recreio.

            Concedido este, punha-se uma fila de garrafas de vinho ao longo da mesa, e conversava-se e libava-se algum tempo, até o superior fazer o sinal para entoar-se um hino, virados todos para a cruz, e recolhermo-nos às células, a fim de dormirmos. Tudo isso era feito com todas as precauções para ninguém ver.

            Um dia tinha ido conhecido padre secular desta cidade até lá e, por ser novato, não foi admitido à recreação.

            Um religioso nos referiu em uma dessas ocasiões que Pio IX aconselhara os padres a não conversarem com os leigos, e a estes fazerem o mesmo com os seculares.[6] 

            Só Jesus com todos falava e a todos acolhia como iguais; dizia que o primeiro fosse o último, como Ele deu o exemplo, ensinando aos homens a se buscarem e não a se repelirem: os frades, porém, tinham uma coisa superior aos Evangelhos: as regras do seu convento. Estavam e estão em seu direito, preferindo o papado, o Vaticano e o romanismo; nós preferimos Jesus, manso e humilde de coração, e por isso nos amamos uns aos outros, para o mundo nos reconhecer por seus discípulos. 

[1] Dá-se esse nome aos regulamentos das comunidades religiosas.
[2]  Superior do convento.
[3]  Mesinhas usadas junto aos altares.
[4]  Reza do breviário.
[5]  O ‘júnior’ do convento éramos nós. Tínhamos 18 a 19 anos.
[6]  ‘Seculares’ quer dizer ‘do século’. Diz-se geralmente ‘paisanos’.

Nenhum comentário:

Postar um comentário