Doutrina
- Condições e graus de Estudo
Redação
Reformador (FEB) 1º de
junho de 1907
O prometido é
devido. Vamos, pois, cumprir a promessa formulada na nossa última edição, no
sentido de oferecermos alguns respeitosos cumprimentos ao artigo do nosso prezado
colega “A Revelação”, do Pará, epigrafado “Conheçamo-nos primeiro”, no qual, ocupando-se da questão relativa à
corporeidade de Jesus, em torno da
qual “estabeleceram-se duas correntes de opiniões contrárias, sem nenhuma luz
para a doutrina” entende ele que, de preferência a nos empenharmos os espíritas
em tais sutis e, por enquanto, prematuras indagações, deveríamos preocupar-nos
“mais intimamente conosco mesmos, microscópio cheio de fundos mistérios incompletamente
desvendados.”
Em tese, não temos que dissentir do criterioso entender
do nosso colega paraense. No domínio da investigação, com efeito, deve o homem proceder
como a natureza: gradativamente. O estudo, pois, que o deve conduzir aos diferentes
e sucessivos graus do conhecimento, tem que ser forçosamente subordinado a
condições. E a primeira destas, como bem a faz notar o nosso amável interlocutor,
é a análise de si mesmo, o exame introspectivo do eu individual, como base
indispensável e ponto de partida do conhecimento ulterior - os fatos externos,
as coisas visíveis, em seus diferentes modos de manifestação, o universo, em
suma, na estrutura de suas leis, as verdades divinas em sua essência.
Porque, sendo o homem uma redução do universo, o
microcosmo, portanto, a expressão é perfeita e adequada – nenhuma noção exata e
verdadeira poderá ele adquirir acerca das coisas e seres desse universo, antes
de conhecimento, tão completo quanto possível, de si mesmo. Um é a chave misteriosa
e explicativa do outro. Desvendado o mistério, está obtida a explicação, isto
é, a posse da Verdade.
E foi neste sentido que o definiu Sócrates, no corpo de doutrina
formulada por seu discípulo Platão:
“A alma, quando
contempla a sua própria essência, dirige-se para o que é puro, eterno e imortal;
e como é da mesma natureza, aí se demora por todo o tempo que lhe é possível. Então
seus desvarios cessam, por estar ela unida no que é imutável. A esse estado
d'alma é que se chama sabedoria.”
A falta dessa iniciação na fonte primária do conhecimento,
é que vemos tantos adeptos flutuando ao sabor de desencontradas sugestões. Não
temos, por isso, a mínima relutância em subscrever a opinião do nosso colega do
Pará, no sentido de que os espíritas devemos começar um estudo aprofundado do nosso
eu interno, da essência de que é constituído o nosso ser imortal.
É verdade que esse estudo nos reserva ao começo as mais
acabrunhadas decepções. Tocado, com efeito, o nosso espírito pelas inusitadas e
fulgurantes claridades da Revelação, quando dirigimos as nossas vistas, à
maneira de sonda em mar desconhecido, para os abismos ignorados da nossa alma,
empolga-nos ora o assombro, ora o desgosto de nos reconhecermos tão pequenos, tão
distanciados do ideal que nos fora apresentado; ao mesmo tempo que palpitando de
nobres e generosas aspirações, sentimo-nos bruscamente desviados pela
solicitações de inferior tendência - misto, em suma, de clarões e trevas, de
bem e mal, exatamente como o universo, em que essas duas modalidades se
hostilizam, se conflagram e produzem o equilíbrio! E que titânicos esforços não
se fazem necessários, que luta formidável e sem tréguas não se empenha no campo
silencioso da própria consciência, até que a tendência para o bem, convenientemente
sistematizada, consiga levar sempre de vencida as tentações e arrastamentos para
o mal!
Muitos descoroçoam logo ao começo dessa pugna. Outros – e
é tão grande o número deles – nem ao menos se apercebem para a sustentar. Aqueles
que, porém, compreendem que, para ser-se verdadeiramente espírita, não basta ter
notícia do que dizem as obras da doutrina, nem ainda menos andar a apregoar a
excelência dos seus princípios, com os quais, todavia, não tratam de conformar
a sua conduta moral, dando lhes assim um desmentido vivo; aqueles que, longe de
pretenderem adaptar a doutrina a suas vistas pessoais, forcejam por elevar-se
tão alto o seu coração e o seu pensamento que os possam adaptar a doutrina a
suas magníficas regras desse novo código, e assim, começam por aquele exame e
consequente reforma de si mesmos, e nesse trabalho não se admiram de ter que empregar
anos e anos, até ao fim de sua vida (ah! e de outra sorte é impossível, são os únicos
que se podem considerar em vésperas de possuir aquela chave de que falamos,
para com ela abrir as portas misteriosas da Sabedoria.
Integral? – Ai de nós! Seres perfectíveis e finitos, mais
ainda, habitando de um mundo inferior de expiação e provas, podemos acaso, pelo
menos enquanto aqui permanecermos, aspirar à posse completa da Verdade?
Daí, entretanto, será legítimo concluir que, antes de
atingirmos aquele grau ideal de perfeição, possível sobre a Terra, devemos
renunciar a toda pesquisa no domínio geral do conhecimento?
De modo algum. Sem dúvida – insistiremos nisto – o
primeiro estudo que se impõe ao adepto é o de si mesmo, o conhecimento do mistério
vivo que é o homem, ao qual deve suceder de perto a modificação, a
transformação de seus hábitos e tendências, a regeneração gradual do seu modo
de ser e de agir, por pensamentos, palavras e atos. Sem esse trabalho
preparatório, não haverá realmente possibilidade de efetivos e duradouros
progressos. Vencidas, porém, as resistências de começo, que são as mais
tenazes, da própria rebelde natureza, passados os primeiros anos (sim, que são
necessários alguns anos para essa primeira paciente iniciação), à medida que a
consciência se for tornando mais reta e o julgamento mais seguro, nada se opõe
a que o crente vá paralelamente dilatando o campo de seus conhecimentos,
penetrando mais longe na esfera das verdades superiores. E ele aí penetrará com
tanto maior segurança, quanto é um fato de evidência para todos os que tenham
tido a fortuna de o observar em si mesmos, que a cada conquista que o homem
obtém sobre a sua natureza inferior, a cada esforço que realiza no sentido de
elevar-se mais alto, acima das solicitações e arrastamentos subalternos,
corresponde uma dilatação de suas percepções interiores. Dir-se-ia que a luz da
Sabedoria incriada, que palpita em torno dos seres, espreitando o momento de se
lhes comunicar, penetra os seios da alma, iluminando gradativamente a consciência
então desperta.
É isso o que, efetivamente, a nosso ver, se dá. E se
assim é, e se por outro lado falecem a cada um de nós outros os elementos para
conhecer e determinar o estado de consciência dos nossos semelhantes, como estabelecermos
arbitrariamente, e de um modo Geral, que tais estudos são lícitos e tais outros
prematuros ou inacessíveis?
“Pretender-se resolver pelo Espiritismo – disse o nosso
prezado colega d’A Revelação, citando Allan Kardec - aquilo
que não está ao alcance da humanidade, é desviá-lo do seu fim.”
Nunca - tolere-nos a irreverente contradita - teria menos
apropriada aplicação essa sentença do iluminado codificador do Espiritismo, que
relativamente à questão da corporeidade de Jesus.
Pois se o Espiritismo nos vem fornecer, pela observação dos
seus fenômenos e pela dedução das leis que os regem, o conhecimento dos fluidos,
em suas propriedades e na imensa variedade de suas aplicações, é precisamente por
ele que chegaremos a resolver esse caso, que a tantos surpreende, da corporeidade
fluídica do Cristo. Ao demais convém não separar o ensino relativo a essa
circunstância, da Revelação integral de que faz parte, indispensável ao seu completo
entendimento. N’Os Quatro Evangelhos, com efeito, também denominado “Espiritismo Cristão, ou Revelação da Revelação” deram os
evangelistas a Roustaing, não somente a explicação, em espírito e verdade, dos
ensinos morais do Cristo, dos atos de sua vida, do seu papel, missão e poderes
em relação à Terra, como também os mais altos e importantes ensinos acerca da criação,
da evolução e destino dos espíritos, formando com isso uma obra admirável em 3
volumes, de que muitos falam, mas que poucos terão lido e muito menos estudado.
Dessa obra – acrescentaremos de passagem, como informação
– está sendo feita sob os auspícios da nossa sociedade, uma cuidadosa tradução,
que não tardará muito a vir a lume, e que, vulgarizando-a entre nós, permitirá
o estudo amplo, minucioso e analítico de que é digna.
Assim pois, se os espíritos julgaram oportunas tais revelações,
- e trata-se, como se sabe e o acabamos de assinalar, de uma revelação - com
que direito proscreveríamos nós outros, ainda que a título provisório, o seu
exame e comentário? Sem dúvida, para o perfeito entendimento das transcendentes
questões ali expostas, exige-se alguma coisa mais que o espírito de curiosidade,
o prurido de crítica ligeira; por isso não será aos neófitos, aos recentemente
convertidos, não habituados ainda, em sua indisciplina mental, à profunda e amadurecida
cogitação de altos ensinos (*), que o seu estudo será recomendável, ou que entre
eles aliciará convicções. Tais ensinos, entre os quais o relativo à
corporeidade de Jesus, para serem bem compreendidos, reclamam condições de
iniciação, perseverante e demorada, que se não podem improvisar.
(*) Salvo certos
casos de predisposição inata, mesmo em alguns moços, de que temos tido
conhecimento pessoal.
Quais são os espíritas
que se acham nessas condições? Poderemos sabe-lo porventura? É um caso que cada
um resolverá segundo a sua própria consciência.
Enquanto isso, não nos sobressaltemos por que aquela, entre
outras questões interessantes, seja trazida para a tela dos debates, contanto
que - não há que dissentir - se mantenham estes na esfera pacífica e cortês. Ainda
agora, nesta mesma edição da nossa folha encontrará o colega do Pará um artigo
firmado pelo nosso esclarecido colaborador Dr. Fernando de Alencar, terceiro de
uma série provocada pelo estudioso confrade Arthur Baptista, de S. Paulo,
acerca da corporeidade fluídica do Cristo.
A permuta de ideias entre dois irmãos em crença tem-se
mantido, com grande edificação para todos nós, no domínio sereno das doutrinas,
sem a mais ligeira quebra dos laços de fraternidade e deferência a que mutuamente
e legitimamente, se consideram obrigados. Deus permita – e assim o esperamos –
que nesse terreno se conservem. E, assim sendo, onde estará o mal?
É possível que nem um nem outro cedam uma linha de suas pessoais
convicções: o nosso prezado colaborador, por certeza de estar na verdade – e
nós com ele; o nosso não menos prezado confrade Arthur Batista, por acreditar
inexpugnáveis as suas objeções, filhas, entretanto – tolere-nos ele esta fragilíssima
ingerência – de um incompleto estudo da questão.
Como quer que seja, porém, acreditamos que nem tudo será
perdido: na pior das hipóteses, os leitores, que devem ter acompanhado com interesse
o debute, terão por igual colhido, em sua intercorrência, pelo menos alguns subsídios
de proveitoso estudo.
E sempre se terá lucrado alguma coisa.
Não terminaremos contudo, sem agradecer ao nosso amável
colega d’A Revelação a generosidade dos conceito que em seu escrito externa
acerca do modo por que a nossa modesta folha discutiu, há tempos, aquela questão
da “personalidade de Jesus”, e nem ao
mesmo tempo pedir-lhe, não somente que nos releve a deficiência do nosso
arrazoado, como também que me perdoe, se no que acima fica dito acaso descobrir
o quer que seja que de leve ao pareça discrepar da estima e do afetuoso
respeito de que é digno, e que de todo o coração lhe tributamos.
Creia que tal, de nossa parte, não terá sido a intenção.
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