16. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A.
Camargo
Empresa
Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941
A fé e as boas-obras do ladrão na cruz
AS BOAS-OBRAS ABRIRAM
A PORTA DO PARAISO
Palestra
realizada em São João da
Boa
Vista e também ao microfone da
Radio
Educadora Paulista
e
Radio Piratininga (24-2-1939 e 19-9-1940).
O assunto desta noite é de relevância para quem crê na
autoridade do Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Cabe-me imensa satisfação
em apresentar-vos o modesto estudo por mim feito, de acordo com a exegese
bíblica, e essa exegese quer dizer simplesmente interpretação gramatical e histórica dos textos
sagrados.
Antes de esflorar o assunto, seja-me permitido um
pequeno parêntese, para vos dizer a origem do tema desta minha palavra.
Há dois anos, Pedro de Camargo (o apreciadíssimo
orador e escritor, conhecido também pelo pseudônimo de Vinícius) e eu,
estivemos na encantadora cidade de São João da Boa Vista, a convite do infatigável
pregoeiro da Verdade, nosso companheiro de ideal cristão, José Peres
Castelhano, conhecido jornalista residente naquela localidade, onde dirige o
seu belo órgão de imprensa, "Alvorada", muito apreciado na zona.
Era para realizarmos três palestras evangélicas, cada
um, na sede da conhecida “Sociedade de Estudos Espíritas João Batista”.
Combinamos - os dois Camargo -, como amigos e primos,
que não levaríamos da Capital nenhum tema desenvolvido. Deveríamos fixar o
assunto de cada palestra, meia hora antes de nos dirigirmos para o local
respectivo.
Fomos agradavelmente advertidos de que seríamos
ouvidos por numeroso auditório da culta cidade, máxime por distintos elementos
da Igreja Presbiteriana local.
De fato: o vasto, novo e lindo salão de conferências
esteve literalmente cheio, nas três noites. Centenas de pessoas de todas as
categorias sociais. Cerca de vinte representantes da comunidade presbiteriana,
inclusive o respectivo pastor (na primeira noite).
Nós, os oradores, falaríamos em dois períodos, um em
seguida ao outro. Trinta minutos para cada um. Preferi falar em primeiro lugar,
para que, em seguimento e sulcando as mesmas águas do Oceano do Evangelho falasse
por último e para encerrar a sessão, o sempre inspirado Vinícius, que
completaria a minha alocução.
- Meia hora antes, recebi a intuição de que devia
focalizar o drama do Calvário, notadamente o papel desempenhado pelo ladrão
crucificado à direita de Jesus. Tal o tema que me coube, e que desceu das
alturas: “A fé e as boas obras do ladrão
na cruz”.
Manda quem pode, e obedece quem deve: tal a sentença
que tilintou aos meus ouvidos. E obedeci.
Pois bem. Em seguida ao meu palavreado, o meu muito
querido Vinícius, também baseado só no Evangelho, falou sobre a “predestinação divina e a unidade do destino”.
Era o tema, derivado do primeiro, que me coubera.
Vinícius produziu uma peça oratória que eletrizou e
arrebatou o auditório nas asas de eloquência iluminadora, porque firmada na
argumentação bíblica e na solidez granítica das conclusões lógicas, racionais,
da unidade do destino, do único que o Pai dá a todos os seus filhos: o da
perfeição, após e mediante a ininterrupta caminhada por toda a fieira evolucionária,
no tempo e no espaço -, ou através dos séculos e do estágio nessas numerosas
moradas da casa do Pai (João, XIV, 2).
A palavra fluente, edificante e cheia de fé de Pedro
de Camargo, produziu grande, profunda e marcante impressão no espírito do
atento auditório. O Evangelho despertou grande admiração e grandes simpatias no
meio das centenas de pessoas que, pela primeira vez, ouviam a interpretação
fulgurante e fiel, dada à palavra do "manso e humilde de coração"
(Mt. XI, 29), no que diz respeito à unidade
do destino.
Dada a origem modesta e despretensiosa do tema desta
noite, convido-vos, meus benévolos ouvintes, a que meditemos juntos sobre o instrutivo
passo evangélico.
Não ignoramos que o método de salvação ensinado e
adotado por Jesus, era simples e sem as complicações muito próprias dos métodos
de origem humana. Basta-nos ouvir o que nos dizem os redatores do Novo
Testamento.
Certa vez um doutor da lei perguntou ao Mestre: “Que
hei de eu fazer para entrar na posse da vida eterna”?
Como o interpelante era homem da lei de Moisés,
respondeu Jesus com esta pergunta: "Que é o que está escrito na lei? Como
lês tu?"
Responde o doutor da lei: “Amarás o Senhor teu Deus de
todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças e de todo o
teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo”. E Jesus lhe disse: “Respondeste
bem; faze isto, e viverás.”
Eis aí, meus prezados ouvintes, o método de salvação
adotado pelo Mestre. Viu Jesus que esse doutor conhecia as palavras da lei mas
não conhecia o espírito que vivificava essas palavras, e como Mestre paciente
que era, Jesus diz apenas: Faze isso, e viverás. Isto é: ama a Deus e a teu
próximo, e ganharás a vida em meu reino pois o caminho que vai ao meu reino é
exatamente esse, o do amor; se fizeres isso, não precisarás de nada mais” nem
de observância de sábados, nem de ritualismos que tu e teus correligionários
observais.
Mas, esse doutor da lei era li-te-ra-Iís-ta, sabia de
cor os dois mandamentos máximos da lei, mas não sabia quem era o seu próximo,
porque a sua crença, o seu devocionismo, estava no cérebro e não no coração,
estava na exterioridade da crença e não na objetividade da conduta. E tanto era
verdade, que, retrucando, pergunta ele a Jesus: “E quem é o meu próximo?”
Nesta altura, o Mestre dos mestres vai simplificar
ainda mais o seu método, apontando o exemplo colhido nas boas obras de um
samaritano, que não sabia a lei nem decorara os mandamentos, mas sabia que era
mal olhado e até excomungado pelos doutores da lei...
Pois Jesus lhe conta a história do homem espancado e
roubado na estrada por terríveis salteadores que, por fim, deixaram a pobre
vítima semimorta à margem do caminho; que passaram por ali, dois representantes
do sacerdotalismo judaico, cada um por sua vez, e não ligaram atenção ao pobre
homem, ao passo que um samaritano, aproximando-se, encheu-se de íntima
compaixão e prestou toda assistência ao homem ferido.
Contada que foi essa pequena história, pergunta Jesus
ao doutor da lei: qual destes três te parece que foi o próximo daquele que caiu
nas mãos dos ladrões? Respondeu logo o doutor: “aquele que usou com o tal de misericórdia." Concluindo, disse
Jesus ao seu interpelante: “Pois vai, e
faze tu o mesmo” ou, pratica boas obras também.
Esse caso ilustrativo apresentado por Jesus a um dos condutores
da consciência religiosa do povo israelita, resolveu imediatamente as dúvidas
que voejavam no espírito do eminente teólogo, acerca das condições para alcançar
o caminho da espiritualidade, ao mesmo tempo que demonstrou a inutilidade da
observância de ritualismo e liturgias como se verificava no culto religioso dos
judeus. Ainda que elevado ás culminâncias do sacerdotalismo, esse doutor da lei
estava em nível moral e espiritual muito abaixo do bom samaritano.
Vejamos agora a aplicação do método salvativo em um
outro caso narrado no Evangelho. É o caso do ladrão e criminoso.
Relatam os evangelistas, especialmente Mateus, Marcos
e Lucas, que Jesus foi crucificado juntamente com dois ladrões, um à sua direita
e outro à sua esquerda. Descrevendo, ainda que resumidamente, o inominável crime
contra o imaculado Filho de Deus, referem-se aos insultos, á zombaria, aos
impropérios lançados à face do Inocente, pelas autoridades, pelos escribas, pelos
anciões, que diziam: “Ele salvou outros, a si mesmo não se pode salvar; se é
Rei de Israel, desça agora da cruz, e creremos nele.” E os mesmos impropérios
lhe diziam também os ladrões que haviam sido crucificados com Ele." (Mat.,
XXVII, 38 a 44).
Fixemos os olhos, prezados ouvintes, nesse quadro esplendente
de luz e de beleza, luz e beleza, reflexos da doutrina do Mestre.
Conta-nos o Evangelho que os dois ladrões fizeram coro
com os inimigos de Jesus, insultando-o. Eis que, repentinamente, cala-se o
ladrão da direita, a quem a tradição deu o nome de Dimas. Não proferiu mais nenhuma
palavra ofensiva contra Jesus. O outro - seja ele chamado Gestas -, continuou a
tomar parte na orquestra infernal dos impropérios, dizendo por sua vez:
"Não és tu o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós também." Mas o
outro, repreendendo-o, disse:
"Nem ao menos temes a Deus, estando debaixo da
mesma condenação? Nós certamente com justiça, porque recebemos o castigo que
merecem as nossas obras; mas este nenhum mal fez. E disse: Jesus, lembra-te de
mim quando entrares no teu reino. Ele lhe respondeu: “Em verdade te digo que
hoje serás comigo no paraíso.”
Esse, meus distintos ouvintes, o episódio empolgante,
sublime, patético, a encerrar a última página da vida do Mestre de todos os
mestres! Meditemos nas lições que a Sabedoria Infinita faz brilhar aí.
Procuremos sentir o fogo daquele amor que incendiou o coração do malfeitor
arrependido, ali na cruz.
*
Dimas, o ladrão crucificado à direita, num exame
introspectivo, num rigoroso balanço em sua vida semeada de erros e de crimes,
reconhece justíssima a penalidade que lhe foi aplicada e ao companheiro; a
justiça humana, ainda que imperfeita em suas decisões e sempre injuriada pelos
criminosos, é acatada naquele momento. Sentindo os impulsos da verdade e da
justiça reconhece a monstruosa injustiça no julgamento e na condenação de
Jesus. Fazendo o confronto de vidas, rapidamente avança com o pensamento e dá o
primeiro passo no caminho das reparações, e procura ao mesmo tempo despertar a
consciência entorpecida de seu companheiro de desregramentos. E fala: “Nem ao menos temes a Deus, estando debaixo
da mesma condenação?”
É que os ouvidos de Dimas não mais podiam suportar as
marteladas da impiedade de seu companheiro! Penalizara-se diante da cegueira
espiritual de Gestas, ele, Dimas, que, momentos antes, também padecera dessa
cegueira!
Poderei, prezados ouvintes, tentar uma reconstrução desse
passo evangélico, colocando-me na posição de Dimas. E então teria sido assim o
episódio:
“Ó meu companheiro de crimes! Nós, ambos, somos
criminosos, e nada podemos dizer contra a justiça que nos mandou para este
madeiro, porque merecemos esta condenação. Reconhece isto, e já! Desperta a tua
consciência, ou antes, procura ouvir a tua consciência, que é testemunha
silenciosa de teus atos e pensamentos; escuta lhe a voz e ela te dará o
conhecimento íntimo de ti próprio e do que te rodeia. Ela te dirá que és
criminoso como eu! Reconhece, porém, que esse que aí está entre nós dois, é um
Justo, é um Inocente, é uma vítima da ingratidão, da maldade, da injustiça desse
tribunal que o julgou e dessa multidão de assassinos! Vamos, meu companheiro,
acorda do sono da morte e proclama esta verdade: Jesus é inocente e nós somos
criminosos!
Que importa que Ele tenha sido traído por um, negado
por outro, e abandonado pelos demais apóstolos e discípulos? Que importa que
Ele tenha por epílogo de sua vida de pureza, de santidade, de renúncia e de amor,
o abandono de todos e tenha como seu único advogado um ladrão? Ó companheiro de
trevas, aceita, como eu aceito, a realeza espiritual desse Justo, e sentirás o
que já estou sentindo neste momento: o deslumbramento ante as claridades desse
Reino de Justiça, e de Paz, e de Amor!"
E não consta, prezados ouvintes, que o companheiro de
Dimas houvesse repetido aqueles impropérios. Ter-se-ia arrependido? Jesus o
sabe, como soube que Dimas não possuía fé como sinônimo de opinião religiosa,
mas que praticou duas obras meritórias, duas boas-obras. Vejamo-las.
1ª obra: arrependendo-se da sua vida pecaminosa,
graças à influência santificante de Jesus, ali, ao seu lado, não ficou calado
egoisticamente, mas, ao contrário, sem temer a multidão fanatizada e
enfurecida, procurou levar o seu companheiro pelo mesmo caminho do
arrependimento, ao mesmo tempo que o exortou a reconhecer o Cristo como Senhor
do Reino Espiritual (Aquele que fizer
converter a um pecador do erro do seu descaminho, salvará a sua alma da morte e
cobrirá a multidão dos pecados.) (Tiago, V. 20).
2ª obra: pregado na cruz, sem liberdade de movimento,
não tinha, porém, presa a língua, como" já dera prova; e, sem temer o
furor ou outros castigos da populaça e das autoridades ali presentes, proclamou
e profligou o grande crime que cometiam na condenação de um inocente, ao mesmo
tempo que reconhecia a realeza messiânica de Jesus. Assim procedendo, Dimas
acusou a todos os algozes como injustos e assassinos, inclusive os membros do
sinédrio ou Supremo Tribunal Eclesiástico dos judeus.
Nessa proclamação, da inocência de Jesus e da criminalidade
daquela multidão, Dimas revelou as vibrações intensas de amor e de justiça que
sentia em sua alma, e essas vibrações se tornaram conhecidas através da sua
palavra destemerosa e cortante, e a palavra é sempre o instrumento da ideia, o
veículo do pensamento! A palavra de Dimas foi uma estridente clarinada ao
ouvido do outro malfeitor e também ao ouvido da turba enfurecida! E essa
clarinada era um apelo, um convite, uma súplica ao arrependimento pelo
inqualificável crime cometido coletivamente contra o Filho de Deus e Redentor
da humanidade!
A fé desse criminoso revelou-se robusta, corajosa e encorajadora,
através dessas duas boas obras, que espelharam, nitidamente o sentimento de
justiça e de amor; de justiça para consigo mesmo e para com seu companheiro de
maleficência; de amor à vítima inocente, a quem reconheceu como o verdadeiro
Messias, cuja realeza espiritual reconheceu imediatamente, ao ponto de implorar
o seu ingresso no Reino da Espiritualidade: “Senhor, lembra-te de mim quando
entrares no teu reino!”
17. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A.
Camargo
Empresa
Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941
Hoje serás comigo no paraíso
Pronunciada,
em continuação, aos mesmos microfones (3.3.1939 e 26.9.1940).
NÃO À MORADA DE DEUS
Estas palavras do Mestre foram proferidas após a
boa-obra de Dimas repreendendo o outro ladrão ou Gestas, para despertar-lhe a
consciência insensibilizada. Esta boa obra encerra lições de alta significação
educativa, tais os resultados ou consequências que devia ter provocado. Sim.
Lembremo-nos, distintos ouvintes, de que estavam ali presentes, ao pé da cruz,
muitas dezenas de consciências semelhantes à de Gestas.
Ladrão é aquele que se apodera do alheio, ou que gasta
e estraga o que não é seu. Homicida é aquele que produziu a morte de alguém. É
o que significam os vocábulos “ladrão”, “homicida”, segundo o nosso idioma e os
nossos dicionários.
Um homem pode tornar-se ladrão ou homicida por atos ou
por pensamento. O homem que furta uma peça de seda é menos ladrão que o juiz
iníquo que venaliza as funções de sua judicatura, mandando pôr nas mãos do esperto
endinheirado e dos intermediários os bens ou a única fortuna do mais fraco, bem
como das viúvas e dos órfãos; o primeiro, pode ser um embotado ou insensível,
sem consciência da enormidade da sua falta, ao passo que o magistrado iníquo
tem conhecimento do mal a praticar e o pratica conscientemente, deliberadamente,
calculadamente; aquele que com o punhal ou com o revólver tira a vida de seu semelhante,
não é mais homicida que o caluniador que lança a desonra num lar, causando a
morte moral de uma família, expondo-a ainda ao veneno da maledicência da
sociedade em que vive.
Consequentemente, só de se dizer que, tão criminoso
quanto o ladrão das coisas alheias é o homem que veste a toga de juiz para
condenar o inocente e proteger o usurpador, o avarento, o devorador da casa das
viúvas e dos órfãos. Semelhantes a estas consciências eram as consciências
diante das quais falara Dimas, o ladrão arrependido. Gritam contra essas
injustiças todas as agravantes, porque a vida moral não é inferior à vida
física, mas, ao contrário, é mais preciosa porque imperecível, pois que a vida
moral é a própria vida espiritual, a vida da alma, e a alma é imortal. A excelsitude
desta verdade encontramo-la na moral evangélica.
Disse um grande moralista lá do famoso Oriente berço
de todas as grandes religiões e das grandes verdades morais -, que o homem não
deve bater numa mulher nem mesmo com uma flor.
Pois o Autor da moral do Evangelho vai muito mais
longe com o seu ensino na escola do sentimento. Disse Ele que o homem não deve
ofender os seus semelhantes nem mesmo com o pensamento. Assim, torna-se réu de
julgamento (no tribunal da própria consciência) aquele que diz a seu irmão: “raca”
termo este altamente depreciativo, derivado do caldeu "réka" e que
significa literalmente “vazio”, “insignificante”. Isso, na ofensa a um irmão. E
Jesus indicou o complemento, nesta sentença de sublimada delicadeza: “Ouvistes o que foi dito ao antigos (isto
é, na lei de Moisés): “Não adulterarás."
Eu porém vos digo que todo homem que
olhar para uma mulher, cobiçando-a, já no seu coração cometeu adultério.”
Eis aí o alicerce para a construção moral de todas as
criaturas em todos os séculos. E esse alicerce foi visualizado ali na cruz pelo
malfeitor arrependido, o bom ladrão ou Dimas, cuja consciência não se fez
insensível à influência santificante do Mestre ali também pregado como se fora
malfeitor.
Dominado pelas vibrações do sentimento de justiça,
Dimas teve olhos de ver e ouvidos de ouvir, e começou a ver e a considerar as
coisas de maneira diferente, a começar do julgamento de si próprio, e com todo o
rigor: “Nossa condenação ao madeiro é
justa, disse ele a Gestas, porque nossas obras não podiam merecer outra
penalidade."
Oh! Quanta meditação, quanto ensino, quanta sabedoria
encerra essa frase do malfeitor arrependido, agora transformado em juiz, e juiz
em causa própria! Boa justiça é aquela que começa pela nossa casa, diz o provérbio
popular.
Meditemos por alguns instantes, meus prezados
ouvintes, diante dessa figura que tem o seu nome registrado ao lado do nome de
Jesus!
Dimas, ainda minutos antes, estava mergulhado na
cegueira espiritual -, e ei-lo transfigurado pelos primeiros clarões da
espiritualidade! Imensa, a influência exercida em seu espírito pela aproximação
do Rabino da Galileia! Já antevia o panorama da realidade desenhado no Além... Sacudido pelas vibrações do amor
que antes desconhecia, ei-lo a contemplar a sua própria fotografia moral na
face moral do companheiro pregado à esquerda de Cristo!
E avança no caminho do dever, agora obrigação indeclinável,
procurando repartir com seu outrora companheiro de criminosas aventuras, as
primeiras noções de justiça: apela para a consciência de Gestas, no sentido de levá-lo
a um exame íntimo, a um exame introspectivo, a fim de reconhecer-se criminoso e
muito merecedor do castigo na cruz. Este passo é a primeira obra de amor, a primeira obra de fraternidade e que pode
ser vestida com a roupagem evangélica: desejar ao próximo aquilo que,
invertidos os papéis, desejaria para si: “Tudo o que vós quereis que vos façam
os homens, fazei-o também vós a eles, porque esta é a lei, e os profetas"
(Mt. VII, 12).
Eis aí a grande e primeira obra, a boa-obra, fruto do
verdadeiro amor.
Sabemos que, obra, não significa somente o produto da
inteligência pela intermediação dos músculos da mão que empunha a caneta, o
bisturi, o formão, a enxada, a sovela, a picareta, a trolha, o machado, o pincel.
Obra é o resultado de uma atividade, e atividade quer dizer ação, e esta pode
ser de forma material ou imaterial, mas sempre produzida pela inteligência e
pela vontade. Uma palavra é uma obra, boa ou má; o médico que encoraja com sua
palavra o doente abatido, pratica boa obra; aquele que, com bons conselhos,
desvia um amigo da prática de um crime, pratica boa obra; a esposa que, com sua
palavra encorajadora, apela para a razão do marido desempregado e que teme o
fantasma da miséria, pensando no suicídio como solução para os problemas
domésticos - e o convence do grande crime da covardia - essa esposa pratica uma
boa obra; os pais que, com palavras endossadas pela autoridade do amor,
conduzem os filhos na escola da moralidade, e os levam ao bom caminho, praticam
boa, excelente obra. E assim por diante; toda palavra que orienta, que conduz,
que desperta, que encoraja, que reanima, que reabilita, etc., é. boa-obra.
Se eu profiro uma calúnia ou uma simples mentira,
pratico uma obra má, que pode gerar uma ou muitas obras da mesma natureza. Tudo
isso é coisa muito bem sabida.
E o bom ladrão praticou boa-obra, excelente obra,
batendo á porta da consciência de seu companheiro. Foi a primeira obra. A
segunda obra, ou a segunda boa-obra, foi esta: levar o outro condenado a sentir
esta grande verdade: que o Filho de Deus ali pregado era um Justo, um Inocente,
um Imaculado, pois que momentos antes, havia suplicado ao Pai: “perdoa-lhes, porque eles não sabem o que fazem!” - Esta, a boa-obra
produzida pelo sentimento de justiça.
Conquistado o companheiro pela convicção destas duas
grandes verdades, eis que era fatal porque inevitável, a explosão fulminadora
de uma terceira verdade ou terceira obra, mais uma boa-obra praticada por Dimas
e provavelmente aprovada por Gestas, e que era esta: a confissão da
criminalidade daquela grande multidão! Esta terceira obra de Dimas assume
importância excepcional! Fixemos, meus amigos, os olhos de nossa alma nesse
quadro tão cheio de deslumbramentos! Transportemo-nos ao monte Calvário e ali
veremos três cruzes, três supliciados. Ao centro, a cruz suportando o corpo do
Imaculado; alguns metros à direita, outra cruz, com o corpo de Dimas ; outros tantos
metros à esquerda, outra cruz, trazendo mais um ladrão e malfeitor como Dimas.
Era Gestas.
Muitos metros mediavam entre as cruzes da direita e da
esquerda, ou entre Gestas e Dimas. O vozerio da populaça era grande. Crescia de
momento a momento o alarido das vozes tumultuárias, dos insultos, das
blasfêmias, dos impropérios. Nesse momento ruidoso, para que Gestas pudesse
ouvir e entender quaisquer palavras de Dimas, era preciso que este as
proferisse bem alto, a plenos pulmões, superando o ruído da turba fanatizada, a
cuja frente estavam os fariseus, os escribas, os levitas, os soldados e o
comandante romano, e a plebe.
Explodira então ao ouvido de Gestas e de toda a
multidão, a palavra inflamada de justiça e de amor do outro criminoso, nestes
termos: “Mas, este, o Cristo, nenhum mal
fez.”
Eis aí, meus benévolos ouvintes, a defesa brilhante,
magistral, produzida por Dimas, a favor de um companheiro sujeito à mesma
condenação, mas que tinha por si todas as dirimentes, porque era um inocente,
um Justo, sem mácula! A explosão dessa verdade devia ter ecoado com o estrondo
do raio naquelas consciências envilecidas. Sim! Essa vibrante proclamação da
inocência de Jesus era, ao mesmo tempo terrível libelo acusatório contra toda a
multidão. Na defesa do Justo e na acusação dos culpados, refulgia o apelo do
ladrão arrependido a todas as consciências culpadas, para que também se
arrependessem e procurassem reparar a monstruosa falta que cometiam. Era o
Evangelho pregado por um ladrão...
E, assim, aquelas dezenas de olhos e de ouvidos ali ao
pé da cruz, foram castigados pelo advogado de Jesus, não com os golpes do insulto
ou do impropério, mas com aqueles açoites de luz e de amor!
Sim! De um coração contrito e já aquecido pelo fogo do
amor, não era possível brotar senão essas flores, orvalhadas pelo Grande Amor
ali encarnado e que instantes depois encerrou a sua escola diante do mundo, com
o mesmo Evangelho, cujo último capítulo foi este: “Pai, perdoa-lhes, porque eles
não sabem o que fazem!”
*
Cônscio de que tinha grandes dívidas a saldar no outro
Lado da Vida -, Dimas apela para quem ele sabia possuir todo poder: “Senhor,
lembra-te de mim quando entrares no teu reino!”
“Sim, Mestre, de olhos abertos, agora sei quem tu és!
Quando regressares ao teu reino, esse Reino da Paz, da Luz, da Justiça, do Amor,
lembra-te deste estropiado que agora sabe medir a altura e a extensão de seus
crimes! Lembra-te deste teu irmãozinho que já sente o refrigério da justiça a lenir
as dores do arrependimento pelos insultos que te atirou ainda a pouco. Tu disseste
aos homens: “Eu sou o caminho, a verdade
e a vida; ninguém vai ao Pai senão por mim”. Disseste mais: “Aquele que me confessar diante dos homens,
eu também o confessarei diante de meu Pai que está no céu; mas aquele que me
negar diante dos homens, também eu o negarei diante de meu Pai que está no céu.”
Oh, Senhor! Tenho confiança nessa promessa que fazes a
todos os pecadores como eu. E é por assim confiar, que eu te peço: confirma,
Senhor, diante do Pai Celestial, aquelas verdades que eu confessei há poucos
minutos diante dos teus inimigos! Disseste mais, Senhor, que aqueles que te amarem e te seguirem,
conhecerão a verdade e a verdade os tornará livres. Sim, Mestre, livres do
poder das trevas, dessas trevas que envolvem esses teus acusadores e
julgadores, para os quais, entretanto, invocaste a clemência e o perdão do Pai, porque na sua ignorância é que eles te condenaram. Oh,
Mestre! Afirmaste que a Vontade do Pai é que não percas nenhum da raça humana,
pois que és o Governador deste planeta. E prometeste ressuscitar todos no último
dia. - ou seja regressarem à Pátria espiritual quando cheguem ao último dia da
sua jornada na terra. E teus atos, tuas palavras, tua vida, são um exemplo vivo
e confirmativo de que és o Salvador da humanidade inteira e não de uma fração,
pois que os próprios que te condenaram - os maiores criminosos de todos os
tempos - mereceram o fogo do teu amor!”
E
assim, prezados ouvintes, o ladrão arrependido poderia ter continuado a
discorrer sobre a excelsitude do amor de Cristo, amor sem privilégios porque
sem limites.
Apreciemos a lição desse episódio, quanto à ideia
feita por Dimas acerca do Reino de Jesus. Devemos não esquecer a situação moral
do apresentante dessa lição: um ladrão arrependido.
*
Com a iluminação espiritual já adquirida, o bom ladrão
não pretendia a beatitude contemplativa, estática, imobilizada, nem mesmo
esperava ingressar numa região superior, onde os Espíritos gozam das claridades
próprias dessas alturas.
Ele, o Dimas arrependido, já antegozava os esplendores
desse Reino que não é deste mundo. E a melhor prova desse fato está na explosão
do seu sentimento de amor, na incontida exteriorização do seu sentimento de
justiça, ao ponto de se expor a outros castigos ou sevícias pelas autoridades a
quem acusara de criminosos. Ora, quem se sente dominado pelo amor e pela
justiça - que mais poderia desejar senão que esse estado de alma continuasse,
que fosse sempre assim, numa verdadeira eternidade?
O bom ladrão, o nosso caro Dimas, já havia encontrado
o caminho da paz. É esse o Reino de Jesus, reino espiritual, reino do Espírito,
conforme a profecia pelos lábios de Isaías: “... e Ele se chamará o Príncipe da
Paz" (cáp. 9, v. 6).
E Jesus confirmou que assim é, que o Reino de Deus não
é lugar, não é região beatífica para alguns mas que é estado de alma, estado de
consciência, estado de quem sabe amar, sabe sentir a força atuante da verdade e
a força reabilitante e reparadora da justiça. Esse estado espiritual sentiu-o essa criatura que nos dá
esta lição. Eis o ensino claro e sem ambiguidade, de Jesus: “O reino de Deus não virá com mostras algumas
exteriores, nem dirão: Ei-lo aqui, ou, ei-lo acolá, porque eis aqui está o
reino de Deus dentro de vós” (Lucas, cap. 17, vs. 20 e 21 - tradução do
Padre Antônio Pereira de Figueiredo).
É
esse o paraíso, esse estado de alma, esse Reino Espiritual, em que vivia o
Mestre dos mestres. E tanto é verdade que o paraíso não devia ser tomado como
um lugar ou região, que Jesus disse ao bom ladrão: “Hoje serás comigo no
paraíso.” (Sabido é que o verbo “estar” indica um estado
transitório, e o verbo “ser” indica um estado permanente. Exemplos: “João está
pálido”, “Pedro é pálido”, “Fulano está doente”, “Beltrano é doente”, “Maria
está alegre”, “Nair é alegre”. É fácil distinguir a diferença do sentido entre esses
dois verbos).
Mas, para afastar qualquer dúvida que paire no espírito
de algum crente no Evangelho, eis que o quarto evangelista, cognominado o
discípulo amado, vem cortar a dúvida pela raiz, mostrando e demonstrando que o
paraíso não é a morada de Deus.
Descrevendo o grande acontecimento que foi a ressurreição
de Jesus, três dias depois da crucificação (notemos hem: três dias depois do “hoje
serás comigo no paraíso”) -, o apóstolo diz que Ele, o Cristo, apresentou-se à
Maria Madalena e, querendo esta abraçá-lo disse lhe Ele: “Não
me toques, porque ainda não subi a meu Pai, mas vai a meus irmãos, e dize-lhes:
Que vou para meu Pai e vosso Pai, para meu Deus e vosso Deus.” (João, cap.
20, V. 17).
Eis aí, meus prezados ouvintes, a confirmação de que
Jesus não falou, a Dimas, de paraíso como significando a casa do Pai, mas falou
daquele estado em que Dimas já se sentia.
Objetará algum crente, com justificada razão: “onde
esteve então Jesus, durante esses três dias após sua crucificação?”
Não respondemos nós, mas o apóstolo Pedro, na sua 1ª
Epístola, cap. 3, vs, 18 e 20.
Diz ali, esse epistológrafo, que Jesus, depois de
crucificado, desceu aos infernos ou mundos inferiores onde foi pregar o
Evangelho da Verdade e da Esperança àqueles espíritos metidos no cárcere, na
prisão, desde os tempos de Noé, ou há 3.000 anos. É que esses espíritos haviam
pago o último centil (Mt. V, v. 26), sem o que não compreenderíamos o motivo
da pregação de Jesus a esses encarcerados, pois sabemos que Jesus é o Caminho,
e a Verdade e a Vida e só a verdade Ele podia ter pregado àqueles espíritos.
As expressões “cárcere” e “prisão”, significam, também,
“encarnação”, pois o homem é um espírito encarnado, um espírito preso ou
encarcerado no organismo terrestre. Esses espíritos rebeldes, a que se refere
Pedro, receberam de Jesus a carta de alforria, a liberdade para continuarem a sua jornada evolucionária em outra
estância, possivelmente a Terra, visto que eles se achavam fora da Terra, encarnados
ou desencarnados, na erraticidade, devida à sua prolongada rebeldia.
O apóstolo Paulo dirá o motivo dessa pregação aos
mortos, nos infernos ou estados inferiores. Lembremo-nos, meus benévolos
ouvintes, de que a palavra “inferno” vem do latim “infernos”, cuja raiz é “infer”,
que quer dizer “inferior”. Logo, esses espíritos de que fala o apóstolo Pedro
na citada Epístola, achavam-se ou em algum planeta “inferior” à Terra, no “cárcere”
ou na “prisão” da carne, encarnados como nós agora ou então não estavam
revestidos de “corpo”, mas estavam na situação de “presos” ou “encarcerados”
resgatando as suas faltas, em um espaço ou em um mundo “inferior”
fora do nosso mundo. Lembremo-nos do “Credo dos Apóstolos”, adotado pelas
igrejas cristãs, em o qual se diz ou se confessa que Jesus desceu aos infernos e
ressuscitou ao terceiro dia.
“Infernos”, pois, significam “inferiores” isto é mundos
inferiores. E assim fica esclarecida e explicada a razão da descida de Jesus
para pregar o amor e a verdade aos espíritos que expiavam a sua rebeldia desde
o tempo de Noé, durante trinta séculos. Concorda com esta assertiva nossa, a
palavra do grande Paulo, que diz, na 1ª Epíst. a Timóteo, cáp. 2, o seguinte: “Deus quer que todos os homens se salvem e
que cheguem a ter o conhecimento da verdade.” E, se Deus quer... é porque a
sua vontade será feita, queiram ou não queiram os homens. Ora, sendo Jesus a
Verdade - como Ele mesmo nos diz (João, XIV, 6,) explicada está a razão,
explicando o fim da descida de Jesus ao inferno, para pregar a Verdade, que só
ela libertará o homem da cegueira espiritual.
É o
volume sagrado, pois, que nos ensina que a Verdade não é privativa, não é
exclusiva da Terra, mas que a Verdade encarnada desce, como desceu; aos
infernos, para realizar a finalidade da obra criadora de Deus que é o aperfeiçoamento
pela luz, pelo amor, pela Verdade.
E, bondosos
amigos, se Paulo afirma que a vontade de Deus é que todos os homens se salvem e
cheguem a ter o conhecimento da verdade, todos se salvarão e todos chegarão a
conhecer a Verdade. O Bom Ladrão aí nos ensina.
Tal o
que aprendemos acerca da natureza do Reino de Jesus, através da vida de
criaturas sem as fulgurações das ciências e das filosofias, mas portadoras dos
tesouros do sentimento. E assim vemos quão simples era o método adotado por
Jesus para a reabilitação ou renovação moral das criaturas.
Admiramos
esse método, compreensível por toda criatura, porque fundado na realização de
boas obras, que são a linguagem do coração.
Aqui,
é o caso de Dimas, o ladrão e malfeitor que, nos derradeiros minutos de sua
caminhada planetária, converteu sua língua, pouco antes arma da blasfêmia, em
verdadeiro instrumento do amor, para abrir os olhos da consciência de seu
antigo cúmplice e também para levar ao arrependimento aquelas dezenas de
consciências, criminosas por cumplicidade, no maior crime de todos os séculos;
ali, é o caso do Bom Samaritano o indesejável entre os judeus, mas apontado por
Jesus como verdadeiro filho de Deus, porque semeador de boas obras; acolá, é o
publicano Zaqueu, o pecador mal visto e malquisto pelos judeus, como
defraudador de seus semelhantes, mas declarado filho de Deus, porque em seu
coração o Mestre leu uma linda página de reabilitação moral e de edificação
espiritual; mais além, é o centurião romano, nascido e criado no paganismo, na
carreira militar, longe de qualquer conhecimento da doutrina cristã, mas
possuidor de fé como jamais vira Jesus igual, no meio de todo o povo de Israel;
é ainda a mulher samaritana, que não era solteira, nem casada, nem viúva, enxovalhada pelos Judeus, mas que exultou
de alegria ao ouvir a palavra reabilitadora de Jesus, e mereceu, por isso, a
graça de ouvir a extraordinária profecia acerca do desmoronamento dos dogmas e
do culto externo, profecia que se realiza aos olhos de todo o mundo (João, cáp.
IV); ainda mais além, é a pecadora Maria Madalena, merecedora da penalidade
máxima segundo o juízo dos escribas e fariseus, mas declarada filha de Deus,
porque possuía alma e coração que sabiam sentir e amar como o não souberam os
filhos do chamado “povo eleito”. E tão profundo e tão elevado
foi o amor pela Verdade, que recebeu Madalena, ela só, a gloriosa missão de
anunciar aos apóstolos a ressurreição do Mestre!
E foi
assim, com criaturas humildes e obscuras, e até desclassificadas, e mal olhadas
pelos condutores da consciência religiosa dos israelitas, que Jesus Nosso Mestre
permitiu que se escrevessem as páginas esplendentes da sua vida, para ensinar
que o caminho da casa do Pai está aberto, como sempre esteve, mas para alcançá-lo
é mister saber amar, não com os lábios mas através das boas-obras, como o
fizeram essas criaturas mencionadas na biografia do Filho do carpinteiro.
Para
finalizar, repitamos, meus distintos ouvintes, as palavras que Dimas poderia
ter dito quando pelejava por conquistar o coração de Gestas:
Que
importa que Jesus tenha sido traído por um discípulo, negado por outro, e
abandonado pelos demais apóstolos? Que importa que Ele tenha por epílogo de sua
vida de santidade e de pureza o abandono de todos e tenha como único advogado
um ladrão?
Ó
companheiro de trevas, aceita, como eu aceito, a realeza espiritual deste
Justo, e sentirás o que já estou sentindo neste momento: o deslumbramento ante
as claridades desse Reino de Justiça, de Paz e de Amor! . Livres das trevas
espirituais, poderemos continuar na escalada evolucionária, para resgatar o nosso passado
tempestuoso. Acredita no que te digo, pois ouviste o que me disse o Mestre: “Hoje
serás comigo no paraíso!”
18. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A.
Camargo
Empresa
Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941
O Evangelho das boas-obras
O exemplo de um Publicano
A LIÇÃO DE ZAQUEU
Primeiramente,
algumas notas explicativas ao leitor.
Não
nos esqueçamos de que a Terceira Revelação não veio trazer doutrina diferente
da anunciada pelo Cristo, como erroneamente supõem alguns. Veio interpretar e
desenvolver o que estava em germe, no Evangelho. Lembremo-nos sempre de que
Jesus avisou os seus discípulos e demais ouvintes, de que só mais tarde, no
transcurso dos séculos, seriam conhecidas certas verdades contidas veladamente
no Evangelho. Não era possível, não era conveniente tirar o véu que ocultava o
complemento da sua palavra, devido à incapacidade intelectual não somente do
colégio apostólico como da própria época. Lembremo-nos sempre da advertência
feita e que poderia ter sido com estas palavras bem claras, bem simples e bem
significativas:
“Vós não podeis suportar, agora, as outras
verdades que eu tenho para dizer ao mundo. Mais tarde, porém, o Espirito de
Verdade, o Consolador, vos esclarecerá com a interpretação e desenvolvimento do
meu pensamento encerrado no Evangelho, e vos conduzirá a adquirir outras
verdades decorrentes, como desabrochamento que são da semente ora lançada no
vosso espírito.”
Tal
devia ter sido o pensamento de Jesus, e tudo indica que assim devemos
considerar. "Mas - dir-se-á - porque Deus não revelou aos
homens, de princípio, toda a verdade? Resposta: pela mesma razão por que não se
ensina à infância o que se ensina aos de idade madura. A revelação limitada foi
suficiente a certo período da humanidade, e Deus, a proporciona gradativamente ao progresso e forças do
Espírito.
Perguntamos,
por nossa vez: poderiam os discípulos compreender a imensidade do espaço e a
pluralidade dos mundos, antes da ciência ter revelado aos homens as forças vivas
da natureza, a constituição dos astros, o verdadeiro papel da Terra e sua
formação? Antes da Astronomia descobrir as leis regentes do Universo, poderia
compreender que não há alto nem baixo no espaço, que o céu não está acima das
nuvens nem limitado pelas estrelas? Poderiam identificar-se com a vida espiritual
antes dos progressos da ciência psicológica? Poderiam conceber depois da morte
uma vida feliz ou desgraçada, a não ser em lugar circunscrito e sob uma forma
material? Não. Compreendendo mais pelos sentidos que pelo pensamento, o
Universo era muito vasto para a sua concepção; era: preciso restringi-lo ao seu
ponto de vista para alargá-lo mais tarde. Uma revelação parcial tinha sua
utilidade, e embora sábia até então, não satisfaria hoje.
Se o
Cristo não disse tudo quanto poderia dizer, é porque julgou conveniente deixar
certas verdades na sombra, até que os homens chegassem ao estado de compreendê-las.
Como Ele o confessou, o seu ensino era incompleto, pois anunciara a vinda
daquele que devia completá-lo; assim, pois, previra que as suas palavras não
seriam bem interpretadas, e que os homens se desviariam do seu ensino; em suma,
que se desfaria o que Ele fez, desde que todas as coisas devem ser
restabelecidas; ora, só se restabelece aquilo que foi defeito. Por completar o
seu ensino deve entender-se no sentido de explicar e desenvolver, e não no de
ajuntar verdades novas, porque tudo se encontra no Evangelho em estado de
germe, faltando-lhe só a chave para se apanhar o sentido das suas palavras.
É
chegado o tempo da nova ou Terceira Revelação. A primeira Revelação era personificada
em Moisés, a segunda no Cristo, a terceira não o é em indivíduo algum; as duas
primeiras são individuais, a terceira é coletiva. Ela é coletiva no sentido de
não ser feita ou dada como privilégio a pessoa alguma, por consequência, ninguém
pode inculcar-se como profeta exclusivo; foi espalhada simultaneamente por sobre
a Terra, a milhões de pessoas, de todas as idades e condições, desde a mais
baixa até a mais alta da escala, conforme a predição do profeta Joel e repetida
pelo apóstolo Pedro, nestas palavras:
“Nos últimos tempos, disse o Senhor, derramarei o meu
espírito sobre toda carne (ou sobre todas as criaturas); e os vossos filhos e
as vossas filhas profetizarão, os vossos
velhos serão instruídos por sonhos, e os vossos mancebos terão visões” (Livro do profeta Joel, cap. 2 vs. 28; livro
dos Atos dos Apóstolos, cáp. 2 vs. 17 e 18).
A
Terceira Revelação não proveio de nenhum culto especial, a fim de servir, um
dia, a todos, de ponto de reunião. As duas Revelações, de ensino pessoal, foram
forçosamente localizadas, isto é, apareceram num só ponto, em torno do qual a
ideia se propagou, pouco a pouco; mas foram precisos muitos séculos para que
elas atingissem as extremidades do mundo, sem
mesmo o invadirem inteiramente. (Note-se que o Cristianismo é professado
por 500 milhões de almas, e a população total do globo é mais de quatro vezes
maior).
A Terceira
Revelação tem isto de particular: não sendo personificada em um só individuo,
surgiu simultaneamente em milhões de pontos diferentes, que se tornaram centros
ou focos de irradiação. Multiplicando-se esses centros, os seus raios reúnem-se
pouco a pouco, como os círculos formados por uma multidão de pedras lançadas na
água, de tal sorte que, em dado tempo, acabam por cobrir toda a superfície do
globo. (Este ponto merece a máxima atenção! A eclosão ou derramamento do
espirito de que fala Joel, é em todos os continentes da Terra, sem distinção de
classes sociais, sem distinção de crenças nem de nacionalidades. Impressionante
é o fenômeno, que atrai a atenção de todo mundo, muito especialmente daquelas
pessoas que duvidam de tudo e de todos...
19. Salvação pela fé ou pelas obras?
por Romeu A.
Camargo
Empresa
Gráfica da “Revista dos Tribunais - São Paulo SP - 1941
PORQUE "ESPIRITISMO" E NÃO
"ESPIRITUALISMO"?
Responda, ainda, o ilustre educador e médico (*) francês, autor do Livro dos Espíritos ou Filosofia
Espiritualista, bem como de mais oito obras.
(*) Do Blog: Kardec não foi médico! Vide “As mesas
girantes e o Espiritismo” Ed. FEB, por Zêus Wantuil.
“Quem
quer que acredite haver em si alguma coisa mais do que matéria, é
espiritualista. Não se segue, porém, daí, que creia na existência dos Espíritos
ou em suas comunicações com o mundo visível. Diremos, pois, que a doutrina espírita
ou o Espiritismo tem por princípio as relações do mundo material com os Espíritos
ou seres do mundo invisível. Os adeptos do Espiritismo serão os espíritas.
Como especialidade ou espécie, o Livro dos Espíritos
contém a doutrina espírita; como generalidade ou gênero, prende-se à doutrina
espiritualista, uma de cujas fases apresenta. Essa a razão por que traz no cabeçalho
do seu título as palavras Filosofia Espiritualista.”
Espiritualismo,
repetimos, é termo genérico, porque indica o gênero, que abrange tanto o
Espiritismo como o Protestantismo, o Catolicismo e o Ortodoxismo Oriental.
Espiritismo é termo específico, porque indica a espécie, assim como,
Protestantismo também é termo específico, visto que pertence ao gênero “Espiritualismo”
mas não à espécie chamada Espiritismo. Todos os espiritas são espiritualistas,
mas nem todos os espiritualistas são espíritas.
Outra
explicação, de fundo evangélico, diz mais, ao nosso ver, para significar a
razão do nome “Espiritismo”.
Todas
as doutrinas filosóficas e religiosas trazem o nome da individualidade
fundadora; dizemos o MOSAISMO (palavra formada do nome Moisés, mais o sufixo ou
terminação "ISMO"), o CRISTIANISMO (do nome Cristo, em latim
Christus; Christiani, os cristãos, mais o sufixo "ISMO"), e assim por diante,
como seja: o Maometismo, o Budismo, o Calvinismo, o Mesmerismo, o Luteranismo,
o Comtismo, etc.
A
Terceira Revelação é a voz do Espírito de verdade, prometido por Jesus, e
significa, portanto, a voz do Espírito, nome que não designa individualidade
alguma; encerra uma ideia geral, que indica ao mesmo tempo o caráter e a fonte da doutrina: que vem trazer à Terra.
Acrescentando-se
o sufixo "ismo" à palavra Espírito, teremos Espiritismo, doutrina do
Espírito de verdade ou Consolador. Ver-se-á que, no vocábulo Espiritismo, não
aparece o nome, de indivíduo, mas persistirá sempre o caráter do ensino do
Espirito, de acordo com a misericordiosa promessa do Mestre dos mestres.
Esse Espírito, chamado o Consolador,
é, no pensamento de Jesus, a personificação, a corporificação de uma doutrina
soberanamente consoladora, cujo inspirador deve ser o Espírito de verdade.
Espirito Consolador, enviado por Jesus (portanto, subordinado, obediente a
Jesus, e o enviado não pode ser igual mas inferior àquele que o envia; quem
manda, tem maior autoridade do que aquele que obedece).
O
Espiritismo é uma doutrina que pode permanecer eternamente com os homens,
segundo aquela promessa de Jesus. Não é uma doutrina individual ou uma
concepção humana; ninguém pode dizer-se criador dela. É o produto do ensino
coletivo dos Espíritos ao qual preside o Espírito de verdade. Este ensino nada
suprime do Evangelho: completa-o e elucida-o; por meio de novas leis que revela,
juntamente com as da ciência, faz compreender o que era ininteligível, e
admitir a possibilidade daquilo que a incredulidade encarava como inadmissível.
A doutrina
de Moisés, incompleta, ficou circunscrita ao povo judeu; a de Jesus, mais
completa, derramou-se por toda a parte pelo Cristianismo, mas não converteu o
mundo inteiro; o Espiritismo, mais completo ainda, tendo raízes em todas as
crenças, converterá a humanidade.
Pela
Terceira Revelação, o homem sabe de onde vem, para onde vai, porque está na Terra,
porque sofre temporariamente: ele vê por toda parte a justiça de Deus. Sabe que
a alma progride incessantemente através de uma série de existências sucessivas,
até atingir o grau de perfeição que pode aproximá-lo de Deus, conforme o
imperativo de Jesus: “Sede vós logo perfeitos, como também vosso Pai Celestial
é perfeito.” (Mt. V, 48). Essa perfeição não será conquistada
relampeantemente, quando a criatura fechar os olhos para este mundo. É lógico,
é racional. Um bandido, um facínora, que viveu matando, depredando,
desgraçando, desonrando e espalhando a viuvez e a orfandade, não pode, de um
salto, alcançar essa perfeição, a menos que se negue a Justiça de Deus.
Pela
Terceira Revelação, sabe o homem que não há criaturas deserdadas, nem mais
favorecidas umas do que outras; que Deus não criou nenhuma privilegiada e
dispensada do trabalho imposto às outras para progredir; que não há seres perpetuamente
votados ao mal e ao sofrimento; que os designados sob o nome de
demônios, são espíritos ainda atrasados e imperfeitos, que fazem mal no espaço,
como faziam na Terra, mas que se
adiantarão e se aperfeiçoarão; que os anjos ou espíritos puros não são seres à
parte na criação, mas Espíritos que atingiram o fim, depois de terem seguido a
fieira do progresso; que, por essa forma, não há criações múltiplas, nem
diferentes categorias entre os seres inteligentes, mas que toda a criação
deriva da grande Lei de Unidade regente no Universo e que todos os seres
gravitam para um fim comum, que é a perfeição, sem que uns sejam favorecidos a
custo de outros, visto serem todo filhos das suas próprias obras. A Terceira
Revelação é, em suma, a ciência que trata da natureza, origem e destino dos espíritos,
bem como, de suas relações com o mundo corporal.
Espiritismo é um vocábulo onde ninguém
descobre sombra do nome de alguma pessoa. Vê-se logo, na composição dessa
palavra, o elemento terminal "ismo" sufixo este que indica sistema e
coordenação, atribuídos ao elemento principal do vocábulo Espirito. Consequentemente,
trata-se de uma palavra indicadora de princípios coordenados, sistematizados,
de molde a formarem um todo científico ou um corpo de doutrina.
Longe
de ideias sectárias, o Espiritismo significa corpo de doutrina moral, doutrina
científica, doutrina espiritual -, ensino, disciplina, regras e diretrizes para
a vida do espírito ou alma. E o Evangelho do Mestre é tudo isso, porque é a
Ciência do Bem Viver, é a Ciência da Espiritualidade, é o Código do Dever.
Na
velha dispensação ou na época do mosaismo, os profetas anunciavam a renovação
ou reabilitação moral do homem, sem as exigências que ainda existem e vigoram
em alguns agrupamentos de caráter religioso. No livro do profeta Miqueias, capo
VI, versículo 8, está escrito com bastante clareza o seguinte: “Eu te
mostrarei, ó homem, o que te é bom, e o é, sem dúvida, que tu obres segundo a justiça, e que
ames a misericórdia e que andes solícito com o teu Deus.”
Eis
aí o mesmo ensino dado pelo Mestre da Galileia. Afirma Miqueias que Deus não
requer das criaturas senão a prática da justiça e da misericórdia, como regras
certas, capazes de fazer a felicidade neste mundo.
Quem
ama e pratica a justiça é porque sabe amar o seu semelhante, dando-lhe o que
lhe deve ser dado, a começar da assistência moral, da assistência afetiva ou do
coração, até a assistência material, socorrendo-o nas suas aflições e nas suas
necessidades.
Deixemos
a figura já bastante conhecida e bastante analisada do Bom Samaritano, e
vejamos uma outra figura, tirada dentre o povo judeu. Também neste caso, vemos
Jesus procurar, não um dos maiorais ou dentre os principais da classe
dirigente, dos escribas e fariseus.
Trata-se
de um publicano. Como sabemos, os publicanos eram assim chamados, por serem
cobradores de impostos romanos (cobradores de rendimentos públicos). Bastava o
fato de aceitarem esse cargo, para serem odiados pelos judeus em geral, que
viviam amargurados por verem o seu povo debaixo do jugo do império romano. Era
mesmo possível que os publicanos exorbitassem de suas funções, como coletores federais, cometendo injustiças
e mesmo apropriando-se de uma parte da arrecadação dos impostos, cobrados além
da tabela.
Conta-nos
o terceiro evangelista, no cap. 19, que Jesus fez uma visita a um publicano
rico, chamado Zaqueu. Os escribas e os fariseus, vendo essa visita, murmuraram,
admirados de que Jesus não tivesse escrúpulos de entrar na casa de um homem
pecador, como diziam.
A
presença do Mestre foi suficiente para provocar uma revolução nas ideias e nos
sentimentos do publicano. Tão profundamente benéfica a influência da
aproximação de Jesus, que Zaqueu sentiu intensas vibrações lá no seu íntimo, ao
ponto de, espontaneamente, fazer esta confissão:
“Senhor,
eu estou para dar aos pobres metade dos meus bens, e naquilo em que eu tiver
prejudicado a alguém, pagar-lhe-ei quadruplicado.”
Foram
essas as palavras, as únicas palavras que pronunciou. Não declarou a sua
crença, não externou medo da condenação eterna, não disse que frequentava algum
templo, enfim, não fez nenhuma profissão de fé. Reconheceu-se imperfeito,
reconheceu a possibilidade ou mesmo a probabilidade de haver guardado para si
dinheiro alheio, mas, de pronto prometia restituir o alheio quatro vezes mais,
de forma a não lhe restar no bolso nenhuma parcela alheia. E, olhando para mais
longe, via muita gente necessitada, carente de auxílio. Então, num rasgo de
simpatia, confessou a Jesus que ia dar a metade dos seus bens, a metade da sua
riqueza aos pobres, mas despojada da rapina.
E o
Mestre, após ouvir essa confissão toda espontânea, apenas disse: “Também este é filho de Abraão. Porque o
Filho do homem veio buscar e salvar o que tinha perecido.”
*
Lembremo-nos,
nesse episódio, de que Jesus passava por uma rua, cercado de numerosa multidão
que o buscava para ganhar alívio para seus males físicos e morais.
Zaqueu,
sendo baixo de estrutura, não podia ver a fisionomia do Mestre; e, não
resistindo à curiosidade de contemplar essa famosa entidade que só espalhava
benefícios e simpatias, correu adiante e subiu a uma árvore, assim estaria
garantida a satisfação da sua justificada curiosidade. Nem se lembrou de que
era membro do funcionalismo público, e por isso talvez, não lhe ficasse bem,
encarapitar-se no galho de uma arvore, como fazem os meninos. Não olhou para
isso, não procurou saber se era bonito ou não, trepar numa árvore. O que desejava era tão somente satisfazer ao coração.
Eis
que, ao passar a multidão, Jesus olha para Zaqueu, e, sem lhe fazer pergunta
sequer, diz apenas isto: “Zaqueu, desce
depressa, porque importa que eu fique hoje em tua casa”. - Nessas poucas palavras, Jesus deu uma soberba lição
a todos os membros da sua comitiva. Ele sabia muito bem que aquele homem com as
pernas trançadas na árvore, era mal olhado e mesmo odiado pelos judeus, só pelo
fato de aceitar a função de um cargo estabelecido pelo governo romano. E por esse
motivo, merecia, como mereceu, o veneno da difamação promovida pelos fariseus e
pelos demais representantes da religião judaica.
Assim
mal visto e difamado, Zaqueu não podia frequentar o templo ou igreja de
Jerusalém, aos olhos de cujos professantes seria tido como herético, ou adepto
de doutrinas contrárias às do povo eleito.
Já
nos foi dado fazer rápido comentário em torno da parábola do Bom Samaritano.
Vimos que a posição dos samaritanos não era melhor que a de Zaqueu e dos demais
publicanos. Os samaritanos não eram materialistas, não eram incrédulos, pois
que adoravam a Deus no templo que levantaram ao pé do monte Garizim,
afastado de Jerusalém. Eram dissidentes, razão por que não comungavam com os
judeus.
Jesus
mostrou o erro grave desse separatismo, indo buscar exatamente um desprezado
dos judeus para apontá-lo como verdadeiro praticante da solidariedade e da
fraternidade.
Em
outra vez coube a Zaqueu a escolha do Mestre, para mostrar igualmente que o ser
“publicano” nada era, como empecilho para saber amar. E Zaqueu foi tido como
irmão de Jesus, porque filho de Deus.
Nestes
casos, ressalta vivo o ensino segundo o qual, não existem privilegiados nem
condenados. Estas condições, estes dois estados condicionais, existiam, de fato,
mas foram criados pelo religiosismo judaico, pelo orgulho do farisaísmo, essa forma
disfarçada de incredulidade, de incredulidade com roupagem de espiritualismo.
Quando
o fariseu orava lá no templo - no caso figurado por Jesus -, podia muito bem
ter dito: "Oh, meu Deus! Eu sei que sois infinitamente justo e
misericordioso! Sei que sou imperfeito aos vossos olhos, mas não sou um
injusto, um adúltero, um ladrão, como os demais homens, assim como esse
publicano ali a um canto, neste templo.”
Para
esclarecer aquelas multidões sedentas de luz e famintas de consolação, era
preciso derribar o falseado doutrinarismo religioso dos doutores da lei, e
mostrar o nenhum valor do credo farisaico na edificação moral dos homens. Para
tanto, Jesus não procurou exemplos dentro do povo de Israel, mas, precisamente,
propositadamente, deliberadamente, apresentou figuras estranhas ao judaísmo,
exatamente aquelas figuras desprezadas e até marcadas pelo Supremo Conselho
Eclesiástico ou Sinédrio, como seja o Centurião Romano, pagão reconhecido; a
Mulher Samaritana, esta, de baixa condição moral; o Bom Samaritano, o publicano
Zaqueu. Estas personagens representam significativo papel no programa
educacional do Grande Mestre.
A
primeira personagem é o Centurião ou comandante de um batalhão romano; um
estranho, um estrangeiro, fiel, talvez, ao culto pagão da Roma Imperial.
A
segunda personagem é a Mulher Samaritana, que por ser samaritana, estava proibida
de falar com judeus, e Jesus era judeu...
A
terceira personagem é o Bom Samaritano, e a quarta é o publicano Zaqueu.
Notemos
que Jesus não faz referência alguma ao “modo” de crer dessas criaturas. Este
ponto não é sem importância para ser desprezado. Há razão intencional no silêncio
do Mestre, quanto a esse ponto, mas razão que fala por si, sem necessidade de
explicações. Basta que consideremos o modo de agir do Mestre, e estará
esclarecido o que se nos afigurava razão “oculta”. Repisemos o que atrás ficou
dito: o publicano Zaqueu mereceu especial atenção de Jesus, porque era um
transviado, um decaído; reconhecia que havia claudicado nas funções do cargo, havia
andado como um coxo, no caminho do dever, prejudicando a seus semelhantes. Mas,
sob a influência da pureza de Jesus, ali presente, sentiu-se mal, devido aos
gritos da própria consciência. E irrompendo vulcanicamente o desejo de se
tornar digno da estima daquele visitante cuja presença lhe proporcionara tão
agradável impressão, eis que imediatamente se lembrou de suas vítimas, e não
quis mais saber desses tortuosos caminhos. Era o primeiro passo para a
reparação do passado pejado de faltas.
Nenhuma
exigência lhe fez Jesus. Zaqueu não formulou nenhum pedido. Não disse que
desejava aplacar a ira de Deus, não invocou perdão para o seu passado tenebroso.
Abriu o seu coração, e manifestou o sentimento de amor por seus semelhantes,
com os quais queria viver, daquela hora em diante, em harmonia, único meio de
equilibrar a sua vida. Sentia as mais intensas vibrações do sentimento de
justiça, e esse sentimento apontava-lhe os novos rumos para uma nova vida.
Nos
outros episódios narrados pelos evangelistas, geralmente dizia Jesus: “-Vai que
a tua fé te sarou”, ou “Seja feito segundo creste”.
No
caso deste publicano, apenas disse o Mestre: “-Este também é filho de Abraão; porque o Filho do homem veio salvar o
que havia perecido.” E Zaqueu estava salvo da escuridão em que vivia.
Jesus, que é a luz dos homens, viu aquela alma iluminar-se com a sua presença. E, diante da confissão espontânea do
pecador, de que não mais continuaria a cometer descaídas, e que iria viver em
paz com os homens, a quem daria toda a assistência possível - nada tinha Jesus
a objetar, nada a exigir de um filho pródigo que buscava a casa paterna, no silêncio
imposto pela voz da consciência satisfeita.
Esse
exemplo, o de Zaqueu, deve ser imitado, na mudez da sua eloquência. Essa
criatura não olhou para fora de si, como o fariseu, não disse a Deus que os
demais homens são criminosos. Essa criatura, agora transformada no seu
interior, não disse a Jesus que sairia pelo mundo para doutrinar os homens. O
que se sabe acerca de Zaqueu é só o que ali está no terceiro Evangelho. Um
homem que cuidaria de se corrigir a si, somente a si, valendo-se do potencial
de energias gerado por sua fé no poder e no amor de seu Mestre. Não pretendia
ganhar o Reino dos Céus como inspetor de polícia secreta como o fariseu que,
mecanizando sua reza, nela denunciava a Deus os demais homens, que são uns injustos, uns ladrões, uns adúlteros”
(Luc. XVIII, 11) - Não! Pretendia abrir o coração, limpá-lo de suas impurezas,
a fim de transformar-se numa nova criatura, para continuar a merecer o olhar e
a amizade de Quem o chamou de "filho de Abraão". E já sentia as
primeiras doçuras do Reino de Deus, ante a nova visão do mundo e das criaturas,
por quem já nutria uma simpatia estranha, com o propósito de ser-lhes útil.
Explicada
está a razão por que Jesus apontou o Capitão romano e o coletor Zaqueu como
portadores da verdadeira espiritualidade, da verdadeira fé, esta sem exemplo
entre o povo de Israel.
A
Mulher Samaritana foi a escolhida como missionária entre os seus co-provincianos,
e a sua palavra devia propagar-se, como se propagou, às províncias próximas. Os
seus ouvintes lhe deram crédito, porque ela começou a sua pregação anunciando
os seus próprios pecados, e pecados bem graves... “Vinde, e vede um homem que
me disse tudo o que eu tenho feito; será este porventura o Cristo? - Saíram pois da
cidade, e vieram ter com Ele”. (João, IV 29, 30). Sim!
Ele
me disse tudo o que eu tenho feito, entre cujos pecados este: que minha vida é
irregular, é desonesta, pois que não sou solteira, nem casada, nem viúva; que
tive cinco maridos, e o homem com quem estou vivendo não é meu marido... Mas,
pedi-lhe a “água viva”, a “Moral Evangélica”, que Ele disse possuir... “Ora
daquela cidade foram muitos os samaritanos que creram em Jesus por causa da
palavra da mulher que dava este testemunho: Ele me disse tudo quanto eu tenho
feito. Vindo pois ter com Ele os samaritanos, pediram-lhe que se deixasse ficar
ali com eles. E Ele ficou ali dois dias. E foram então muitos mais os que creem
n'Ele, pelo ouvirem falar. De sorte que diziam à mulher: não é já sobre o teu
dito que nós cremos n'Ele, mas é porque nós mesmos o ouvimos, e porque sabemos
ser este verdadeiramente o Salvador do mundo." (Vs. 39 a 42).
Essa
decaída é que devia difundir a notícia profética segundo a qual, todos os credos,
todos os cultos externos, todas as exterioridades de religiosismo teriam de
desaparecer, de perder o seu uso, pois que Deus é Espírito, é Amor, é
Inteligência, é Pensamento, e, sendo Ele o Senhor do céu e da terra, não habita em templos
feitos pelos homens... (Discurso de Paulo
no areópago ou tribunal ateniense de magistrados e de sábios, em Atos dos Apóstolos,
XVII, 24).
Sim!
O verdadeiro, o único templo para morada do Amor, da Inteligência, do Pensamento,
é o coração dos filhos, templo sem dogmas, sem dissidências, sem ritualismos,
estas barreiras que determinam o separatismo entre os homens, entre as
denominações que se presumem cristãs - semelhante, esse separatismo, ao
existente entre os judeus e os samaritanos.
O Bom
Samaritano não foi nomeado missionário, porque já o era, comprovadamente,
missionário silencioso e não predicante.
O
Mestre não exigiu de Zaqueu, não exigiu do Samaritano, não exigiu da Mulher de
Samaria, nem do Centurião, nem de Maria Madalena ou de outra qualquer criatura
-, nenhuma observância ou obediência a determinadas regras religiosas. Nunca
falou aos discípulos que deviam aconselhar os homens a professarem esta ou
aquela fé religiosa. Nenhuma exigência neste sentido. Aquela mulher apanhada em
adultério, a essa mesmo, disse o Mestre apenas estas resumidas palavras: “Nem
eu tampouco te condenarei; vai, e não peques mais.” (João, VIII, 11).
Não somente
isso. O Novo Testamento não registra a curiosidade de Jesus em saber a crença
alheia. Quando aquele doutor da lei, cheio de erudição religiosa, indagou sobre
o modo de ganhar o reino de Deus, ouviu em resposta: “Que é o que está escrito
na lei? Como lês tu?” (Luc. X, 26) - Nessa passagem evangélica, após haver
ouvido o Interrogante recitar com acerto o mandamento máximo da lei, quis o
Mestre por em evidência o legalismo literalista do doutor, que sabia ler a lei
com os olhos carnais mas não com os espirituais; sabia a letra mas ignorava o
espírito vivificador da letra; o doutor da lei não tinha olhos de ver, pois não
quem era o seu próximo...
Mas,
qual o motivo por que Jesus não procurava conhecer a crença dos que o cercavam?
Simplesmente para ser coerente com o seu Evangelho, Ele, que pregou o
Universalismo ou a unidade do destino, como se vê nesses exemplos citados, que
refletem nitidamente a sua doutrina: “Quem
não é contra vós, é por vós. Pelo fruto é que se conhece a árvore. Assim, luza
a vossa luz diante dos homens; que eles vejam as vossas boas obras, e
glorifiquem a vosso Pai que está nos céus”.
Eis
aí inteiro o seu Evangelho: pelas obras é que seremos julgados. No cap. XXV de
Mateus está a chave de ouro com que o excelso Mestre fechou o assunto. Ali está
resumida a sua escola, a sua doutrina ou seja todo o seu pensamento que é o
pensamento do Pai.
Com o comentário a esse notável
capítulo é que encerraremos a tese epigrafada na página inicial desta obrinha:
"Seremos salvos pela fé ou pelas obras?"
Antes,
porém, de esflorar o importante assunto, preciso se faz ligeira análise da
expressão “suplício eterno”, que se lê no ultimo versículo desse capítulo do
livro inicial do Novo Testamento.
Mas,
há outros pensamentos nas páginas sagradas que merecem, e, mais que isso, que
requerem meditação. Tomemos o que se contém na palavra:
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