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domingo, 21 de julho de 2019

A Estaca zero



A estaca zero
Irmão X por Chico Xavier
Reformador (FEB) Janeiro 1951

Denunciando aflitiva expectação, o crente recém-desencarnado dirigia-se ao anjo orientador de aduana celeste, explicando:

- Guardei a maior intimidade com as obras de Allan Kardec que, invariavelmente, mantive por mestre inatacável. Os livros da codificação vigiavam-me a cabeceira. Devorei lhes todas as considerações, apontamentos e ditados e jamais duvidei da sobrevivência...

O funcionário espiritual esclareceu, porém, imperturbável:

- Entretanto, o seu nome aqui não consta entre os credores de ascensão às esferas santificadas. Sou, portanto, constrangido a indicar-lhe o regresso à nossa antiga arena de purificação na Crosta da Terra.

- Oh! o corpo! o fardo intolerável, suspirou o candidato, evidentemente desiludido.

Cobrou, contudo, novo ânimo e continuou:

- Talvez não me tenha feito compreender. Fui espírita convicto. Desde muito cedo, abracei os princípios sacrossantos da Doutrina que é, hoje, a salvadora luz da Humanidade. Não somente Allan Kardec foi o meu instrutor na descoberta da Revelação. Acompanhei as experiências de Zöllner e Aksakof, nos setores da física transcendental, com estudos particularizados da fenomenologia mediúnica.  Meditei intensivamente para fixar os conhecimentos de que disponho. Flammarion, no original francês, era meu companheiro predileto de noites e noites consecutivas. Em companhia dele, o meu pensamento pervagava nas constelações distantes, prelibando a glória que eu julgava alcançar, além do túmulo. Léon Denis era o mentor de minhas divagações filosóficas. Deleitava-me com os livros dele, absorvendo-lhes as elucidações vivas e sempre novas. E Delanne? nele, sem dúvida, situei o manancial de minhas perquirições científicas. Estimava confrontar-lhe as observações com os estudos de Claude Bernard, o fisiologista eminente, adquirindo, assim, base legítima para as análises minuciosas. Para não citar apenas os grandes vultos latinos, adianto-lhe que as experiências de Crookes foram carinhosamente acompanhadas por mim através do noticiário. As comoventes páginas de “Raymond”, com que Oliver Lodge surpreendeu o mundo, arrancaram-me lágrimas inesquecíveis. E, a fim de alicerçar pontos de vista, no sólido terreno do espírito, não me contentei com os ocidentais. Consagrei-me às lições dos orientalistas, demorando-me particularmente no exame dos ensinos de Rama-krishna, o moderno iluminado que plasmou discípulos da altura de um Vivekananda. No Brasil, tive a honra de assistir a sessões presididas por Bezerra de Menezes, em minha mocidade investigadora.,seguindo, atenciosamente, a formação e a prosperidade de muitos centros doutrinários...

Ante o silêncio do servidor celeste, o precioso estudante fez pequeno intervalo e observou:

- Com bagagem tão grande, acredito que a minha posição de espiritualista deva ser reconhecida.

- Sim - registou o anjo solícito - o seu cuidado na aquisição de conhecimento é manifesto. Traz consigo um cérebro vigoroso e bem suprido. Primorosa leitura e teorias excelentes.

- E não me supõe capacitado à travessia da barreira?  

- Infelizmente, não. As suas vibrações se inclinam para baixo e você não se mostra preparado a viver em atmosfera mais sutil que a da carne terrestre.

Longe de penetrar o verdadeiro sentido das palavras ouvidas, o crente aduziu:

- E a Bíblia? a intimidade com o Livro Divino, porventura, não me conferirá direito à elevação? De Moisés ao Apocalipse, efetuei reflexões incessantes. Prestei ardoroso culto a David e Salomão, entre os mais velhos, e não se passou um dia de minha existência em que não meditasse na grandeza de Jesus e na sublimidade dos seus ensinamentos. Em meu velho gabinete existem páginas variadas, escritas por mim mesmo, em torno do Evangelho de João, que interpreto como sendo a zona divina do Novo Testamento...

Parando alguns instantes, o recém desencarnado voltou a inquirir:

- Não julga que a minha fidelidade às letras Sagradas seja passaporte justo à subida?

- Indubitavelmente - respondeu o anjo -, a sua conceituação está repleta de imagens iluminativas. Ainda assim, não posso atentar contra a realidade que me compele a indicar-lhe o retorno para atender aos serviços que lhe cabe realizar.       

- Céu! - clamou o interlocutor, desapontado - que fazer então?

- Nesta passagem - explicou-se o cooperador angélico -, temos verdadeiro concurso de títulos e esses títulos se expressam aqui pelas obras de cada um. Sem experiência vivida e sem serviço feito, o espírito não vibra as condições precisas à viagem para o Mais Alto. O seu retrato mental deixa perceber uma individualidade pujante e valiosa, idêntica, no fundo, a um navio, vasto e bem acabado, cheio de riquezas, utilidades e adornos, que nunca se tenha ausentado do porto para a navegação. Em tais condições...
           
- Entretanto, eu não fiz mal a ninguém.

- Vê-se claramente que o seu espírito é nobre e bem intencionado.

- Então - indagou o crente, semi exasperado -, qual a minha posição de homem convicto? que sou? como estou, depois de haver estudado exaustivamente e crido com tanto fervor e tanta sinceridade?

O anjo, triste talvez pela necessidade de ser franco, elucidou, sem hesitar:

- A sua posição é invejável, comparada ao drama inquietante de muita gente. Demonstra uma consciência quitada com a Lei. Não tem compromissos com o mal e revela-se perfeitamente habilitado à excursão nos domínios do bem.

Em se tratando, contudo, de ascensão para o Céu, observo-lhe o coração na estaca zero. Ninguém se eleva sem escada e sem força. O meu amigo sabe muito. Agora, é preciso fazer.

E ante o sorriso reticencioso do funcionário celestial, o interlocutor nada mais aduziu, entrando, ali mesmo, em profundo silêncio.


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