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terça-feira, 26 de maio de 2020

A hereditariedade e o fluido vital


A hereditariedade e o fluido vital

por Gonçalves Júnior
Reformador (FEB) Julho 1907

Sr. Presidente e caros confrades (*)

                (*) Este trabalho foi lido pelo autor, em uma das sessões da Federação Espírita Brasileira, quando aí se estudava a questão do suicídio, magistralmente exposta em ‘Os Quatro Evangelhos’, de J.B. Roustaing, tendo-se, na intercorrência dos debates, tratado da transmissibilidade do fluido vital, como importante fator da duração da vida.   

            É a primeira vez que peço a palavra nesta assembleia, para tomar parte nestes elevados e profundos estudos do Espiritismo. A minha posição aqui tem sido sempre a de quem precisa estudar e não se sente com bastante competência para emitir uma opinião sobre tão transcendentes questões deste departamento do saber.

            Entretanto, como vedes, quebro a minha norma de proceder, porque na sessão de terça-feira passada um dos nossos companheiros tocou em um ponto que bem merece a nossa atenção.

            Discordei de sua opinião sobre esse assunto; e é por isso que vos venho roubar alguns momentos de atenção.

            Antes de tudo devo confessar que não compreendo a religião sem a ciência - Se elas são irmãs e fitam o mesmo ideal, não podem ser jamais separadas.

            Não há fato contraditório em ciência, disse um dos nossos mestres em fisiologia: quando eles parecem existirem, é porque houve engano por parte do observador: é porque as leis que regem tal fato lhe são desconhecidos.

            O mesmo princípio deve ser aplicado à religião; e esse mesmo princípio deve ser ainda aplicado à interpretação da religião pelas ciências – A ciência não pode contradizer a religião e nem esta contradizer a ciência; e digamos, parodiando o ensino do nosso mestre: e contradições parece existirem entre a religião e a ciência, é porque os fatos não foram bem observados, ou porque as leis que regem esses fatos são desconhecidas do investigador.

            O Espiritismo é o ensino que satisfaz esse supremo ideal, e é por isso que ele será sempre vencedor no domínio do pensamento e do sentimento.  

            O companheiro nos disse que achava contradição no fato, afirmado pela ciência de que se os pais transmitem aos filhos caracteres e elementos de vitalidade, pois que o espírito, que se vai encarnar, possui fluidos que lhe são próprios.

            Vamos, com os conhecimentos que adquirimos, procurar esclarecer este ponto de real importância para nós.

            Antes de tudo, devemos fazer umas considerações, que nos parecem necessárias, para o esclarecimento da questão.

            Conhecemos, pelo estudo da histologia e da fisiologia, a célula e os seus elementos componentes: protoplasma e núcleo; e sabemos que ela é a unidade viva. – É dela que todo o ser parte, em sua evolução progressiva e constante.
           
            Não se pode estudar os organismos superiores, sem conhecer a célula, porque eles não são mais do que agrupamentos de colônias celulares. Ela possui, em síntese, sob o título de propriedades fundamentais da substância viva, todas as manifestações dos organismos mais adiantados: é assim que ela move-se, nutre-se, reproduz-se e sente.

            É a célula uma espécie de ABC com que o biologista soletra a vida na escala dos seres vivos. Não se pode estudar a função de um órgão, por mais adiantado que, sem conhecer as propriedades fundamentais da substância viva, pois que a função nada mais é que uma propriedade exaltada, na frase expressiva do Dr. Oscar de Souza nosso mestre em Fisiologia.

            Fazer um estudo sumário da célula e das suas propriedades, seria ocuparmos um tempo muito longo, do qual não dispomos aqui, nesta breve e resumida palestra.

            Tomemos para a demonstração da nossa tese uma célula perfeita: o óvulo. Nela encontramos todos os elementos de uma célula completa: membrana, protoplasma, núcleo e nucléolos. Demoremos um pouco no estudo do núcleo, pois que ele é o elemento principal na reprodução, e que nos vai fornecer os dados necessários para afirmarmos que a hereditariedade é um fato inconteste, e que não contradiz, segundo o nosso modo de ver, os princípios que o Espiritismo ensina.

            Nós, os espíritas, temos a vantagem de caminhar ao lado dos materialistas no terreno da experiência científica, e seguirmos além, muito além do limite em que eles se deixam ficar no terreno da interpretação dos fatos observados. Para o espírita não existe horizonte - temos diante de nós a imensidade luminosa, que nos conduz aos mais elevados domínios do pensamento. Não devemos excluir a ciência no estudo do Espiritismo, porque é nela que temos os dados mais poderosos e irrefutáveis, para combater, no domínio da razão e da lógica, os nossos encarniçados inimigos em matéria de doutrina religiosa.

            Que é, em uma palavra, a ciência? – Uma série de fatos comprovados pela experiência.

            Disse-nos ainda o Dr. Oscar de Souza, em uma de suas sábias lições: “Para que um fato faça parte integrante da ciência, é necessário que a experiência venha comprová-lo. A ciência não se forma com os fatos agrupados: ela só se constitui pelo conhecimento dos fenômenos e pelas leis que regem a generalidade. Assim é que, unindo bem os fatos e procurando o nexo que os prende, chegamos pouco a pouco ao conhecimento de uma ciência.”  

            A religião sem a ciência, ou ciência sem religião, é uma verdadeira contradição.

            O Espiritismo é a religião, porque sintetiza numa harmonia perfeita toda a ciência, e caminha, banhado, banhado pela luz de uma alvorada perene, até o seio da majestade divina.

            Mas voltemos a falar do núcleo, parte essencial da célula, nos fenômenos de reprodução. O núcleo apresenta várias formas, das quais não trataremos aqui; é envolvido por uma, chamada membrana nuclear, e constituído por uma substância esponjosa, reticulada, ou melhor, para dar uma ideia mais clara, por uma esponja embebida de um líquido, chamado hialoplasma. (Também conhecido como citosol, o hialoplasma é um líquido presente no interior das células dos seres vivos). Este retículo ou esponjioplasma, toma o nome de substância cromática, ou cromatina, assim chamada por ser facilmente colorida por reativos.

            Chegamos à matéria essencial do núcleo que procuramos -a cromatina, à qual Mathias Duval deu, com muita propriedade, o nome de substratum material da hereditariedade. Não trataremos do líquido que aí se encontra, nem dos nucléolos, para não nos alongarmos multo neste estudo.

            Tomemos somente a rede de cromatina, para a base do que desejamos demonstrar.

            Essa rede de cromatina é constituída por um ou vários filamentos chamados cariomitomas que, pelos seus contornos e circunvoluções, dão um aspecto reticulado ao conjunto.

            Esses filamentos são constituídos, a seu turno, por pequenos corpúsculos (cariomicrosomas) formados de uma substância fosforada e albuminoide chamada nucleína a única substância que, na realidade, se colore no filamento cromático. Esses corpúsculos ou grãos de nucleína dispõem-se em séries, como as contas de um rosário; e são unidos por uma outra substância chamada Iinina, que não se colore pelos reativos.

            O filamento cromático pode se desenrolar; e desenrola-se no ato divisão celular.

            A divisão celular tem por fim, por uma série de atos, dividir esse filamento cromático em partes iguais, para fornecer à nova célula esse elemento material indispensável a vida do novo ser.

            Pois bem: é nessa matéria que a célula mãe transmite à célula filha todos os seus caracteres; e é por isso que toda a célula ou, ampliando, todo o ser é a imagem perfeita do ser que lhe deu origem.

            O que se dá com a célula, dá-se com o organismo mais perfeito, o do homem.

            Que é o homem - esse ser ocupa o ápice da escala dos seres na Terra, e que apresenta as mais complicadas funções?

            Duas células que se fundiram numa; o óvulo fecundado que evoluiu!

            Maravilhosa Sabedoria essa que dirige o destino dos seres!

            No desenvolvimento ontogênico (do indivíduo), pode-se ler toda a história do seu passado, tudo o que ele foi na escala zoológica, antes de atingir ao ponto culminante a que chegou.

            E assim que o homem, ser mais perfeito entre os seres da Terra, tem a sua origem biológica numa simples célula! No óvulo, no embrião que se desenvolve, ele vai escrevendo, como para lembrar a sua pequenez no Universo, tudo o que ele foi na escala dos seres vivos.

            Foi esta verdade que o sábio poeta da ‘Oração à Luz’, Guerra Junqueiro, cristalizou nestes versos que passarão à posteridade, como um atestado da presença, em nosso céu, da estrela d’alva, precursora do dia que há de iluminar as gerações futuras:  

Desde que, verme escuro, andei de rastros
E lodo, em pé, sob o clarão dos astros,
Ao verter uma lágrima ligeira,
Me tornei homem pela vez primeira!

            O materialista, que vê tudo pelo prisma que melhor lhe convém, lê somente a parte material desses maravilhosos fenômenos, e diz que a matéria evolui, quando, na realidade, nós o sabemos, o que evolui é o espírito: a matéria, ou a forma material, acompanha somente a evolução do espírito.

            Mas não nos desviemos do caminho traçado. Feito o estudo do núcleo, conhecida a cromatina e o seu valor, passemos um rápido olhar sobre a fecundação nos mamíferos. Estudar a fecundação nos mamíferos ou, melhor, nos equinodermos, (Os equinodermos (do grego echinos: espinhos; derma: pele) constituem um grupo de animais exclusivamente marinhos, dotados de um endoesqueleto (endo = dentro) calcário muitas vezes provido de espinhos salientes, que justificam o nome zoológico do grupo.) que realizam todas as condições requeridas para esses estudos, é estudar o homem.  

            No caso da fecundação nos mamíferos é ainda a cromatina o veículo, o transmissor da hereditariedade. É a célula masculina que vai levar, no menor volume, a maior quantidade dessa substância à célula feminina, para que, assim reunidas, nas mesmas proporções, as duas quantidades de cromatina, masculina e feminina, se possa desenvolver o óvulo em embrião. É por isso que o ser que então se forma apresenta caracteres comuns aos organismos que lhes deram origem. E tanto isso é verdade, que nunca vimos um homem dar origem a uma palmeira, ou a um outro animal que lhe seja inferior.

            Procuremos agora interpretar os fatos, para que possamos ver se há contradição nos ensinos que o Espiritismo nos fornece.

            Estudamos em fisiologia que a matéria nada mais é que uma simples portadora de energia.

            A energia pode ser potencial ou de tensão, cinética ou real.

            Pois bem: a cromatina é portadora de energia potencial; e essa energia permanecerá nesse estado, enquanto não se reunirem as duas cromatinas masculina e feminina (pronucleus macho e pronucleus fêmea) (é o núcleo de um espermatozoide ou óvulo durante o processo de fecundação, após o espermatozoide entrar no óvulo e antes de se fundirem). Uma vez dada a fusão, a energia passa ao estado cinético e o óvulo se desenvolve.

            Até aí falou conosco, no estudo núcleo a ciência materialista. Agora vamos ver se, à luz clara do Espiritismo, podemos caminhar mais além, e explicar o concurso de um terceiro elemento no desenvolvimento do ser – o espírito que dirige a matéria.

            Temos visto, nos casos de materializações, realizadas em todas as partes do mundo, a necessidade do concurso de um médium para a realização desses fenômenos.

            Que é que o médium fornece ao espírito, para que ele se possa materializar?

            - Fornece fluidos, a fim de que possa condensar o seu perispírito.

            Que é esse fluido senão a energia sob um outro aspecto?

            O espírito precisa de fluidos, ou melhor de energia, dizemos nós, para se apresentar no nosso mundo material – Da qualidade do fluido do médium depende o espírito que se tem de materializar: quanto mais elevado é o estado de vibração dos fluidos do médium, tanto mais adiantado será o espírito a se manifestar: há uma espécie de atração simpática Entre um e outro, ou, se quiserdes, um fluidotropismo positivo. (Tropismos são movimentos de mudança de direção de crescimento que ocorrem em organismos vivos ou suas partes devido ao estímulo de um fator externo). Tanto isto é verdade que, nos centros onde predominam baixos sentimentos e, portanto, onde a atmosfera é pesada e grosseira, nunca os bons espíritos se podem manifestar.  

            O espírito é assim atraído pela quantidade do fluido do médium.

            Ora, que é a cromatina ou antes, a energia levada pela cromatina senão os fluidos desses médiuns que são os pais?

            Da qualidade dessa energia depende o espírito que se vai encarnar, isto é: o espírito que se vai encarnar é um espírito que se encaixa perfeitamente à qualidade da energia fornecida pelos pais. – Daí a hereditariedade que se apresenta como um fato incontestável no domínio da ciência.  

            Um espírito de um mundo superior não poderá se encarnar na matéria que constitui o nosso organismo, ainda grosseiro em comparação com esses corpos leves e etéreos que eles animam, porque não será atraído por ela. A prova disso temos no corpo fluídico, astral, de que Jesus se serviu para vir a Terra. O espírito de um homem também não poderá encarnar num animal inferior, porque a vibração do perispírito e do corpo material absolutamente não se podem harmonizar.

            É assim que há urna perfeita correlação entre os dois fenômenos A harmonia permanece infrangível, e a obra gigantesca e maravilhosa do Eterno, cientista dos cientistas, permanece bela, sublimemente perfeita e completa.

            O materialista, que deixa ficar no limite estreito e acanhado da matéria, não pode compreender estes fenômenos, e afirma que a ciência não se pode adaptar ao ensino religioso. Por outro lado, os espiritualistas que ainda não foram banhados por esta luz bendita da nova revelação, caminham, como duas individualidades perfeitas, nos dois terrenos, isto é: - são religiosos, sem serem cientistas, na igreja: são cientistas sem serem religiosos, nos laboratórios científicos!

            - Perfeita incoerência do pensamento humano!

            No caso da hereditariedade, o cientista materialista e o espiritualista desta última espécie não podem compreender o fenômeno que se passa, porque desconhecem as leis que regem o espirito, ou melhor, que reúnem o espírito à matéria: o primeiro, o materialista, nega o concurso dessa inteligência, que ele não conhece: o segundo, o espiritualista incompreensível, fecha os ouvidos para não se contradizer.

            Mas, perguntar-nos hão os materialistas se os organismos são como dissestes, e como dizemos nós, agrupamentos de colônias celulares, como é que existe o espírito no organismo humano? Essas células, o glóbulo branco do sangue (leucócito) a célula nervosa, por exemplo, não são individualidades perfeitas?

            -Sim, respondemos nós, como são todas as células, que se reúnem para constituir o Organismo: porém são individualidades dependentes da inteligência superior que as rege.

            Tomemos um exemplo: fácil, para fazer compreender o nosso pensamento. Um exército é constituído por milhares de soldados; cada soldado é uma individualidade perfeita: a reunião dessas individualidades constitui o exército sob as ordens de general que o rege: o general é o espírito diretor do exército, sem o qual não existiria a integridade do conjunto. – Desaparecendo o general, desmembra-se o organismo.

            Damos este esclarecimento, para mostrar que não há incoerência naquilo que afirmamos e, para mostrar, mais uma vez, que o Espiritismo é e será sempre, o facho radiante que guiará, num clarão maravilhoso e esplendorosamente belo, todas as inteligências que procurarem a verdade, custe isso embora o despedaçamento de todos os erros e preconceitos a que ainda está ligada a humanidade da Terra.

            A harmonia é a divisa da natureza: ela existe, quer na Terra, quer nos mundos que rolam em clarões resplandecentes pelas profundezas insondáveis do Universo! Ela é o laço que nos prende à cadeia da animalidade na Terra; ela será a escada de Jacó que nos levará, através, dos mundos, aos mais altos destinos da espiritualidade!



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