Sacramentos
espíritas?
O Espiritismo, suscitado
numa época por excelência caracterizada pela liberdade de pensamento, pelo
espírito de crítica e de raciocínio; que, como ciência repousa sobre fatos de
observação, milhares de vezes comprovados, como filosofia apoia-se nas mais
sólidas induções e deduções que daí decorrem, submetendo todos os ensinos
espirituais ao cadinho da lógica inflexível, e como moral, finalmente, vem por
termo ao reinado da letra que mata, substituindo-o pelo do espírito que vivifica:
o Espiritismo virá a ser um dia uma religião com tudo o que as deforma e
esteriliza, isto é, com dogmas, sacerdotes, liturgia, sacramentos, numa palavra,
com todo o complicado aparato do culto exterior que, em todos os tempos,
deveram as religiões o seu efêmero prestígio, mas também por fim a sua ruína
inevitável e fatal?
Seria necessário desconhecer a
significação do tempo que vivemos e o papel que o Espiritismo é chamado a
desempenhar, como propulsor do progresso humano, incompatível com aquelas embaraçosas
engrenagens, para concluir pela afirmativa.
Com efeito, a revelação espírita
surge em uma época em que a humanidade, suficientemente esclarecida, acha-se preparada
para compreender a inutilidade das fórmulas e do formalismo, e tende a buscar a
satisfação de suas latentes aspirações de felicidade e de progresso, não nas práticas,
mais ou menos materiais, do culto exterior, mas no desenvolvimento sistemático
das forças ocultas da alma , que lhe permitirão uma posse, um conhecimento e, por
conseguinte, um gozo espiritual tanto mais intenso quanto maior for o apuro e o
desenvolvimento das suas faculdades.
Até aqui, a educação religiosa do homem
se tem feito mediante a imposição de um certo número de preceitos, cuja
observância – diziam-lhe – asseguraria a salvação. Hoje, pelo Espiritismo,
sabemos que o destino é regido por leis
sábias, inflexíveis, amorosas e
equitativas que “dão a cada um segundo suas obras”, isto é, que
exigem de toda criatura, para que efetivamente progrida, se adiante e engrandeça
espiritualmente, o esforço constante e pessoal, no exercício das virtudes cristãs,
por um longo estudo e conhecimento de si mesma, destruindo todas as tendências
trazidas do passado, e estimulando as secretas aspirações de Bem e da Verdade,
que em todas Deus depositou. Não há assim progresso possível, sem a intervenção
da própria atividade consciente, muito embora não cesse a divina Bondade de
outorgar-lhe seus favores, suprindo em misericórdia o que em merecimento falta.
Mas a inciativa é necessária.
Daí resulta que, estabelecendo-se
cada vez mais íntimas e permanentes as relações entre as criaturas e o Criador,
por intermédio dos seus mensageiros, e cumprindo a cada uma fazer do seu
próprio coração o tabernáculo
em que o adore em espírito e verdade, praticando as suas leis, desaparece
inteiramente toda a razão de
ser dos formalismos, cerimonias e exterioridades cultuais, que as religiões até
agora inculcaram necessários à salvação dos homens.
O Espiritismo, pois, que vem
preparar, inaugurar e estabelecer definitivamente na terra esse reinado do espírito, por Jesus anunciado e prometido à
Samaritana, jamais se poderá constituir uma religião dogmática, enfronhada na
modesta roupagem dos complicados e estéreis cerimoniais que caracterizam em geral
todas as religiões.
Assim não o parecem infelizmente entender
alguns confrades que, ora aqui, ora nos Estados - como esses do interior de S.
Paulo- tem ido pouco a pouco introduzindo nas práticas espiritas umas tantas
cerimônias, de que porventura se lhes afigura impossível prescindir.
Está neste caso o batismo, de que aqui
particularmente nos ocuparemos, e que em
maior ou menor escala vai sendo praticado em centros e grupos, a cujos diretores
fazemos a justiça de atribuir a boa fé ingênua de com isso acreditarem não
infringir as normas genuinamente espíritas.
Ora, é porque somos dos que consideram
essas práticas uma infração positiva de tais normas, e num intuito de elucidação
do assunto, na medida de nossa limitada capacidade, que são traçadas estas
linhas.
Antes de tudo convém definir a
significação e os efeitos daquele sacramento e para isso não é necessário mais
que recorrermos à fonte originária e às tradições religiosas de que procede, e
em que ainda permanece.
O batismo da água foi instituído primitivamente,
mas transitoriamente, por João, o precursor, por isso denominado o Batista, que,
porém, anunciava abertamente que, após ele vinha o que batizaria no espírito, isto
é, o Cristo, que daria aos homens as leis espirituais pelas quais se deveriam
reger de então em diante, regenerando-se em seus preceitos, que não nas abluções
exteriores, de mero simbolismo. Esse símbolo não era contudo aplicados senão a
homens adultos, e depois de uma pública penitência ou confissão de suas faltas,
submetendo-se eles espontaneamente, livre e voluntariamente a essa prática.
Introduzido mais tarde nos hábitos
da igreja cristã, então nascente, veio a adquirir o cunho de um dogma
perfeitamente característico e definido, tal como até hoje se mantém, atribuindo-se-lhe
o maior alcance e a mais alta significação.
São estes os seus efeitos:
extingue-se a mácula do pecado original e torna
cristão; confere a graça santificante, como dá direito aos frutos da
redenção e, por conseguinte, ao céu torna filho da igreja, submetido às suas
leis e apto a receber os outros sacramentos, que sem ele são nulos. Imprime à
alma uma característica inapagável e não pode por isso ser jamais reiterado. É,
finalmente, indispensável à salvação.
Assim, o estatuiu a teologia católica,
a que nos reportamos fielmente. E tamanha era a importância que lhe atribuíram
que, nos primeiros tempos da igreja, organizada como tal, os adultos não eram
admitidos ao batismo senão depois de terem percorrido os três sucessivos graus
do catecumenato: primeiramente como ouvintes, recebiam a necessária instrução;
em seguida, como competentes, assistiam ao começo da missa e praticavam as
abstinências de preceito; como eleitos, por fim, recebiam
solenemente o batismo, ministrado quer na véspera da Páscoa, quer do
Pentecostes.
Eis aí, pois, definido em sua significação
e em seus efeitos esse sacramento, que alguns menos refletidos têm procurado
introduzir nas práticas espiritas .. E aqui cabe perguntar-Ihes se,
adaptando-o, conservam -lhe os mesmos atributos e vantagens acima enumerados,
desde a extinção do pecado original até a outorga formal da salvação.
Optarão sem duvida pela negativa e
nem é preciso para isso aguardar-lhes o pronunciamento. Mas então a que título
o adotam? Que significação lhe atribuem? Será por mero espírito servil de imitação
que o copiam do ritual católico?
Há evidentemente- seja-nos licito afirmar
de nossa parte- no fundo do pensamento que tem inspirado a uns tantos espíritas
a introdução dessa cerimonia em seus processos, ou uma forte e inveterada
reminiscência dos hábitos de passadas vidas. ou, pelo menos, uma influência de
sua atual educação religiosa.
***
Alegarão eles que o que praticam não
é o batismo d'água, tal como o faz a
igreja; alguns mesmo chegam com efeito, a dissimular o ato, substituindo-lhe o
nome pelo de “apresentação espiritual” supondo ter assim dissipado toda confusão
e porventura inventado alguma coisa nova. E esse será talvez o evasivo
pretexto, de que muitos ainda se socorrerão, para não renunciar a tal prática, no
seu conceito, indispensável à nova e estranha
liturgia . Julgar-se-ão assim justificados, podendo alegar que não praticam o
batismo: limitam-se à “apresentação” aos guias espirituais do recém nato.
Mas apresentação para que? Para esses
guias invocados tomem sob sua proteção o espírito que mais uma vez volta ao
planeta? Será então para isso indispensável uma tal formalidade, ou mesmo sem
ela o guia espiritual não cessa de velar pelo ser confiado aos seus cuidados?
Se é indispensável, a doutrina
espírita não está na verdade, quando afirma que toda criatura, todo espírito,
desde o começo de sua evolução e durante a encarnação como na erraticidade, tem
sempre a encaminhar- Ihe os passos e sugerir-lhe as boas resoluções um anjo
tutelar, que o não abandona senão quando ele adiantou-se, evoluiu ao ponto de
poder, por sua vez, constituir-se o guia de outros mais atrasados, como outrora
o foi.
E se a apresentação não é indispensável
- e não o é, porque seria a negação da previdência de Deus, desse modo colocada
à mercê da claudicante iniciativa humana- nada justifica a sua supérflua inclusão
nos hábitos
espiritas. Deve, portanto, ser banida.
Ao demais, quando essa prática, com o
nome de batismo ou de apresentação – importa pouco – não tivesse contra si a
inoportunidade, isto é, quando não fosse levada a efeito ao momento em que o espírito
encarnado menos consciência tem de si, por isso que se acha na plenitude da
perturbação, mal entreabertos os olhos à indecisa luz do exterior e, por conseguinte
menos pode conhecer os efeitos de um ato em que não toma parte, não
constituiria menos esse enxerto um erro grave e um funesto precedente.
É um erro grave, porque importa
antes de tudo em uma violação da liberdade de consciência individual. Por menos,
com efeito, que se queira atribuir a esse batismo original o valor e o cunho da
imposição da fé espírita, não é menos certo que o batizando ficará inscrito nos
registros (?) da nova comunidade, com incontestável gáudio para as secretas
intensões dos seus progenitores. Dirão estes que, sendo o Espiritismo a melhor
das Doutrinas só pode haver benefício em se anteciparem eles à escolha de seu
filho, incluindo de antemão nas fileiras a que há de pertencer mais tarde.
Foi assim que também raciocinaram nossos
pais, quando nos fizeram conduzir à pia batismal, e foi igualmente assim que
entenderam e praticaram todas as anteriores gerações, que- está-se vendo --possuíam
do respeito ao livre arbítrio uma noção que não pode ser positivamente a mesma
que possuem, ou pelo menos devem possuir, os espíritas. E com tudo isso não se
puderam evitar as apostasias c abjurações.
Por melhor, pois, que considerem, e
com justa razão- não há negar- a doutrina espirita em relação a todas as demais,
nenhum pai tem contudo o direito de ligar de antemão seu filho, por uma fórmula
ou uma cerimônia qualquer, a sua própria crença. O que lhe cumpre é educa-lo
nos mais puros preceitos da moral cristã, mais por exemplos que por palavras, e
esperar que, crescendo à sua sombra tutelar, venha ele mais tarde a adotar
livremente as mesmas convicções religiosas. Se o contrario se der, se refratário
aos ensinos e exemplos
paternos, o filho, obedecendo a uma tendência natural de seu espírito, preferir
qualquer outra das religiões
ainda existentes sobre a terra , ao menos restará aos pais o consolo, não somente
de ter cumprido o seu dever
de exemplificação, mas também de haver fielmente respeitado a liberdade de consciência
do que por Deus lhes
fora confiado, abstendo-se de viola-la em qualquer tempo.
Reconhecemos quão difícil é atrair à
própria crença pela integridade dos exemplos, que de alguma sorte impô-la por
uma cerimônia momentânea; mas é muito útil e eficaz.
***
Quando ao precedente funesto a que
aludimos, consiste ele no próprio fato da adoção de uma solenidade
formalística, incompatível – repetimos – com o cunho eminente e exclusivamente
espiritual da nossa Doutrina.
Há, com efeito, sempre um perigo na
iniciativa de atos dessa ordem. E se é verdade que o Espiritismo, como dizíamos
em começo, se apresenta e – temos fé – se conservará para o futuro com aquele
característico de pura espiritualidade, graças sobretudo à universalidade da
fonte em que se regenera e terá perpetuamente a segurança de sua evolutiva
renovação - o mundo espiritual – não é menos certo que a adoção de exteriores formalidades
pelos seus crentes poderá pelo menos criar embaraços às gerações futuras.
Convém nunca perder de vista as
lições que a história da igreja nos oferece. Ao começo os cristãos se reuniam, para elevar ao céu as suas orações e estudar
em comum o Testamento deixado pelo Divino Mestre, até um certo tempo conservado
apenas na tradição oral, e mais tarde reduzido a texto escrito. Essa comunhão
fraterna era ilustrada unicamente pela palavra dos profetas, ou médiuns, que,
sob a inspiração e direção dos espíritos prepostos, dirimiam as dúvidas e
elucidavam os ensinos.
Depois foram adotados alguns
cânticos que, a pretexto de predispor as almas para o recolhimento e a unção
religiosa, não foram mais que o pretexto fatal para outros acessórios, e mais
outros, até chegar-se ao estado atual da igreja, que outrora, e por muito tempo
infelizmente, foi do Cristo, mas que degenerou por fim nessa mundaneria em que
o fausto, as pompas, as riquezas, tudo em suma o que pode entreter e lisonjear
os sentidos, vieram a substituir esse indispensável trabalho de aperfeiçoamento
da alma, mediante o cultivo de suas faculdades. Que contraste, realmente, entre
aquelas assembleias recolhidas, afetuosas e fraternas dos primeiros cristãos e
as solenidades pagãs e ruidosas da moderna igreja, entre a simplicidade
espiritual e pura de suas crenças e o amontoado de dogmas, regras e pretensões
teológicas atuais.
Cumpre pois, ter sempre em vista
essas lições e banir sistematicamente tudo o que possa importar na organização
de um ritual. Lembremo-nos de que muito pode o respeito ao passado e às
tradições, e de que, instituindo certas práticas, colocaremos os nossos
sucessores na desagradável perplexidade de, ao romper com os precedentes,
escandalizando a muitos, ou conservar religiosamente o legado transmitido, em
respeito à ‘sabedoria’ dos seus maiores..
E não será temerário nem gratuito
vaticinar a possibilidade de se formarem correntes de opiniões em um e outro
sentido, com evidente risco de perturbações e anarquias, que desde agora a
prudência e a noção que devemos ter das nossas responsabilidades nos aconselham
evitar.
Façamo-nos
espíritas de fato e, como tais, homens novos, inteiramente emancipados de
formalísticas rotinas, fiéis ao Cristo e aos seus mandatos, unicamente
preocupados de por em prática os seus ensinos, hoje em toda a sua pureza
restabelecidos em espírito e verdade.
assina Pedro Richard
in Reformador (FEB), ano XXIII, número 23
em 03
de dezembro de 1905
Passados
cerca de 70 anos, em 1973, recebemos outro alerta, desta vez em forma de artigos
publicados no ‘Reformador’ e mais
tarde apresentados sob a forma de livro, assinados pelo Jornalista Luciano dos
Anjos, sob título ‘O Atalho - Análise crítica do Movimento Espírita’ (Ed.
Lachatre), que nos diz dos descaminhos tomados pelo movimento espírita à época.
Somados outros 40 anos, infelizmente, alguns dos nossos companheiros continuam
preferindo os atalhos à rota segura indicada pelo Cristo de Deus em seus anos
de ministério. Finalizamos com a lembrança da frase de Armando de Oliveira
Assis, ex-presidente da FEB... “É da essência
da doutrina espírita que o adepto seja o árbitro no que tange à aceitação e à
adoção do que ela lhe inculca”, disposta na introdução do citado livro. Tenhamos pois, atenção, aos caminhos escolhidos ou apontados.
Do Blog
Nenhum comentário:
Postar um comentário