Correspondência
Póstuma de Allan Kardec
Reformador (FEB) Setembro
de 1918
É
das mais interessantes a correspondência, que hoje transcreveremos da Revue Spirite, trocada entre um espírita de Merville (norte da França) e
o Mestre, pela natureza do assunto tratado: a possibilidade e a maneira de um sacerdote
católico aliar suas crenças espíritas ao exercício do seu ministério.
Vindos
de um elevado espírito, numa bela comunicação ditada a Alan Kardec, os conselhos
a tal respeito ministrados a um consultante preste a receber as ordens sacerdotais
são edificantes e assinalam a pureza e a sublimidade da doutrina espírita, com
o mostrar que seus altos e grandiosos princípios podem sempre ser observados e
praticados, nada obstando a natureza do culto exterior a que as circunstâncias
do nascimento ou o amor as tradições nos façam permanecer frios.
Carta do Sr. S. De
Merville (Norte) a Allan Kardec
Merville
(Norte), 6 de Dezembro de 1866.
Caro Sr.
e digníssimo Mestre,
Meu
filho Júlio, que está no segundo ano de teologia, se encontra em grande ansiedade
com respeito à sua vocação e eis porque: Ele admite com fé todos os princípios da
doutrina espírita, está convencido de que esses princípios falam melhor à sua razão
do que todos os dogmas do Cristianismo ensinados nos seminários. Pergunta como
fará para exercer um ministério no qual falará, procederá e pensará muito
diversamente do que exigem as regras da Igreja Católica. Julga que isso lhe
repugnará à sua consciência. Sente, entretanto, que há, de outro lado, na
missão do padre, deveres sublimes que o seduzem e para os quais lhe parece ter
especial vocação. É o zelo feito de abnegação e de caridade. Acredita que, sob
este aspecto, vê perfeitamente a ação admirável da divina Providência sobre ele
e treme ao pensar que, abandonando a partida, contrarie a vontade divina. Em sua
carta de hoje, carta em que expande o seu coração, ele me pede vos comunique a
sua perplexidade e declara que se conformará com o que lhe responder o nosso Diretor
espiritual São Luís, se consentires em evoca-lo por um de vossos médiuns,
pedindo-lhe nos diga se Júlio tem verdadeiramente a vocação eclesiástica e se é
chamado por Deus. Ante de voltar para o seminário e durante
as últimas férias conversei com meu filho muitas vezes a esse respeito. Fiz lhe
ver que a diferença de princípios entre o Espiritismo e a religião exercida pelo
clero católico não existe senão nos abusos e que ele bem poderia modificar o
que lhe repugnasse à consciência, sem rejeitar nem abandonar demasiado as
regras da Igreja.
Enfim,
meu caro senhor, pois que meu filho confia nos vossos ponderados, e doutos conselhos,
eu vos ficaria muito grato se lhe désseis o de prosseguir na carreira eclesiástica
à qual Deus o chama.
É um
moço de caráter reto, tímido e pouco comunicativo. Leva o escrúpulo ao ponto de
acreditar que nada deverá fazer no exercício do ministério sacerdotal sem fé viva
e intensa convicção.
Como bem compreendereis, este moço, abandonando a
carreira para que trabalha desde tanto tempo, não poderia agora ocupar nenhum
emprego no mundo. Conheço-lhe bastante o caráter e os hábitos para saber com exatidão
que não poderia viver no mundo e que a sua verdadeira vocação é o estado eclesiástico.
Tende a bondade extrema de responder o mais breve
possível à pergunta de meu filho, porquanto ele deve receber a tonsura no
próximo Natal.
Não me seria lícito terminar esta carta sem vos pedir, assim
como à vossa amável esposa, que se dignem de receber os nossos mais ardentes
votos pela conservação dos vossos preciosos dias, desejando a ambos um ano
feliz e sobretudo perfeita saúde. Rogamos
aos bons espíritos que vos, assistam nos vossos trabalhos tão úteis aos progressos
e ao adiantamento da humanidade.
Minha família se associa a mim para vos apresentar suas mais
respeitosas homenagens.
Aceitai, eu vo-lo peço, caro Senhor e prezada Senhora, as
minhas, com as expressões do meu reconhecimento.
Vosso devotado irmão em Espiritismo.
S. Comissário de polícia em Merville (Norte),
Resposta
de Allan Kardec, por intermédio de um secretário
Paris, 1 de Dezembro de 1866.
Senhor,
O Senhor Allan Kardec
me encarrega de acusar o recebimento da carta que lhe haveis dirigido. Ele tomou
conhecimento com interesse das particularidades que lhe comunicaste acerca da situação
moral de vosso filho e se considerou no dever de lhe satisfazer aos desejos pedindo
para ele uma comunicação. Envio-vos aqui junta a resposta que obtivemos e a
cujos sentimentos o Senhor Allan Kardec se associa inteiramente. Se as suas múltiplas
ocupações lhe houvessem permitido vos escrever, o teria feito no mesmo sentido,
acrescentando apenas que se aproximam os tempos em que profunda modificação
certamente se operará no estado atual da Igreja. Seus ministros virão a ter maior
latitude para obrar de acordo com as
suas consciências.
Acresce
que julga muito útil à causa haver, entre os membros do clero, partidários da
causa espírita, que lhe propaguem os ensinos sem fazerem ostentação de suas
crenças.
Ele
me incumbe, assim como a Senhora Allan Kardec, de renovar as expressões de seus
melhores sentimentos.
Comunicação
Meu filho, toda
obra executada com dedicação e convicção é meritória aos olhos de Deus. Não podendo
o homem por si mesmo executar todos os trabalhos necessários à sua conservação
teve que os subdividir de modo que a parte que cada executa concorra para o bem
estar de todos. Portanto, todas as profissões são úteis e é preciso que se encontrem
trabalhadores para todas, a fim de que a sociedade não sofra. Mas, para que cada
um se possa tornar útil no máximo grau, mister se faz que seja posto em condições
de escolher livre e conscientemente um estado. Cumpre que essa escolha não
resulte de uma ordem dos pais ou de um capricho desatinado, como
desgraçadamente tão a miúde acontece, mas que, ao contrário, seja madura e seriamente
refletida. É dever dos pais dirigir a escolha, sem jamais a violentar. Constrangendo
uma vocação, eles se tornam moralmente criminosos e, se escapam da justiça dos homens,
a lei eterna os castigará, cedo ou tarde, pela dureza ou pela imprevidência,
sempre, porém, levando em conta as circunstâncias.
Peço
me perdoes, meu filho, este longo preâmbulo. Considero-o, porém, necessário nas
disposições de espírito em que te achas, para te fazer compreender que, em se
sentindo alguém irresistivelmente chamado a uma função social, por mínima que
seja - e a que tens em vista é das mais
Importantes pelas suas consequências – fora falta grave e loucura desprezar os
meios de que disponha para se tornar útil.
Sei
quanto a tua posição é delicada e de quantas angústias os teus escrúpulos te
enchem o coração. Com a tua sinceridade e a tua fé não há duvidar que
desempenhará com consciência o mandato de apóstolo de Jesus. Pois bem! dize-me:
é a letra ou o espírito da moral evangélica que queres ensinar? O espírito, não
é verdade? Não tens duvidas a esse respeito, nem eu tampouco. Nesse caso, dize
me, peço-te, se vês alguma diferença entre o Cristianismo e o Espiritismo. Não fazem
ambos da tolerância e da caridade uma lei? Não prezam ambos a máxima dulcíssima do filho do carpinteiro:
“Amai-vos uns aos outros e não façais a outrem o que não quiserdes que vos façam?”
Toda a diferença está nas fórmulas vãs. Não te embaraces, porém, com isso. Missão
nobre e grandiosa é a do padre quando bem compreendida e se te concito vivamente
a tomar as ordens sacerdotais é que sei que desempenharás dignamente o teu mandato.
Lembra-te
de que todos os homens são irmãos e que imensa responsabilidade pesará sobre
ti, desde que aceites a missão de lhes abrir o caminho da verdade. Ser-te-á preciso
escrutar bem os teus ensinos para que não mistures o erro com a verdade, pois
que mais tarde os convertidos por ti poderão acusar-te de os teres enganado.
Não
desanime por te apontar eu os espinhos que se ocultam sob as flores. Pedes-me um
conselho e eu me considero no dever de te mostrar as alegrias e as amarguras da
tarefa que vais empreender. É bela e sublime essa tarefa mas penosa também. Não
te causem, pois inquietação as fórmulas mais ou menos acordes com a tua maneira
de ver na questão das punições e recompensas eternas.
Por
esse lado, grande é ainda a diferença entre a Igreja e nós. Ela faz de Deus um
juiz severo e impiedoso, nós o fazemos o que ele é - um pai eternamente misericordioso.
Mas, como a Igreja, também ensinamos que cada ação traz após si e conformemente
à sua natureza, uma recompensa ou uma punição. Terias escrúpulo de ensinar o
amor a um Deus eternamente bom, severo, porém justo? Não, isso não será o que
te detenha. O que importa saber é se te sentes com a força necessária para aceitar
tão pesado fardo. Examina-te seriamente e quando te tiveres reconhecido forte
segundo Deus, como o espero, quando te houveres lembrado de que nós jamais abandonamos
os corações puros e abnegados, vai em paz e não mais duvides.
Nenhum comentário:
Postar um comentário