A estaca zero
Irmão X por Chico Xavier
Reformador (FEB) Janeiro 1951
Denunciando
aflitiva expectação, o crente recém-desencarnado dirigia-se ao anjo orientador
de aduana celeste, explicando:
-
Guardei a maior intimidade com as obras de Allan Kardec que, invariavelmente,
mantive por mestre inatacável. Os livros da codificação vigiavam-me a
cabeceira. Devorei lhes todas as considerações, apontamentos e ditados e jamais
duvidei da sobrevivência...
O
funcionário espiritual esclareceu, porém, imperturbável:
- Entretanto,
o seu nome aqui não consta entre os credores de ascensão às esferas santificadas.
Sou, portanto, constrangido a indicar-lhe o regresso à nossa antiga arena de
purificação na Crosta da Terra.
- Oh!
o corpo! o fardo intolerável, suspirou o candidato, evidentemente desiludido.
Cobrou,
contudo, novo ânimo e continuou:
-
Talvez não me tenha feito compreender. Fui espírita convicto. Desde muito cedo,
abracei os princípios sacrossantos da Doutrina que é, hoje, a salvadora luz da
Humanidade. Não somente Allan Kardec foi o meu instrutor na descoberta da
Revelação. Acompanhei as experiências de Zöllner e Aksakof, nos setores da
física transcendental, com estudos
particularizados da fenomenologia mediúnica. Meditei intensivamente para fixar os
conhecimentos de que disponho. Flammarion, no original francês, era meu
companheiro predileto de noites e noites consecutivas. Em companhia dele, o meu
pensamento pervagava nas constelações distantes, prelibando a glória que eu
julgava alcançar, além do túmulo. Léon Denis era o mentor de minhas divagações filosóficas.
Deleitava-me com os livros dele, absorvendo-lhes as elucidações vivas e sempre
novas. E Delanne? nele, sem dúvida, situei o manancial de minhas perquirições
científicas. Estimava confrontar-lhe as observações com os estudos de Claude
Bernard, o fisiologista eminente, adquirindo, assim, base legítima para as
análises minuciosas. Para não citar apenas os grandes vultos latinos, adianto-lhe
que as experiências de Crookes foram carinhosamente acompanhadas por mim
através do noticiário. As comoventes páginas de “Raymond”, com
que Oliver Lodge surpreendeu o mundo, arrancaram-me lágrimas inesquecíveis. E,
a fim de alicerçar pontos de vista, no sólido terreno do espírito, não me
contentei com os ocidentais. Consagrei-me às lições dos orientalistas,
demorando-me particularmente no exame dos ensinos de Rama-krishna, o moderno
iluminado que plasmou discípulos da altura de um Vivekananda. No Brasil, tive a
honra de assistir a sessões presididas por Bezerra de Menezes, em minha
mocidade investigadora.,seguindo, atenciosamente, a formação e a prosperidade
de muitos centros doutrinários...
Ante o
silêncio do servidor celeste, o precioso estudante fez pequeno intervalo e
observou:
- Com
bagagem tão grande, acredito que a minha posição de espiritualista deva ser
reconhecida.
- Sim
- registou o anjo solícito - o seu cuidado na aquisição de conhecimento é manifesto.
Traz consigo um cérebro vigoroso e bem suprido. Primorosa leitura e teorias
excelentes.
- E
não me supõe capacitado à travessia da barreira?
-
Infelizmente, não. As suas vibrações se inclinam para baixo e você não se
mostra preparado a viver em atmosfera mais sutil que a da carne terrestre.
Longe
de penetrar o verdadeiro sentido das palavras ouvidas, o crente aduziu:
- E a
Bíblia? a intimidade com o Livro Divino, porventura, não me conferirá direito à
elevação? De Moisés ao Apocalipse, efetuei reflexões incessantes. Prestei
ardoroso culto a David e Salomão, entre os mais velhos, e não se passou um dia
de minha existência em que não meditasse na grandeza de Jesus e na sublimidade
dos seus ensinamentos. Em meu velho gabinete existem páginas variadas, escritas
por mim mesmo, em torno do Evangelho de João, que interpreto como sendo a zona
divina do Novo Testamento...
Parando
alguns instantes, o recém desencarnado voltou a inquirir:
- Não
julga que a minha fidelidade às letras Sagradas seja passaporte justo à subida?
-
Indubitavelmente - respondeu o anjo -, a sua conceituação está repleta de
imagens iluminativas. Ainda assim, não posso atentar contra a realidade que me
compele a indicar-lhe o retorno para atender aos serviços que lhe cabe
realizar.
- Céu!
- clamou o interlocutor, desapontado - que fazer então?
-
Nesta passagem - explicou-se o cooperador angélico -, temos verdadeiro concurso
de títulos e esses títulos se expressam aqui pelas obras de cada um. Sem
experiência vivida e sem serviço feito, o espírito não vibra as condições
precisas à viagem para o Mais Alto. O seu retrato mental deixa perceber uma individualidade
pujante e valiosa, idêntica, no fundo, a um navio, vasto e bem acabado, cheio
de riquezas, utilidades e adornos, que nunca se tenha ausentado do porto para a
navegação. Em tais condições...
-
Entretanto, eu não fiz mal a ninguém.
-
Vê-se claramente que o seu espírito é nobre e bem intencionado.
-
Então - indagou o crente, semi exasperado -, qual a minha posição de homem
convicto? que sou? como estou, depois de haver estudado exaustivamente e crido
com tanto fervor e tanta sinceridade?
O
anjo, triste talvez pela necessidade de ser franco, elucidou, sem hesitar:
- A
sua posição é invejável, comparada ao drama inquietante de muita gente.
Demonstra uma consciência quitada com a Lei. Não tem compromissos com o mal e
revela-se perfeitamente habilitado à excursão nos domínios do bem.
Em se
tratando, contudo, de ascensão para o Céu, observo-lhe o coração na estaca
zero. Ninguém se eleva sem escada e sem força. O meu amigo sabe muito. Agora, é
preciso fazer.
E ante
o sorriso reticencioso do funcionário celestial, o interlocutor nada mais
aduziu, entrando, ali mesmo, em profundo silêncio.
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