Profissão de Fé
por Gustavo Macedo
Reformador (FEB) a partir de 15
de Abril de 1905
1
Quando a gente
penetra na região do Espiritismo e vai levantando pouco a pouco o véu das
belezas que nos estavam encobertas, é que tem pena de não ter encontrado há
mais tempo o verdadeiro tesouro da Terra!
Bem me recordo ainda, quando, há mais de dez anos, a bordo de um navio,
transpunha a barra em demanda do sul, para alinhar-me nas fileiras da família
franciscana.
Ia comigo um frade moço e fanático. Quando saudoso olhava para as
paragens onde nasci, quando meu coração sangrava de saudade pelo Rio de
Janeiro, onde deixava afeições de mãe, irmãos, amigos, e dos templos em que
passava horas de beatismo, quando assistia ao triste espetáculo dos irmãos que
se trucidavam em guerra civil, encostado à amurada do paquete, uma só palavra
ouvi de consolo: “- Diga adeus ao Rio.” Era o alívio que o religioso dava a uma alma
despedaçada pela saudade!
Levava a alma em delírio místico. Antevia o gozo da vida contemplativa; já me
sentia no coro, enfileirado entre os monges, a entoar os salmos monótonos do
breviário, e a fazer todas as mesuras do ritual monástico.
Penetro em Blumenau, entro à noite no convento, e a fradaria toda amortalhada
em seus hábitos, cingidos com cordas nodosas, e os pés enfiados em alpercatas,
davam-me o aspecto de que o exterior espelhava bem o interior daquelas almas!
Puro engano! A ilusão se desfez; e, para me tornar religioso, tive necessidade
de abandonar, sobre a enxerga do cubículo, as vestes do patriarca de Assis. Ali
se fanatizavam os sentidos, mas não se elevava a alma para Deus! Rezava-se,
comia-se, dormia-se, falava-se e guardava-se silêncio, tudo a horas
determinadas.
O que não encontrei, não conheci, não vi, foi a caridade! A doutrina do Cristo
era o pretexto para justificar o egoísmo dos cenobitas.
Muitas e muitas vezes estive enfermo. Nunca tive a minha cabeceira a visita de
um irmão para consolar-me, para ministrar-me um remédio!
Era fanático, bem fanático ainda, quando abandonei o mosteiro, para poder ser
cristão.
Obsedado ainda pelos espíritos não sei se deva dizer perseguidores, muito tempo
me conservei chumbado às grilhetas do fanatismo. Os anos, a experiência, o frequentar
constante das sacristias, o delírio religioso, a enfermidade mental, direi
melhor, cedeu lugar à razão; mas como não tinha com que substituir o
ultramontismo, a descrença ia erguendo-se dos destroços do fanatismo!
Ouvia falar do Espiritismo: alguns anos antes um padre me falara dele,
afirmando-me ser obra diabólica. Durante muito tempo repeti a mesma sandice.
Supunha-o obra de loucos, o que era efeito da ignorância. Procurei a igreja
protestante, só encontrei lá a secura esterilizadora da letra que mata. Ao
menos o catolicismo tem a poesia do seu culto pagão!
Frequentei o Apostolado Positivista; o saber profundo do seu vice- diretor
assombrava-me. Mas a alma continuava seca.
Não se dava comigo, ouvindo o ilustre pregador, o mesmo que com S. Agostinho
ouvindo os sermões de S. Ambrósio.
O orador ilustrava o meu espírito, mas deixava o coração desolado; a humanidade
é de alguma sorte um Deus abstrato!
Deus queria revelar-me a verdade, a luz era demais intensa à debilidade dos
meus olhos; tinha que ir de gradação em gradação; tinha de galgar as escadas do
erro, para chegar depois ao templo da verdade, que é a revelação espírita. O
que é o Espiritismo? Não é preciso dize-lo aos leitores desta revista, que o
sabem de sobra. Para mim foi a tábua de salvação, atirada no mar da descrença e
do desespero em que me debatia.
Julgo-me no dever de denunciar aos meus irmãos, que vivem escravos do
fanatismo, que a igreja é a negação da doutrina do Cristo, e que as suas
doutrinas matam as aspirações mais nobre e alevantadas do coração humano!
2
Filho, não te amofines por alguém fazer de ti mal conceito ou dizer
coisas que não gostes de ouvir.
(Imitação de Cristo XXVIII, Liv. III)
Todas as vezes que a Igreja Católica perde um membro, que
dela se afasta, não tarda de acusá-lo das maiores faltas, e a afirmar que a
apostasia é oriunda dos vícios, crimes e orgulho do apóstata. No entanto, a
Igreja é uma escola de orgulho. E toda a sua milícia ou clericazia não é um
modelo de humildade, cordura e honestidade!
A história dos crimes dos papas, frades, bispos e clérigos encontra a síntese
no estabelecimento da inquisição, com S. Torquemada à frente.
Ocioso seria repetir o que é sabido e não entra no plano destes modestos
escritos.
Demais, a igreja não usará hoje desses meios violentos; não porque a sua índole
tenha mudado, mas porque os tempos atuais o não comportam. Suas armas são
outras. As armas de hoje são o artifício e a intriga. Desvenda-las é o fim a
que nos propomos, como dissemos em nosso artigo passado.
A ação do catolicismo está hoje unicamente reduzida à mulher. Basta assistir a
um ato religioso em qualquer templo católico, para ver que toda a força da
igreja reside no elemento feminino. Algumas crianças acompanham as mães, alguns
homens as famílias, muitos para encontrar as namoradas e pouquíssimos por
devoção.
Em outros tempos, a igreja aliava-se aos reis e imperadores, e os tinha sob seu
poder, porque eram dela dependentes.
Gregório VII dizia, no século XI: “Os reis e os príncipes trazem sua origem
no demônio. Inspirados pelo espírito maligno, se propõe a dominar seus semelhantes.
São arrastados por ambição vergonhosa e intolerável presunção. Os meios pelos
quais se propõem realizar os detestáveis fins, são a rapina, o homicídio, a
perfídia e todos os crimes imagináveis. Estes são os grandes da terra, que
tratam de avassalar os servos do Senhor. Homens altaneiros, filhos do orgulho,
têm a temeridade de humilhar os filhos de Deus, chamando-se príncipes do mundo.
Uma
dignidade inventada pelos homens que desprezam a Deus, não devia estar
subordinada à dignidade que a providência instituiu para sua honra, e que a
colocou no mundo por sua misericórdia?”
Joaquim Chiriboga, comentando essa passagem, diz:
“Segundo isto, os príncipes trazem sua origem do demônio e os papas de Deus;
desaparece a legitimidade do estado justificada pela soberania da igreja, de
tal maneira que o vigário de Jesus Cristo é a fonte de todo poder, e só por sua
concessão pontifica exercem os soberanos a autoridade temporal.”
A Igreja, tendo perdido o terreno que lhe dava a teoria do direito divino e,
querendo recuperar o poder, palmo a palmo perdido, agarra-se à parte feminina
da humanidade, transformando-a em intermediária entre os profissionais da
devoção e a parte incrédula e indiferente da sociedade, que é a masculina.
Lança mão do confessionário e da intriga da sacristia.
Destarte, a mulher, sempre anatemizada pela Igreja, é usada como instrumento de
sua ambição e intolerância.
A simples título de curiosidade, vamos transcrever, antes de progredir,
algumas sentenças de escritores clássicos da igreja sobre a mulher:
“Origem de crimes, arma do diabo! Quando vedes uma mulher, acreditai que não
tendes diante de vós um ser humano, nem ainda um animal feroz, mas o diabo em
pessoa. A sua voz é o silvo da serpente.” (S. Antonino).
“A mulher é semelhante ao escorpião, sempre pronta a morder”. (S.
Boaventura).
“A mulher é a peste das pestes! Dardo do demônio! Por intervenção dela,
venceu o demônio a Adão e lhe fez perder o paraíso.” (S. João Crisóstomo).[1]
As
mulheres são indignas de receber o sacramento da Ordem, e não podem tocar nos
vasos santos, sob pena de excomunhão!
O simples fato delas sentarem-se no sub-pedanio do altar, as faz excomungadas!
A Igreja, no entanto, por seu intermédio, obtém tudo, por serem devotadas
penitentes.
Sendo artigo de fé: “que a penitência (confissão) é um sacramento
instituído por Jesus Cristo para perdoar os pecados depois do batismo,”
todo fiel que não confessar os pecados, sem exclusão de um só, irá pagar por
toda a eternidade no inferno. Basta omitir um só pecado, para a confissão ficar
nula! Pela penitência não se cobram direitos especiais, como pelos outros
sacramentos, mas tira-se um resultado muito produtivo.
Muitas grandes fortunas têm vindo pela confissão, mediante a qual se obtém
doações e legados.
Alguns confessores atraem viúvas ricas ao confessionário e lhes insinuam que a
viuvez é uma misericordiosa disposição do céu; adotando-a, renunciam ao mundo e
à família, desprendendo-se dos bens da fortuna em benefício da Igreja, para
assegurarem melhor a sua salvação. Outros formam verdadeiras vocações
fictícias, fazendo com que inexperientes donzelas entrem para o claustro, já
para conservarem as ordens religiosas das quais são capelães e interessados, já
para fazê-las renunciar, em favor da comunidade, os dotes que possuem.
Quantos e quantos pais não têm visto por esse meio suas filhas arrebatadas do
lar para a inutilidade de uma vida contemplativa, ou melhor ociosa e fanática.
Segredos do lar, segredos de Estado, tudo sabem pelas confissões das mulheres e
filhas dos pobres pais de família, cuja autoridade é nula pela ação perniciosa
e absorvente que exerce o confessor!
Entre as confessadas por sua vez há verdadeira polícia. Vigiam-se, observam-se,
e como desposadas espirituais que se julgam dos confessores, têm entre si
verdadeiro ciúme, que se desenvolve pela intriga, por todas quererem a sua
preferência.
Há senhoras casadas que abandonam os seus deveres domésticos para se entregarem
às práticas supersticiosas da igreja.
Choram pelo confessor, julgam uma delícia beijar-lhe a mão, e a ele se queixam
de todas as questões domésticas! Entram pelas estalagens, fazem visitas
fingidas, dão esmolas, tudo com o fim de levar aos pés dos sacerdotes, para
ficarem salvas, as almas que julgam pecadoras por não cumprirem os preceitos da
Igreja.
E vão assim contando aos padres tudo o que sabem, transformando as sacristias
em verdadeiros focos de intrigas.
Os sacerdotes ficam ao corrente de tudo que se passa nos lares domésticos.
Explicaremos depois os meios que empregam para conservar o fervor das matronas
e premiar lhes a dedicação.
3
“Porque enquanto houver uma mulher constituída física, intelectual
e moralmente como a que Jeová com uma tão grande inspiração de artista fez
da costela de Adão, - haverá sempre ao lado dela, para uso de sua
fraqueza, um altar, uma imagem e um padre.” (Eça de Queiroz - Fradique Mendes, pág. 155).
São instituídas associações religiosas exclusivamente para o sexo feminino,
tendo como diretores espirituais sempre sacerdotes. E quando algumas não sejam
exclusivistas, os homens são em minoria, lá não vão e não tem por isso ação
alguma. Sabe o clero, por experiência, que “uma religião, quanto mais se
materializa, mais se populariza e, portanto mais se diviniza” [1] Por isso trata de
criar associações aparatosas, com insígnias e estandartes. As principais que
conhecemos são: Filhas de Maria, com fitas de cores conforme os
graus; Apostolado da Oração, com fitas vermelhas, medalhas, quadros
e distribuição de mistérios, e outra do mesmo gênero intitulada -
Guarda de honra do Coração de Jesus.
As senhoras que se distinguem pela exaltação clerico-maníaca são premiadas com
cargos de zeladoras, presidentes e secretarias. Imitando seus diretores, são em
geral de um orgulho desmedido. Trajam no templo como no baile. Vão pelas casas
pedindo esmolas para festas e procissões, com que, em geral, lucram o clero,
armadores e músicos, que muitas vezes tem coupé à sua
disposição.
Há nelas uma verdadeira idolatria pelos objetos de devoção, aos quais, à
maneira de talismãs ou manipanços, atribuem virtudes miraculosas.
Nesta persuasão, colocam medalhas, corações, etc. nas carteiras dos maridos,
irmãos e namorados, chegando, quando a seu ver há necessidade, a descoser o
forro dos casacos para neles introduzir um desses amuletos. Quase todas usam
bentinhos milagrosos ou escapulários, para ficarem livres do inferno, ou do
purgatório, serem salvas no primeiro sábado, etc. Consta o escapulário ou
bentinho de dois pedacinhos de lã, presos por cordões, ficando, á guisa de
suspensórios, um quadradinho no peito, outro nas costas. Há tanta importância
nesse ato, que só os padres autorizados podem benzê-los! É preciso uma graça
especial, enquanto que, por exemplo, para dizer missa, que é a fabricação de
Deus, e assim muito mais importante, não é preciso mais que a ordenação ou
sagração do bispo e autorização da Câmara Eclesiástica, depois de pagos
os respectivos emolumentos.
As solenidades mais tocantes que celebram são as comunhões gerais.
O leitor sabe o que é a comunhão? Pois é a ingestão de Jesus na forma
eucarística, isto é, na hóstia consagrada pelo sacerdote.
O singular, porém, é que a maior parte dessa gente tanto come Jesus e não fica
humilde e doce: pelo contrário, faz-se veículo de intrigas e cultiva a
maledicências! Tudo com tanto zelo pela obra do Senhor!
A ignorância desses tais em matéria religiosa é de pasmar! Os sermões são
modelos de disparates!. As devotas, porém, gostam muito de os ouvir, tal qual o
Marquês de Marialva, que muita apreciava os sermões recheados de latim, por não
entendê-los.
O pregador, transformado em ator, entremeia a oração de brados e exclamações:
“ah! oh! ai!!! eis o coração que tanto amou os homens!” As devotas choram, ele
invectiva os dissidentes, todos os que não comungam com o catolicismo, exige em
nome de Deus o culto material de diversas partes do seu corpo, e enxota-os para
o inferno!
Quase todo o clero só conhece obras de devoção, polêmica religiosa e sobretudo
sermões. Da história quase que só a parte eclesiástica, e quanto a biografias,
pouco mais do Flos Sanctorum.
Das outras religiões pouco conhecem e daí, quando falam delas, uma série de
falsidades.
Preciso, porém, é notar que só podem ler obras que não estejam no Index.
Como se vê, a instrução católica é falsa, porque é acanhada e exclusiva.
4
Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe
de mim. (Mateus Cap. X, v. 8).
Há no clero católico duas ordens distintas: a dos regulares e a dos seculares.
Por agora trataremos apenas da segunda. Os seus membros, indiferentes à
religião, são nomeados vigários, coadjutores e capelães de irmandades. Vivem do
ministério religioso, recebem espórtulas dos atos que celebram, exceção feita
de batizados, casamentos e encomendações de defuntos, que são prebendas dos
vigários. Não gostam de ser confessores senão quando párocos, porque a esse
cabe o lucro dos sacramentos. Desempenham suas funções, como qualquer empregado
público ou comercial, exigindo sempre a paga do seu trabalho.
Eça de Queiroz tem sobre esta figura de padres, de que tratamos, um estudo
perfeito na sua descrição do padre Salgueiro, e que por esse motivo pode ser
tomada como tipo geral da espécie. A esse título vale a pena reproduzir-lhe os
principais trechos.
Diz ele que padre Salgueiro “resume, com fidelidade de índice, o pensar, e o
sentir, e o viver, e o parecer da classe eclesiástica em Portugal.”
Nunca, desde que foi colado à sua paróquia, se considerou senão como
funcionário público, cujo uniforme era a batina.
Nomeado pelo poder civil, “as suas relações portanto nunca foram como céu,
(do céu só lhe importava saber se estava chuvoso ou claro) mas com a secretaria
dos negócios eclesiásticos.”
Os sacramentos, considerava-os meras cerimônias civis; era hábil na sua
aplicação, casada com perícia e bom rigor litúrgico, perfeito em unir as mãos
com a estola, cabal na ejaculação do latim, porque era subsidiado pelo Estado
para casar bem os cidadãos, e, funcionário zeloso, não queria cumprir com
defeito funções que lhe eram pagas sem atraso.
Sua ignorância era deliciosa. Além de raros atos da vida de Jesus, a fuga para
o Egito no burrinho, os milagres das bodas de Caná, o azorrague caindo sobre os
vendilhões do templo, certas expulsões de demônios, nada sabia do Evangelho -
que considerava todavia muito bonito!
À doutrina de Jesus era tão alheio como à filosofia de
Hegel. Da bíblia só conhecia episódios soltos, como a Arca de Noé, Sansão
arrancando as portas de Gaza, Judite degolando Holofernes.
Não compreendia que a sua missão de pastor coubesse o dever de consolar dores,
pacificar inimizades, dirigir arrependimentos, amparar e auxiliar os infelizes.
Nada além das funções rituais.
“Há ali uma criança para batizar? Padre Salgueiro toma a estola e batiza. Há
ai um cadáver para enterrar? Padre Salgueiro toma o hissopo e enterra.”
Assim agrada o seu bispo, é quanto basta.
Sobre seu valor mental não resistimos ao desejo de transcrever o primoroso
estilista.
“Não falei[1] da sua
inteligência. É prática e metódica - como verifiquei, assistindo a um sermão
que ele pregou pela festa de S. Venâncio. Por esse sermão encomendado recebia o
padre Salgueiro vinte mil réis - e deu por esse preço um sermão suculento,
documentado, encerrando tudo o que convinha à glorificação de S. Venâncio.
Estabeleceu a filiação do Santo; desenrolou todos os seus milagres (que são
poucos) com exatidão, exarando as datas, citando as autoridades; narrou com
rigor hagiológico o seu martírio; enumerou as igrejas que são consagradas, com
as épocas da fundação. Enxertou destramente louvores ao ministro dos negócios
eclesiásticos. Não esqueceu a família real, a quem rendeu preito constitucional.
Foi, em sumo, um excelente relatório sobre S. Venâncio.
Felicitei nessa noite, com fervor, o reverendo padre Salgueiro. Ele murmurou,
modesto e simples: S. Venâncio infelizmente não se presta. Não foi bispo, nunca exerceu cargo público!...
Em todo caso, creio que cumpri.”
*
Reformemos, porém, a nossa exposição.
As ordens poderosas sobretudo são compostas de maçons, livre pensadores e até
protestantes.
Os bispos e as congregações regulares as vêem com maus olhos. Como, porém, são
ricas e poderosas e concorrem para o esplendor do culto e dão algumas vezes
dinheiro aos bispos, estes as toleram e têm mesmo algum medo delas!
Aos sacerdotes regulares são concedidas com prodigalidade espantosa as
honrarias canônicas. São agraciados pelo papa, com títulos de monsenhores,
cônegos, missionários apostólicos, e em alguns casos até com bispados
regulares.
Os seculares não sacerdotes têm títulos desde conde até o mínimo de camareiro
de capa e espada.
Dos padres não temos certeza, porém dos seculares afirmamos que seus títulos
são quase todos comprados, de acordo com a tabela da Santa Sé. Quem escreve
essas linhas já foi vítima do que na pitoresca linguagem popular se denomina
“conto do vigário” no caso seguinte:
Um amigo muito desejava possuir um título da Santa Sé. Devedor que lhe éramos
de muitos obséquios, dirigimo-nos a um capuchinho respeitável, pedindo-lhe nos
guiasse nesse negócio. Dias depois, a mandado do referido religioso,
apresentou-se em nossa casa um indivíduo que aqui desempenhava as funções de -
despachante apostólico. Mostrou-nos a tabela de venda dos títulos; o mais alto
custava cerca de quinze contos; era, se nos não enganamos, marquês com
descendência.
Achamos caro e escolhemos o mais barato: camareiro de capa e espada. Custou-nos
o logro duzentos e quarenta mil réis! O pobre e honesto capuchinho não teve
culpa, foi, como nós, iludido. As honras servem apenas para uso de vestes
aparatosas e teatrais. Em geral, as devotas oferecem-nas aos sacerdotes.
Enquanto isso, os pobres são geralmente tratados com pouco caso, e nos atos de
sua vida religiosa, casamentos, batizados e, às vezes, até confissões, são
quase sempre servidos pelo baixo clero. No próximo artigo trataremos de um
ponto interessante e lucrativo: o casamento.
5
Não
é bom que o homem esteja só: façamo-lhe um adjutório semelhante a ele.
(Gênese Cap. II v. 18).
“O sentimento do amor, associado à tendência
da reprodução, constitui uma lei natural. Apoderar-se dessa lei foi tomar um
completo domínio sobre a espécie humana. Com efeito, se as afeições que tendem
ao matrimônio cabem debaixo da jurisdição da Igreja, esta tem em sua mãos os
destinos da humanidade.”[1]
Segundo a doutrina da Igreja, o matrimônio é um sacramento instituído por Jesus
Cristo, para santificar o estado de esposos, dar-lhes graças por educarem os
filhos e representa a união de Cristo com a Igreja. Sabe esta por experiência
de quanto é capaz um ser apaixonado, ou interessado. Por isso, abusando do seu
poder, procurou fazer da sua dependência a realização desses desejos, inventando
o sacramento do matrimônio e fazendo crer ao povo que Cristo o instituiu!
Quando o Divino Mestre veio à Terra, em visita messiânica, já existia o
casamento; tanto assim que, como convidado às bodas de Canaã, com alguns
discípulos e sua santa mãe, realizou o primeiro milagre, transsubstanciando a
água em vinho.
No Evangelho não há uma só palavra de Jesus instituindo o casamento, porque ele
já existia.
No Gênese se referem
os casamentos completamente seculares entre Jacó, Lia e Raquel, entre Siquém e
Dina.
No Deuteronômio também
é reconhecido o casamento sem intervenção da autoridade da Igreja. No 1º Livro
de Reis é mencionado o de Davi e Micol.
Poderíamos ir mais longe neste terreno; as referências acima, porém, são
suficientes aos intuitos desses artigos. Diremos, no entanto, antes de
entrarmos na parte principal, que a Igreja, impondo o celibato ao clero, vai de
encontro à moral e à doutrina de S. Paulo, que aconselha a Timóteo: “o bispo seja irrepreensível, esposo de uma
só mulher, que tenha os filhos em sujeição e honestidade.”[2]
Os padres da igreja oriental, tais como os ítalo-gregos, maronitas e caldeus,
podem contrair núpcias antes de se ordenarem, tal como permite o concílio de
Ancira. No Brasil, mais de trinta padres têm sido obrigados a se casar
civicamente, para repararem faltas cometidas. Conhecedor que somos do coração
humano não levamos a mal tais casamentos, pelo contrário, achamos o fato
natural e muito simpatizamos com tais sacerdotes, convencidos de que o homem
não pode viver sem afeição feminina.
“Dai às paixões todo o ardor que
puderdes, aos prazeres mil vezes mais intensidade, aos sentidos a máxima energia e convertei o mundo em paraíso; mas
tirai dele a mulher e o mundo será um ermo melancólico, os deleites serão o
prelúdio do tédio.”[3]
A Igreja não deve fazer morrer para o sacerdote a esperança de completar a sua
existência na terra. Os padres não são, pois, seres imorais; são como nós
criaturas fracas, e por isso não podemos neste ponto atirar-lhes a primeira
pedra. O que censuramos é os padres repudiarem publicamente pobres e
inexperientes moças ultrajadas e abandonadas, bem como seus filhos, para não
perderem pingues benefícios canônicos e a estima dos bispos. Aqui mesmo na
capital, conhecemos um vigário neste caso.
Entremos porém, na parte lucrativa do casamento.
A repartição que trata dos papéis que para esse ato se exigem é a câmara
eclesiástica. Ali nada se obtém sem dinheiro.
Os emolumentos cobrados dão para pagamento do vigário geral, secretário,
escrivães e outros funcionários. Grande número de pobres recua ante a despesa.
Um secretário me dizia que o vigário geral queixava-se quando a renda não era
boa. Os estrangeiros e os estaduais têm de justificar seus estados civis na
referida repartição: pagam-se 25$500 por esse ato preparatório, sendo 500 réis
de papel, quando em geral talvez não se gaste um caderno.
Quando alguma pessoa não se pode casar na Igreja, por não ter dinheiro
para as carruagens, tem que pagar 100$000 réis para obter licença afim de fazê-lo
em casa!
Os proclamas, nas missas convencionais das freguesias, custam dois mil réis
cada um.
São lidos na catedral, nas freguesias do nascimento dos nubentes e nas de residência
destes.
O fim dessa proclamação é pedir a bênção de Deus sobre os nubentes, para que se
manifestem os impedimentos que possam haver.
“Grave pecado comete[4] quem conhece
tais impedimentos e não os declara.”
Ninguém liga importância à significação espiritual dessa cerimônia que, em
populosas freguesias produz avultada renda aos párocos. Os casamentos
celebrados depois das seis horas da tarde pagam nova licença. Os realizados por
padres que não sejam vigários, só se efetuam com licença destes, depois de pagos novos emolumentos,
restando ainda as espórtulas do celebrante e sacristão. “Há duas espécies de impedimentos: os que
tornam o matrimônio ilícito, e impedimentos dirimentes, que o tornam nulo, constituindo as partes inábeis para
contrair - 1º proibição de contrair matrimônio com certas pessoas; como
hereges, ou em certas épocas, como advento e quaresma; - 2º parentesco natural
ou consanguinidade, etc.”[5]
“As partes que se encontram ligadas
por algum impedimento dirimente não podem contrair verdadeiro matrimônio, senão
depois de haverem obtido a dispensa da autoridade eclesiástica.”
Como veem os leitores do que acima ficou transcrito, a Igreja cria os
impedimentos e reserva-se o direito de anulá-los. Isto constitui fonte de renda
da cúria romana e câmaras eclesiásticas. Falando das horríveis desordens que
produziam as apelações para o papa, e aludindo a dois bispos alemães carregados
de crimes, que, tendo apelado para Roma e levando consigo bastante dinheiro,
não haviam sido repelidos nas suas pretensões e ofertas, S. Bernardo exclama:
“Grande novidade! Quando até o dia de
hoje rejeitou Roma dinheiro?”
Dizia mais o grande abade de Claraval, referindo-se à cúria: “é mais fácil entrar honesto do que tornar-se
lá homem de bem.”
A Igreja, com sua conhecida intolerância, desaprova os casamentos mistos, isto
é, de católico com protestante ou outros dissidentes. Quando, porém, cede à
força é sob as seguintes condições: os filhos serão todos educados na religião
católica, o consorte desta crença não será levado a terras onde não possa
praticar seu culto e fará toda a diligência para induzir o outro consorte, ao
catolicismo.
Tais casamentos são realizados nas sacristias e sem pompa alguma do rito. No
entanto, o dissidente endinheirado é sempre melhor recebido do que o fervente
católico pobre.
O casamento católico é uma fonte de tanta renda que até dá para sustentar
muitos procuradores de papéis.
Por amor à brevidade encerramos aqui esta parte, afim de não retardar por mais
tempo o esclarecimento do assunto, para nós de maior interesse, e que fará
objeto do próximo artigo: a clero regular e os conventos.
[2] Epístolo a
Timóteo Cap. III, vv. 2 a 4.
[3] A.
Herculano, Eurico,
prólogo.
[4] Coffiné, Manual do Cristão, pág. 254
6
Devem no bom religioso sobressair todas as virtudes, para
corresponder o interior ao que de fora vêm os homens; e é razão que muitos
mais ainda por dentro do que fora aparece, pois lá Deus nos olha, a quem em toda parte suma referência devemos e andar em sua
presença com angélica pureza. (Dos exercícios do bem religioso -
Imitação de Cristo, Liv. I Cap. XXX)
Eis-nos enfim chegado ao prometido e desejado ponto: o clero
regular e os conventos. Esse clero é mais hipócrita que o secular.
São rivais entre si um e outro pela concorrência que se fazem, dominando sempre
os regulares, pelos cabedais de que dispõem, e tendo a preferência do beatismo.
Ensina a Igreja ser a vida religiosa a mais perfeita e agradável a Deus; que os
religiosos tomam como lei os simples conselhos evangélicos e, consagrados ao
Senhor pelos três votos solenes: pobreza voluntária, obediência inteira e
castidade perpétua, são os perfeitos discípulos do Cristo pela imitação de sua
vida. Reduz-se, pois, consoante o ensino católico, a três gêneros a vida
cristã: o matrimônio, o celibato e a vida religiosa, sendo no entanto de mero
conselho a vida claustral: “pode tornar-se obrigatória no caso de alguém se
achar em circunstâncias de não poder salvar sua alma sem o emprego deste grande
meio de salvação.”[1]
O desespero de salvação e perfeição, junto ao terror dos
conselhos acima exarados, produz as tais vocações religiosas, que são o cultivo
do egoísmo e a negação da caridade, manifestada pela intolerância religiosa.
As pessoas que pretendem ser frades ou freiras, começam a frequentar com
assiduidade as práticas devotas dos templos das comunidades, porque são mais
supersticiosas e fanáticas.
São os congreganistas, como os mais perfeitos, preferidos para diretores
espirituais. Tudo neles é calculado. Andam de mãos enfurnadas nas mangas dos
hábitos, os olhos baixos, o semblante de quem passa vida martirizada, as mãos
sempre unidas, e sempre afetando grande humildade.
Procuram ter verdadeiras especialidades devocionais: os beneditinos (frades da
ordem de S. Bento) benzem as cruzes milagrosas do mesmo santo. É uma medalha
com poderes miríficos, cuja notícia passamos a transcrever da regra do
patriarca, a página 204:
“Todos sabem que a cruz de S. Bento foi descoberta no ano de 1647 por
confissão de um número de feiticeiras, que, fazendo dano considerável em Castro
Natremberg, disseram que as fortes armas de seus feitiços jamais poderiam
entrar onde estava a Santa Cruz com as letras de S. Bento, acrescentando que no
Mosteiro Motesen, em Barbária, não puderam nunca entrar, por advertirem que
nele estava esta Santa Cruz. Foi ela descoberta por diligência dos monges, e
logo se provou a singular virtude dos efeitos dela, pela graça de Jesus Cristo,
e patrocínio de S. Bento, que são dissolver dos corpos humanos todo gênero de
feitiços e diabólicos desígnios. Na parte onde estiver esta Santa Cruz, como
vestido, ou casa, não chega força de feitiços, nem feiticeiras. Os animais atacados
de algum mal ocasionado por arte do demônio, benzendo-se com ela, e tocando-os,
experimentam logo remédio. É defensivo para todos os perigos do mar e da terra,
como a experiência está continuamente mostrando. Enfim, por virtude desta Santa
Cruz e intercessão do Santíssimo Patriarca, obra o Deus infinitos prodígios nos
que usam deste Antídoto, que se não se referem por estarem escritos, e serem
constantes, principalmente contra todos os demônios, malefícios, feiticeiros,
bruxas, etc.”
Convém acrescentar: a referida regra é tão boa que lá está escrito no prefácio:
“Serve esta Santa Regra contra tempestades, raios, trovões e feitiços: para
a felicidade dos partos das mulheres e contra todo o poder do inferno, como tem
mostrado a experiência, e ainda para defensiva de todas as enfermidades; livra
de todos os perigos da terra e do mar, e nas guerras dos inimigos.”
Os carmelitas (religiosos da ordem do Carmo) vendiam, há mais de 60 anos, o
remédio denominado bálsamo milagroso.
Consta-nos que, ao morrer o último religioso brasileiro, não querendo dar aos
colegas estrangeiros a receita, deu-a a um parente, que abriu um negócio para
vende-lo no largo da Lapa; fez reclame do preparado, dizendo ser o verdadeiro
bálsamo que se vendia outrora no referido convento. Posteriormente, porém, os
religiosos aprenderam o segredo, mas deixaram de fabricá-lo, por dar apenas o
lucro de 200 réis por vidro.
Passaram então a distribuir, supomos que diariamente, um novo preparado milagroso
- a água de Santo Alberto, que é assim obtida:
Colocam uma talha junta ao altar daquele santo, enchem-na de água, benzem-na,
para expelir demônios, e dão na ao povo para a cura dos malefícios e
enfermidades! Além disso benzem escapulários, que já explicamos o que
sejam, em artigo anterior, e têm a virtude miraculosa “de ser escudo
impenetrável em quaisquer perigos, amparo seguro na última hora contra as
portas do inferno.”
Essa promessa foi - dizem eles - feita pela virgem Maria, em aparição ao geral
da ordem dos carmelitas, Beato Simão Stock.
Os dominicanos (religiosos da ordem de S. Domingos) são especialistas em benzer
rosários e enriquecê-los com indulgências. Foi instituído por S. Domingos de
Gusmão, em cumprimento a determinações de Maria, que também lhe aparecera.
É desnecessário tratar do rosário, por ser muito conhecido. Eles, porém,
enriquecem-no com indulgências, que são: “a remissão da pena temporal devida
pelos pecados já perdoados no sacramento da penitência”. Quer dizer: uma
pessoa cumpre uma prescrição a que está anexa uma indulgência, fica dispensada
de cumprir penas por pecados cometidos!
Como veem, o poder do papa e bispos vai além da morte.
Os capuchinhos tiram o diabo do corpo. Exorcizam os endemoinhados,
e benzem o povo às sextas-feiras com a bênção de S. Francisco.
Na igreja destes religiosos há anualmente exercícios espirituais. O superior
uma vez os anunciou, dizendo que o seu fim era enxotar o diabo - que tem uma
cauda “deste tamanho” (e dava as dimensões com os braços) - da cabeça e coração
de muitos devotos daquela igreja.
O principal de Santo Antônio dá a bênção deste santo nos mesmos dias, para
cura de enfermidades. Como se vê, há uma verdadeira farmacopeia, e as suas
curas desafiam a veia cômica dos escritores mais humoristas.
Há no Brasil as seguintes ordens: cônegos premonstratenses belgas; maristas
franceses; Verbo Divino italiano; capuchinhos italianos, e ultimamente
franceses no RS; jesuítas italianos, franceses e alemãs; trapistas franceses;
lazaristas franceses; dominicanos franceses; redentoristas holandeses e
alemães; franciscanos holandeses e alemãs; salesianos italianos; augustinianos
calçados e descalços vindos das Filipinas.
Ainda teremos muito que palestrar sobre o assunto; voltaremos a ele no próximo
número.
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