Carta
a Humberto
Meu
querido:
Já eu me dispusera a planejar um
futuro de comunicados mediúnicos, quando veio a mim a auspiciosa notícia da
tarefa a que te propuseras realizar.
Confesso-te: de início
assemelhou-se-me a empresa invulgar e agigantada, mas muito própria ao amor que
teu coração retém e que acumulaste nas vivências gregas e romanas. Confirma-se,
deveras, o primeiro qualificativo, que o meu entusiasmo insuflou à consciência
e que, agora, a pena reproduz com ligeireza. Mas quanto ao agigantado do
trabalho, apresso-me em confidenciar ao panorama espírita que a magnitude do
tesouro que pulsa em teu peito em
muito superou-lhe o grau.
Tenho andado, asseguro-te, num
torvelinho de atividades, mas - e isso tu mesmo o sabes - ... como diferem da
tortuosa produção materialona as criações do indivíduo cônscio de perspectivas
inusitadas, afastadíssimas do empertigado clima mundano, sobretudo dos salões
regurgitantes da cidade-luz. .. Acho-me atravessado por um novíssimo raio de
esperanças e - quero certificar-te - minhas certíssimas experiências na Terra,
em futuro, hão de ser de menos petardos
causticantes e de mais luta .. Assim, no momento em que enfrentar desta vez não
sei de qual nação a aduana, viverei menos azombado, mais feliz. Isso tudo é certo!
*
Imagina que há uns tempos percorri
as regiões africanas, sob a égide de um amigo que me não autoriza o revelar-lhe
o nome. O que colhi, a mancheias, anula toda a minha obra terrena: é
experimentação novíssima para mim. Eu mesmo estonteei-me com as pinturas que
analisei. Não há, nem jamais houve, realismo literário que logre retratar o
sofrimento contido em cada homem, ou mulher, ou criança que passassem os olhos
vermelhos e muito secos pelo meio das cabilas áridas, naquele exílio da vida. A
cabeça dos anciães, meu caro Humberto, coroada por agulhante carapinha,
continha, entretanto, a nobreza mais pura e mais nobre
(tu
me entendes ... ) que o mundo ostenta. Voltei mentalmente a Paris e o que
recordei fez-me sentir a mim mesmo o mais rasteiro dos vermes, dentre a
abundância de vermes que a Terra abriga. Eram criaturas azoinadas, a quem
faltavam as poltronas em que se repimpassem gordalhufamente, como os estarostes
da Rússia Imperial. Ali, em meio ao odor que, no Brasil, o bugre toma ao
africano, a administração era a dos sofrimentos mais diversos. O anedotário
configurava a dor; a própria dor fazia da felicidade a mais autêntica das
quimeras.
*
Meu querido: anteontem, cumprimentei-te com
todo o afeto e respeito que te voto. Hoje, torno a endereçar-me à tua luta e
digo-te: Tu o sabes; a forma vale pouco; o fundamento é praticamente tudo. Na
época em que o mundo balança, qual malabarista em corda-bamba,
foi esse um dos empreendimentos mais lúcidos que tive a ventura de presenciar.
Nunca houve tanta carência de bibliotecas que contivessem livros, muitos, muitíssimos,
mas, sobretudo, que guardassem nesses livros amor em grande monta! Estamos
atravessando uma etapa de vacuidade absoluta: há muito desentendimento. O
raciocínio, aciona-o a chave do orgulho, que mata incontinenti o coração,
originando a incipiência dos institutos pessoais: aqueles que deveriam ser o
auxílio incondicional, em nome de Jesus. (Figura o que dirão os sapientíssimos
dicionários ambulantes, ao verem o velho Eça transformado em beatíssimo arauto
de religião!. .. Oh, Senhor! Deixai-os viver, pobres deles!)
Meu bom amigo: foi validíssimo o
"tour de force" que perpetraste. Suaste muito! Mas, crê: já existe
uma pequenina construção nova na obra do Cristo. Essa é a tarefa de todos. Já
são novos e sucessivos horizontes a clarear o "tête-à-tête" humano,
apaziguando as pavorosas cenas de berros e de bofetões que o homem apronta. Foi
mais um passo, Humberto.
Abençoe-nos o Senhor.
O teu
Eça de Queiroz
P.S.
Sabes bem do porquê da ausência de data. Não há dia que marque mais a amizade
do que aquele em que maior vontade de renovação haja. E esse são-no já todos.
Eça de Queiroz
por Gilberto
campista Guarino,
na antevéspera da
reabertura
da Biblioteca da
FEB, na Avenida Passos em 11-10-73
in Reformador (FEB) em Jan 1974
Do Blog: Aos que buscam informar-se sobre o quebra cabeças do 'Quem foi Quem' temos aqui mais uma informação confiável: Humberto e Eça viveram tanto na Grécia como na Roma antigas.
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