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sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Profissão de Fé - Parte 1



Profissão de Fé
por Gustavo Macedo
Reformador (FEB) a partir de 15 de Abril de 1905
1
             Quando a gente penetra na região do Espiritismo e vai levantando pouco a pouco o véu das belezas que nos estavam encobertas, é que tem pena de não ter encontrado há mais tempo o verdadeiro tesouro da Terra!

            Bem me recordo ainda, quando, há mais de dez anos, a bordo de um navio, transpunha a barra em demanda do sul, para alinhar-me nas fileiras da família franciscana.

            Ia comigo um frade moço e fanático.  Quando saudoso olhava para as paragens onde nasci, quando meu coração sangrava de saudade pelo Rio de Janeiro, onde deixava afeições de mãe, irmãos, amigos, e dos templos em que passava horas de beatismo, quando assistia ao triste espetáculo dos irmãos que se trucidavam em guerra civil, encostado à amurada do paquete, uma só palavra ouvi de consolo: “- Diga adeus ao Rio.”  Era o alívio que o religioso dava a uma alma despedaçada pela saudade!

            Levava a alma em delírio místico. Antevia o gozo da vida contemplativa; já me sentia no coro, enfileirado entre os monges, a entoar os salmos monótonos do breviário, e a fazer todas as mesuras do ritual monástico.

            Penetro em Blumenau, entro à noite no convento, e a fradaria toda amortalhada em seus hábitos, cingidos com cordas nodosas, e os pés enfiados em alpercatas, davam-me o aspecto de que o exterior espelhava bem o interior daquelas almas!

            Puro engano! A ilusão se desfez; e, para me tornar religioso, tive necessidade de abandonar, sobre a enxerga do cubículo, as vestes do patriarca de Assis. Ali se fanatizavam os sentidos, mas não se elevava a alma para Deus! Rezava-se, comia-se, dormia-se, falava-se e guardava-se silêncio, tudo a horas determinadas.

            O que não encontrei, não conheci, não vi, foi a caridade! A doutrina do Cristo era o pretexto para justificar o egoísmo dos cenobitas.

            Muitas e muitas vezes estive enfermo. Nunca tive a minha cabeceira a visita de um irmão para consolar-me, para ministrar-me um remédio!

            Era fanático, bem fanático ainda, quando abandonei o mosteiro, para poder ser cristão.

            Obsedado ainda pelos espíritos não sei se deva dizer perseguidores, muito tempo me conservei chumbado às grilhetas do fanatismo. Os anos, a experiência, o frequentar constante das sacristias, o delírio religioso, a enfermidade mental, direi melhor, cedeu lugar à razão; mas como não tinha com que substituir o ultramontismo, a descrença ia erguendo-se dos destroços do fanatismo!

            Ouvia falar do Espiritismo: alguns anos antes um padre me falara dele, afirmando-me ser obra diabólica. Durante muito tempo repeti a mesma sandice. Supunha-o obra de loucos, o que era efeito da ignorância. Procurei a igreja protestante, só encontrei lá a secura esterilizadora da letra que mata. Ao menos o catolicismo tem a poesia do seu culto pagão!

            Frequentei o Apostolado Positivista; o saber profundo do seu vice- diretor assombrava-me. Mas a alma continuava seca.

            Não se dava comigo, ouvindo o ilustre pregador, o mesmo que com S. Agostinho ouvindo os sermões de S. Ambrósio.

            O orador ilustrava o meu espírito, mas deixava o coração desolado; a humanidade é de alguma sorte um Deus abstrato!

            Deus queria revelar-me a verdade, a luz era demais intensa à debilidade dos meus olhos; tinha que ir de gradação em gradação; tinha de galgar as escadas do erro, para chegar depois ao templo da verdade, que é a revelação espírita. O que é o Espiritismo? Não é preciso dize-lo aos leitores desta revista, que o sabem de sobra. Para mim foi a tábua de salvação, atirada no mar da descrença e do desespero em que me debatia.

            Julgo-me no dever de denunciar aos meus irmãos, que vivem escravos do fanatismo, que a igreja é a negação da doutrina do Cristo, e que as suas doutrinas matam as aspirações mais nobre e alevantadas do coração humano!

        2
Filho, não te amofines por alguém fazer de ti mal conceito ou dizer coisas que não gostes de ouvir. 
 (Imitação de Cristo XXVIII, Liv. III)

            Todas as vezes que a Igreja Católica perde um membro, que dela se afasta, não tarda de acusá-lo das maiores faltas, e a afirmar que a apostasia é oriunda dos vícios, crimes e orgulho do apóstata. No entanto, a Igreja é uma escola de orgulho. E toda a sua milícia ou clericazia não é um modelo de humildade, cordura e honestidade!

            A história dos crimes dos papas, frades, bispos e clérigos encontra a síntese no estabelecimento da inquisição, com S. Torquemada à frente.

            Ocioso seria repetir o que é sabido e não entra no plano destes modestos escritos.

            Demais, a igreja não usará hoje desses meios violentos; não porque a sua índole tenha mudado, mas porque os tempos atuais o não comportam. Suas armas são outras. As armas de hoje são o artifício e a intriga. Desvenda-las é o fim a que nos propomos, como dissemos em nosso artigo passado.

            A ação do catolicismo está hoje unicamente reduzida à mulher. Basta assistir a um ato religioso em qualquer templo católico, para ver que toda a força da igreja reside no elemento feminino. Algumas crianças acompanham as mães, alguns homens as famílias, muitos para encontrar as namoradas e pouquíssimos por devoção.

            Em outros tempos, a igreja aliava-se aos reis e imperadores, e os tinha sob seu poder, porque eram dela dependentes.

            Gregório VII dizia, no século XI: “Os reis e os príncipes trazem sua origem no demônio. Inspirados pelo espírito maligno, se propõe a dominar seus semelhantes. São arrastados por ambição vergonhosa e intolerável presunção. Os meios pelos quais se propõem realizar os detestáveis fins, são a rapina, o homicídio, a perfídia e todos os crimes imagináveis. Estes são os grandes da terra, que tratam de avassalar os servos do Senhor. Homens altaneiros, filhos do orgulho, têm a temeridade de humilhar os filhos de Deus, chamando-se príncipes do mundo.

            Uma dignidade inventada pelos homens que desprezam a Deus, não devia estar subordinada à dignidade que a providência instituiu para sua honra, e que a colocou no mundo por sua misericórdia?”

            Joaquim Chiriboga, comentando essa passagem, diz:
            “Segundo isto, os príncipes trazem sua origem do demônio e os papas de Deus; desaparece a legitimidade do estado justificada pela soberania da igreja, de tal maneira que o vigário de Jesus Cristo é a fonte de todo poder, e só por sua concessão pontifica exercem os soberanos a autoridade temporal.”
            A Igreja, tendo perdido o terreno que lhe dava a teoria do direito divino e, querendo recuperar o poder, palmo a palmo perdido, agarra-se à parte feminina da humanidade, transformando-a em intermediária entre os profissionais da devoção e a parte incrédula e indiferente da sociedade, que é a masculina.
            Lança mão do confessionário e da intriga da sacristia.
            Destarte, a mulher, sempre anatemizada pela Igreja, é usada como instrumento de sua ambição e intolerância.
            A simples título de curiosidade, vamos transcrever, antes de progredir, algumas sentenças de escritores clássicos da igreja sobre a mulher:
            “Origem de crimes, arma do diabo! Quando vedes uma mulher, acreditai que não tendes diante de vós um ser humano, nem ainda um animal feroz, mas o diabo em pessoa. A sua voz é o silvo da serpente.” (S. Antonino).

            “A mulher é semelhante ao escorpião, sempre pronta a morder”. (S. Boaventura).

            “A mulher é a peste das pestes! Dardo do demônio! Por intervenção dela, venceu o demônio a Adão e lhe fez perder o paraíso.” (S. João Crisóstomo).[1]

                As mulheres são indignas de receber o sacramento da Ordem, e não podem tocar nos vasos santos, sob pena de excomunhão!

            O simples fato delas sentarem-se no sub-pedanio do altar, as faz excomungadas!

            A Igreja, no entanto, por seu intermédio, obtém tudo, por serem devotadas penitentes.

            Sendo artigo de fé: “que a penitência (confissão) é um sacramento instituído por Jesus Cristo para perdoar os pecados depois do batismo,” todo fiel que não confessar os pecados, sem exclusão de um só, irá pagar por toda a eternidade no inferno. Basta omitir um só pecado, para a confissão ficar nula! Pela penitência não se cobram direitos especiais, como pelos outros sacramentos, mas tira-se um resultado muito produtivo.

            Muitas grandes fortunas têm vindo pela confissão, mediante a qual se obtém doações e legados.

            Alguns confessores atraem viúvas ricas ao confessionário e lhes insinuam que a viuvez é uma misericordiosa disposição do céu; adotando-a, renunciam ao mundo e à família, desprendendo-se dos bens da fortuna em benefício da Igreja, para assegurarem melhor a sua salvação. Outros formam verdadeiras vocações fictícias, fazendo com que inexperientes donzelas entrem para o claustro, já para conservarem as ordens religiosas das quais são capelães e interessados, já para fazê-las renunciar, em favor da comunidade, os dotes que possuem.

            Quantos e quantos pais não têm visto por esse meio suas filhas arrebatadas do lar para a inutilidade de uma vida contemplativa, ou melhor ociosa e fanática.

            Segredos do lar, segredos de Estado, tudo sabem pelas confissões das mulheres e filhas dos pobres pais de família, cuja autoridade é nula pela ação perniciosa e absorvente que exerce o confessor!

            Entre as confessadas por sua vez há verdadeira polícia. Vigiam-se, observam-se, e como desposadas espirituais que se julgam dos confessores, têm entre si verdadeiro ciúme, que se desenvolve pela intriga, por todas quererem a sua preferência.

            Há senhoras casadas que abandonam os seus deveres domésticos para se entregarem às práticas supersticiosas da igreja.

            Choram pelo confessor, julgam uma delícia beijar-lhe a mão, e a ele se queixam de todas as questões domésticas! Entram pelas estalagens, fazem visitas fingidas, dão esmolas, tudo com o fim de levar aos pés dos sacerdotes, para ficarem salvas, as almas que julgam pecadoras por não cumprirem os preceitos da Igreja.

            E vão assim contando aos padres tudo o que sabem, transformando as sacristias em verdadeiros focos de intrigas.

            Os sacerdotes ficam ao corrente de tudo que se passa nos lares domésticos.

            Explicaremos depois os meios que empregam para conservar o fervor das matronas e premiar lhes a dedicação.


[1]  Cognominado ‘o boca de ouro’.
3
                        “Porque enquanto houver uma mulher constituída física, intelectual e moralmente como a que Jeová com uma tão grande inspiração de artista fez da costela de Adão, - haverá sempre ao lado dela, para uso de sua fraqueza, um altar, uma imagem e um padre.”  (Eça de Queiroz - Fradique Mendes, pág. 155). 
           
            São instituídas associações religiosas exclusivamente para o sexo feminino, tendo como diretores espirituais sempre sacerdotes. E quando algumas não sejam exclusivistas, os homens são em minoria, lá não vão e não tem por isso ação alguma. Sabe o clero, por experiência, que “uma religião, quanto mais se materializa, mais se populariza e, portanto mais se diviniza” [1] Por isso trata de criar associações aparatosas, com insígnias e estandartes. As principais que conhecemos são: Filhas de Maria, com fitas de cores conforme os graus; Apostolado da Oração, com fitas vermelhas, medalhas, quadros e distribuição de mistérios, e outra do mesmo gênero intitulada - Guarda de honra do Coração de Jesus.

            As senhoras que se distinguem pela exaltação clerico-maníaca são premiadas com cargos de zeladoras, presidentes e secretarias. Imitando seus diretores, são em geral de um orgulho desmedido. Trajam no templo como no baile. Vão pelas casas pedindo esmolas para festas e procissões, com que, em geral, lucram o clero, armadores e músicos, que muitas vezes tem coupé à sua disposição.

            Há nelas uma verdadeira idolatria pelos objetos de devoção, aos quais, à maneira de talismãs ou manipanços, atribuem virtudes miraculosas.

            Nesta persuasão, colocam medalhas, corações, etc. nas carteiras dos maridos, irmãos e namorados, chegando, quando a seu ver há necessidade, a descoser o forro dos casacos para neles introduzir um desses amuletos. Quase todas usam bentinhos milagrosos ou escapulários, para ficarem livres do inferno, ou do purgatório, serem salvas no primeiro sábado, etc. Consta o escapulário ou bentinho de dois pedacinhos de lã, presos por cordões, ficando, á guisa de suspensórios, um quadradinho no peito, outro nas costas. Há tanta importância nesse ato, que só os padres autorizados podem benzê-los! É preciso uma graça especial, enquanto que, por exemplo, para dizer missa, que é a fabricação de Deus, e assim muito mais importante, não é preciso mais que a ordenação ou sagração do bispo e autorização da Câmara Eclesiástica, depois de pagos os respectivos emolumentos.

            As solenidades mais tocantes que celebram são as comunhões gerais.

            O leitor sabe o que é a comunhão? Pois é a ingestão de Jesus na forma eucarística, isto é, na hóstia consagrada pelo sacerdote.

            O singular, porém, é que a maior parte dessa gente tanto come Jesus e não fica humilde e doce: pelo contrário, faz-se veículo de intrigas e cultiva a maledicências! Tudo com tanto zelo pela obra do Senhor!

            A ignorância desses tais em matéria religiosa é de pasmar! Os sermões são modelos de disparates!. As devotas, porém, gostam muito de os ouvir, tal qual o Marquês de Marialva, que muita apreciava os sermões recheados de latim, por não entendê-los.

            O pregador, transformado em ator, entremeia a oração de brados e exclamações: “ah! oh! ai!!! eis o coração que tanto amou os homens!” As devotas choram, ele invectiva os dissidentes, todos os que não comungam com o catolicismo, exige em nome de Deus o culto material de diversas partes do seu corpo, e enxota-os para o inferno!

            Quase todo o clero só conhece obras de devoção, polêmica religiosa e sobretudo sermões. Da história quase que só a parte eclesiástica, e quanto a biografias, pouco mais do Flos Sanctorum.

            Das outras religiões pouco conhecem e daí, quando falam delas, uma série de falsidades.

            Preciso, porém, é notar que só podem ler obras que não estejam no Index.

            Como se vê, a instrução católica é falsa, porque é acanhada e exclusiva.


[1]  Eça de Queiroz - Fradique Mendes pág. 155.
4
            Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. (Mateus Cap. X, v. 8).

            Há no clero católico duas ordens distintas: a dos regulares e a dos seculares. Por agora trataremos apenas da segunda. Os seus membros, indiferentes à religião, são nomeados vigários, coadjutores e capelães de irmandades. Vivem do ministério religioso, recebem espórtulas dos atos que celebram, exceção feita de batizados, casamentos e encomendações de defuntos, que são prebendas dos vigários. Não gostam de ser confessores senão quando párocos, porque a esse cabe o lucro dos sacramentos. Desempenham suas funções, como qualquer empregado público ou comercial, exigindo sempre a paga do seu trabalho.

            Eça de Queiroz tem sobre esta figura de padres, de que tratamos, um estudo perfeito na sua descrição do padre Salgueiro, e que por esse motivo pode ser tomada como tipo geral da espécie. A esse título vale a pena reproduzir-lhe os principais trechos.

            Diz ele que padre Salgueiro “resume, com fidelidade de índice, o pensar, e o sentir, e o viver, e o parecer da classe eclesiástica em Portugal.”  Nunca, desde que foi colado à sua paróquia, se considerou senão como funcionário público, cujo uniforme era a batina.

            Nomeado pelo poder civil, “as suas relações portanto nunca foram como céu, (do céu só lhe importava saber se estava chuvoso ou claro) mas com a secretaria dos negócios eclesiásticos.”

            Os sacramentos, considerava-os meras cerimônias civis; era hábil na sua aplicação, casada com perícia e bom rigor litúrgico, perfeito em unir as mãos com a estola, cabal na ejaculação do latim, porque era subsidiado pelo Estado para casar bem os cidadãos, e, funcionário zeloso, não queria cumprir com defeito funções que lhe eram pagas sem atraso.

            Sua ignorância era deliciosa. Além de raros atos da vida de Jesus, a fuga para o Egito no burrinho, os milagres das bodas de Caná, o azorrague caindo sobre os vendilhões do templo, certas expulsões de demônios, nada sabia do Evangelho - que considerava todavia muito bonito!

            À doutrina de Jesus era tão alheio como à filosofia de Hegel. Da bíblia só conhecia episódios soltos, como a Arca de Noé, Sansão arrancando as portas de Gaza, Judite degolando Holofernes.

            Não compreendia que a sua missão de pastor coubesse o dever de consolar dores, pacificar inimizades, dirigir arrependimentos, amparar e auxiliar os infelizes.

            Nada além das funções rituais.

            “Há ali uma criança para batizar? Padre Salgueiro toma a estola e batiza. Há ai um cadáver para enterrar? Padre Salgueiro toma o hissopo e enterra.” Assim agrada o seu bispo, é quanto basta.

            Sobre seu valor mental não resistimos ao desejo de transcrever o primoroso estilista.

            “Não falei[1] da sua inteligência. É prática e metódica - como verifiquei, assistindo a um sermão que ele pregou pela festa de S. Venâncio. Por esse sermão encomendado recebia o padre Salgueiro vinte mil réis - e deu por esse preço um sermão suculento, documentado, encerrando tudo o que convinha à glorificação de S. Venâncio. Estabeleceu a filiação do Santo; desenrolou todos os seus milagres (que são poucos) com exatidão, exarando as datas, citando as autoridades; narrou com rigor hagiológico o seu martírio; enumerou as igrejas que são consagradas, com as épocas da fundação. Enxertou destramente louvores ao ministro dos negócios eclesiásticos. Não esqueceu a família real, a quem rendeu preito constitucional. Foi, em sumo, um excelente relatório sobre S. Venâncio.

            Felicitei nessa noite, com fervor, o reverendo padre Salgueiro. Ele murmurou, modesto e simples:  S. Venâncio infelizmente não se presta. Não foi bispo, nunca exerceu cargo público!... Em todo caso, creio que cumpri.”

                                                                         *

            Reformemos, porém, a nossa exposição.

            As ordens poderosas sobretudo são compostas de maçons, livre pensadores e até protestantes.

            Os bispos e as congregações regulares as vêem com maus olhos. Como, porém, são ricas e poderosas e concorrem para o esplendor do culto e dão algumas vezes dinheiro aos bispos, estes as toleram e têm mesmo algum medo delas!

            Aos sacerdotes regulares são concedidas com prodigalidade espantosa as honrarias canônicas. São agraciados pelo papa, com títulos de monsenhores, cônegos, missionários apostólicos, e em alguns casos até com bispados regulares.

            Os seculares não sacerdotes têm títulos desde conde até o mínimo de camareiro de capa e espada.

            Dos padres não temos certeza, porém dos seculares afirmamos que seus títulos são quase todos comprados, de acordo com a tabela da Santa Sé. Quem escreve essas linhas já foi vítima do que na pitoresca linguagem popular se denomina “conto do vigário” no caso seguinte:

            Um amigo muito desejava possuir um título da Santa Sé. Devedor que lhe éramos de muitos obséquios, dirigimo-nos a um capuchinho respeitável, pedindo-lhe nos guiasse nesse negócio. Dias depois, a mandado do referido religioso, apresentou-se em nossa casa um indivíduo que aqui desempenhava as funções de - despachante apostólico. Mostrou-nos a tabela de venda dos títulos; o mais alto custava cerca de quinze contos; era, se nos não enganamos, marquês com descendência.

            Achamos caro e escolhemos o mais barato: camareiro de capa e espada. Custou-nos o logro duzentos e quarenta mil réis! O pobre e honesto capuchinho não teve culpa, foi, como nós, iludido. As honras servem apenas para uso de vestes aparatosas e teatrais. Em geral, as devotas oferecem-nas aos sacerdotes.

            Enquanto isso, os pobres são geralmente tratados com pouco caso, e nos atos de sua vida religiosa, casamentos, batizados e, às vezes, até confissões, são quase sempre servidos pelo baixo clero. No próximo artigo trataremos de um ponto interessante e lucrativo: o casamento.


[1]  Fradique Mendes, pág. 230
5
           Não é bom que o homem esteja só: façamo-lhe um adjutório semelhante a ele. 
(Gênese Cap. II v. 18).

            “O sentimento do amor, associado à tendência da reprodução, constitui uma lei natural. Apoderar-se dessa lei foi tomar um completo domínio sobre a espécie humana. Com efeito, se as afeições que tendem ao matrimônio cabem debaixo da jurisdição da Igreja, esta tem em sua mãos os destinos da humanidade.”[1]

            Segundo a doutrina da Igreja, o matrimônio é um sacramento instituído por Jesus Cristo, para santificar o estado de esposos, dar-lhes graças por educarem os filhos e representa a união de Cristo com a Igreja. Sabe esta por experiência de quanto é capaz um ser apaixonado, ou interessado. Por isso, abusando do seu poder, procurou fazer da sua dependência a realização desses desejos, inventando o sacramento do matrimônio e fazendo crer ao povo que Cristo o instituiu! Quando o Divino Mestre veio à Terra, em visita messiânica, já existia o casamento; tanto assim que, como convidado às bodas de Canaã, com alguns discípulos e sua santa mãe, realizou o primeiro milagre, transsubstanciando a água em vinho.

            No Evangelho não há uma só palavra de Jesus instituindo o casamento, porque ele já existia.

            No Gênese se referem os casamentos completamente seculares entre Jacó, Lia e Raquel, entre Siquém e Dina.

            No Deuteronômio também é reconhecido o casamento sem intervenção da autoridade da Igreja. No 1º Livro de Reis é mencionado o de Davi e Micol.     
     
            Poderíamos ir mais longe neste terreno; as referências acima, porém, são suficientes aos intuitos desses artigos. Diremos, no entanto, antes de entrarmos na parte principal, que a Igreja, impondo o celibato ao clero, vai de encontro à moral e à doutrina de S. Paulo, que aconselha a Timóteo: “o bispo seja irrepreensível, esposo de uma só mulher, que tenha os filhos em sujeição e honestidade.”[2]

            Os padres da igreja oriental, tais como os ítalo-gregos, maronitas e caldeus, podem contrair núpcias antes de se ordenarem, tal como permite o concílio de Ancira. No Brasil, mais de trinta padres têm sido obrigados a se casar civicamente, para repararem faltas cometidas. Conhecedor que somos do coração humano não levamos a mal tais casamentos, pelo contrário, achamos o fato natural e muito simpatizamos com tais sacerdotes, convencidos de que o homem não pode viver sem afeição feminina.

            “Dai às paixões todo o ardor que puderdes, aos prazeres mil vezes mais intensidade, aos sentidos a máxima energia e convertei o mundo em paraíso; mas tirai dele a mulher e o mundo será um ermo melancólico, os deleites serão o prelúdio do tédio.”[3]

            A Igreja não deve fazer morrer para o sacerdote a esperança de completar a sua existência na terra. Os padres não são, pois, seres imorais; são como nós criaturas fracas, e por isso não podemos neste ponto atirar-lhes a primeira pedra. O que censuramos é os padres repudiarem publicamente pobres e inexperientes moças ultrajadas e abandonadas, bem como seus filhos, para não perderem pingues benefícios canônicos e a estima dos bispos. Aqui mesmo na capital, conhecemos um vigário neste caso.

            Entremos porém, na parte lucrativa do casamento.

            A repartição que trata dos papéis que para esse ato se exigem é a câmara eclesiástica. Ali nada se obtém sem dinheiro.

            Os emolumentos cobrados dão para pagamento do vigário geral, secretário, escrivães e outros funcionários. Grande número de pobres recua ante a despesa. Um secretário me dizia que o vigário geral queixava-se quando a renda não era boa. Os estrangeiros e os estaduais têm de justificar seus estados civis na referida repartição: pagam-se 25$500 por esse ato preparatório, sendo 500 réis de papel, quando em geral talvez não se gaste um caderno.

            Quando alguma pessoa não se pode casar na Igreja, por não ter dinheiro para as carruagens, tem que pagar 100$000 réis para obter licença afim de fazê-lo em casa!

            Os proclamas, nas missas convencionais das freguesias, custam dois mil réis cada um.

            São lidos na catedral, nas freguesias do nascimento dos nubentes e nas de residência destes.

            O fim dessa proclamação é pedir a bênção de Deus sobre os nubentes, para que se manifestem os impedimentos que possam haver.

            “Grave pecado comete[4] quem conhece tais impedimentos e não os declara.”

            Ninguém liga importância à significação espiritual dessa cerimônia que, em populosas freguesias produz avultada renda aos párocos. Os casamentos celebrados depois das seis horas da tarde pagam nova licença. Os realizados por padres que não sejam vigários, só se efetuam com licença destes, depois de pagos novos emolumentos, restando ainda as espórtulas do celebrante e sacristão. “Há duas espécies de impedimentos: os que tornam o matrimônio ilícito, e impedimentos dirimentes, que o tornam nulo, constituindo as partes inábeis para contrair - 1º proibição de contrair matrimônio com certas pessoas; como hereges, ou em certas épocas, como advento e quaresma; - 2º parentesco natural ou consanguinidade, etc.”[5]

            “As partes que se encontram ligadas por algum impedimento dirimente não podem contrair verdadeiro matrimônio, senão depois de haverem obtido a dispensa da autoridade eclesiástica.”

            Como veem os leitores do que acima ficou transcrito, a Igreja cria os impedimentos e reserva-se o direito de anulá-los. Isto constitui fonte de renda da cúria romana e câmaras eclesiásticas. Falando das horríveis desordens que produziam as apelações para o papa, e aludindo a dois bispos alemães carregados de crimes, que, tendo apelado para Roma e levando consigo bastante dinheiro, não haviam sido repelidos nas suas pretensões e ofertas, S. Bernardo exclama:

            “Grande novidade! Quando até o dia de hoje rejeitou Roma dinheiro?”

            Dizia mais o grande abade de Claraval, referindo-se à cúria: “é mais fácil entrar honesto do que tornar-se lá homem de bem.”

            A Igreja, com sua conhecida intolerância, desaprova os casamentos mistos, isto é, de católico com protestante ou outros dissidentes. Quando, porém, cede à força é sob as seguintes condições: os filhos serão todos educados na religião católica, o consorte desta crença não será levado a terras onde não possa praticar seu culto e fará toda a diligência para induzir o outro consorte, ao catolicismo.

            Tais casamentos são realizados nas sacristias e sem pompa alguma do rito. No entanto, o dissidente endinheirado é sempre melhor recebido do que o fervente católico pobre.

            O casamento católico é uma fonte de tanta renda que até dá para sustentar muitos procuradores de papéis.

            Por amor à brevidade encerramos aqui esta parte, afim de não retardar por mais tempo o esclarecimento do assunto, para nós de maior interesse, e que fará objeto do próximo artigo: a clero regular e os conventos.


[1]  J. Chiriboga, Luz del Pueblo, pág. 161
[2]  Epístolo a Timóteo Cap. III, vv. 2 a 4.
[3] A. Herculano, Eurico, prólogo.
[4]  Coffiné, Manual do Cristão, pág. 254
[5]  Padre Schouppe (jesuíta), Curso de Religião, pág. 202.


           Devem no bom religioso sobressair todas as virtudes, para corresponder o interior ao que de fora vêm os homens; e é razão que muitos mais ainda por dentro do que fora aparece, pois lá Deus nos olha, a quem em toda parte suma referência devemos e andar em sua presença com angélica pureza.  (Dos exercícios do bem religioso - Imitação de Cristo, Liv. I Cap. XXX)

            Eis-nos enfim chegado ao prometido e desejado ponto: o clero regular e os conventos. Esse clero é mais hipócrita que o secular.

            São rivais entre si um e outro pela concorrência que se fazem, dominando sempre os regulares, pelos cabedais de que dispõem, e tendo a preferência do beatismo.

            Ensina a Igreja ser a vida religiosa a mais perfeita e agradável a Deus; que os religiosos tomam como lei os simples conselhos evangélicos e, consagrados ao Senhor pelos três votos solenes: pobreza voluntária, obediência inteira e castidade perpétua, são os perfeitos discípulos do Cristo pela imitação de sua vida. Reduz-se, pois, consoante o ensino católico, a três gêneros a vida cristã: o matrimônio, o celibato e a vida religiosa, sendo no entanto de mero conselho a vida claustral: “pode tornar-se obrigatória no caso de alguém se achar em circunstâncias de não poder salvar sua alma sem o emprego deste grande meio de salvação.”[1]

            O desespero de salvação e perfeição, junto ao terror dos conselhos acima exarados, produz as tais vocações religiosas, que são o cultivo do egoísmo e a negação da caridade, manifestada pela intolerância religiosa.

            As pessoas que pretendem ser frades ou freiras, começam a frequentar com assiduidade as práticas devotas dos templos das comunidades, porque são mais supersticiosas e fanáticas.

            São os congreganistas, como os mais perfeitos, preferidos para diretores espirituais. Tudo neles é calculado. Andam de mãos enfurnadas nas mangas dos hábitos, os olhos baixos, o semblante de quem passa vida martirizada, as mãos sempre unidas, e sempre afetando grande humildade.

            Procuram ter verdadeiras especialidades devocionais: os beneditinos (frades da ordem de S. Bento) benzem as cruzes milagrosas do mesmo santo. É uma medalha com poderes miríficos, cuja notícia passamos a transcrever da regra do patriarca, a página 204:

            “Todos sabem que a cruz de S. Bento foi descoberta no ano de 1647 por confissão de um número de feiticeiras, que, fazendo dano considerável em Castro Natremberg, disseram que as fortes armas de seus feitiços jamais poderiam entrar onde estava a Santa Cruz com as letras de S. Bento, acrescentando que no Mosteiro Motesen, em Barbária, não puderam nunca entrar, por advertirem que nele estava esta Santa Cruz. Foi ela descoberta por diligência dos monges, e logo se provou a singular virtude dos efeitos dela, pela graça de Jesus Cristo, e patrocínio de S. Bento, que são dissolver dos corpos humanos todo gênero de feitiços e diabólicos desígnios. Na parte onde estiver esta Santa Cruz, como vestido, ou casa, não chega força de feitiços, nem feiticeiras. Os animais atacados de algum mal ocasionado por arte do demônio, benzendo-se com ela, e tocando-os, experimentam logo remédio. É defensivo para todos os perigos do mar e da terra, como a experiência está continuamente mostrando. Enfim, por virtude desta Santa Cruz e intercessão do Santíssimo Patriarca, obra o Deus infinitos prodígios nos que usam deste Antídoto, que se não se referem por estarem escritos, e serem constantes, principalmente contra todos os demônios, malefícios, feiticeiros, bruxas, etc.”

            Convém acrescentar: a referida regra é tão boa que lá está escrito no prefácio: “Serve esta Santa Regra contra tempestades, raios, trovões e feitiços: para a felicidade dos partos das mulheres e contra todo o poder do inferno, como tem mostrado a experiência, e ainda para defensiva de todas as enfermidades; livra de todos os perigos da terra e do mar, e nas guerras dos inimigos.”

            Os carmelitas (religiosos da ordem do Carmo) vendiam, há mais de 60 anos, o remédio denominado bálsamo milagroso.

            Consta-nos que, ao morrer o último religioso brasileiro, não querendo dar aos colegas estrangeiros a receita, deu-a a um parente, que abriu um negócio para vende-lo no largo da Lapa; fez reclame do preparado, dizendo ser o verdadeiro bálsamo que se vendia outrora no referido convento. Posteriormente, porém, os religiosos aprenderam o segredo, mas deixaram de fabricá-lo, por dar apenas o lucro de 200 réis por vidro.

            Passaram então a distribuir, supomos que diariamente, um novo preparado milagroso - a água de Santo Alberto, que é assim obtida:

            Colocam uma talha junta ao altar daquele santo, enchem-na de água, benzem-na, para expelir demônios, e dão na ao povo para a cura dos malefícios e enfermidades! Além disso benzem escapulários, que já explicamos o que sejam, em artigo anterior, e têm a virtude miraculosa “de ser escudo impenetrável em quaisquer perigos, amparo seguro na última hora contra as portas do inferno.”

            Essa promessa foi - dizem eles - feita pela virgem Maria, em aparição ao geral da ordem dos carmelitas, Beato Simão Stock.

            Os dominicanos (religiosos da ordem de S. Domingos) são especialistas em benzer rosários e enriquecê-los com indulgências. Foi instituído por S. Domingos de Gusmão, em cumprimento a determinações de Maria, que também lhe aparecera.

            É desnecessário tratar do rosário, por ser muito conhecido. Eles, porém, enriquecem-no com indulgências, que são: “a remissão da pena temporal devida pelos pecados já perdoados no sacramento da penitência”. Quer dizer: uma pessoa cumpre uma prescrição a que está anexa uma indulgência, fica dispensada de cumprir penas por pecados cometidos!

            Como veem, o poder do papa e bispos vai além da morte.

            Os capuchinhos tiram o diabo do corpo. Exorcizam os endemoinhados, e benzem o povo às sextas-feiras com a bênção de S. Francisco.

            Na igreja destes religiosos há anualmente exercícios espirituais. O superior uma vez os anunciou, dizendo que o seu fim era enxotar o diabo - que tem uma cauda “deste tamanho” (e dava as dimensões com os braços) - da cabeça e coração de muitos devotos daquela igreja.

            O principal de Santo Antônio dá a bênção deste santo nos mesmos dias, para cura de enfermidades. Como se vê, há uma verdadeira farmacopeia, e as suas curas desafiam a veia cômica dos escritores mais humoristas.

            Há no Brasil as seguintes ordens: cônegos premonstratenses belgas; maristas franceses; Verbo Divino italiano; capuchinhos italianos, e ultimamente franceses no RS; jesuítas italianos, franceses e alemãs; trapistas franceses; lazaristas franceses; dominicanos franceses; redentoristas holandeses e alemães; franciscanos holandeses e alemãs; salesianos italianos; augustinianos calçados e descalços vindos das Filipinas.

            Ainda teremos muito que palestrar sobre o assunto; voltaremos a ele no próximo número.

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