domingo, 29 de abril de 2012

Carta a Humberto


Carta a Humberto

Meu querido:

            Já eu me dispusera a planejar um futuro de comunicados mediúnicos, quando veio a mim a auspiciosa notícia da tarefa a que te propuseras realizar.

            Confesso-te: de início assemelhou-se-me a empresa invulgar e agigantada, mas muito própria ao amor que teu coração retém e que acumulaste nas vivências gregas e romanas. Confirma-se, deveras, o primeiro qualificativo, que o meu entusiasmo insuflou à consciência e que, agora, a pena reproduz com ligeireza. Mas quanto ao agigantado do trabalho, apresso-me em confidenciar ao panorama espírita que a magnitude do tesouro que pulsa em teu peito em muito superou-lhe o grau.

            Tenho andado, asseguro-te, num torvelinho de atividades, mas - e isso tu mesmo o sabes - ... como diferem da tortuosa produção materialona as criações do indivíduo cônscio de perspectivas inusitadas, afastadíssimas do empertigado clima mundano, sobretudo dos salões regurgitantes da cidade-luz. .. Acho-me atravessado por um novíssimo raio de esperanças e - quero certificar-te - minhas certíssimas experiências na Terra, em futuro, hão de ser de menos petardos causticantes e de mais luta .. Assim, no momento em que enfrentar desta vez não sei de qual nação a aduana, viverei menos azombado, mais feliz. Isso tudo é certo!

*

            Imagina que há uns tempos percorri as regiões africanas, sob a égide de um amigo que me não autoriza o revelar-lhe o nome. O que colhi, a mancheias, anula toda a minha obra terrena: é experimentação novíssima para mim. Eu mesmo estonteei-me com as pinturas que analisei. Não há, nem jamais houve, realismo literário que logre retratar o sofrimento contido em cada homem, ou mulher, ou criança que passassem os olhos vermelhos e muito secos pelo meio das cabilas áridas, naquele exílio da vida. A cabeça dos anciães, meu caro Humberto, coroada por agulhante carapinha, continha, entretanto, a nobreza mais pura e mais nobre
(tu me entendes ... ) que o mundo ostenta. Voltei mentalmente a Paris e o que recordei fez-me sentir a mim mesmo o mais rasteiro dos vermes, dentre a abundância de vermes que a Terra abriga. Eram criaturas azoinadas, a quem faltavam as poltronas em que se repimpassem gordalhufamente, como os estarostes da Rússia Imperial. Ali, em meio ao odor que, no Brasil, o bugre toma ao africano, a administração era a dos sofrimentos mais diversos. O anedotário configurava a dor; a própria dor fazia da felicidade a mais autêntica das quimeras.

*

             Meu querido: anteontem, cumprimentei-te com todo o afeto e respeito que te voto. Hoje, torno a endereçar-me à tua luta e digo-te: Tu o sabes; a forma vale pouco; o fundamento é praticamente tudo. Na época em que o mundo balança, qual malabarista em corda-bamba, foi esse um dos empreendimentos mais lúcidos que tive a ventura de presenciar. Nunca houve tanta carência de bibliotecas que contivessem livros, muitos, muitíssimos, mas, sobretudo, que guardassem nesses livros amor em grande monta!  Estamos atravessando uma etapa de vacuidade absoluta: há muito desentendimento. O raciocínio, aciona-o a chave do orgulho, que mata incontinenti o coração, originando a incipiência dos institutos pessoais: aqueles que deveriam ser o auxílio incondicional, em nome de Jesus. (Figura o que dirão os sapientíssimos dicionários ambulantes, ao verem o velho Eça transformado em beatíssimo arauto de religião!. .. Oh, Senhor! Deixai-os viver, pobres deles!)

            Meu bom amigo: foi validíssimo o "tour de force" que perpetraste. Suaste muito! Mas, crê: já existe uma pequenina construção nova na obra do Cristo. Essa é a tarefa de todos. Já são novos e sucessivos horizontes a clarear o "tête-à-tête" humano, apaziguando as pavorosas cenas de berros e de bofetões que o homem apronta. Foi mais um passo, Humberto.

            Abençoe-nos o Senhor.

            O teu
              Eça de Queiroz

P.S. Sabes bem do porquê da ausência de data. Não há dia que marque mais a amizade do que aquele em que maior vontade de renovação haja. E esse são-no já todos.

Eça de Queiroz  
por Gilberto campista Guarino,
na antevéspera da reabertura
da Biblioteca da FEB, na Avenida Passos em 11-10-73
in Reformador (FEB)  em Jan 1974



Do  Blog: Aos que buscam informar-se sobre o quebra cabeças do 'Quem foi Quem' temos aqui mais uma informação confiável: Humberto e Eça viveram tanto na Grécia como na Roma antigas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário