Gutemberg
A
Imprensa
Comentávamos
os desmandos da imprensa, num grupo de nossa esfera, quando o velho Hassan ben
Jain, experiente amigo, exclamou bem humorado:
-
Vocês, evidentemente, não têm razão! A imprensa é a grande alavanca do progresso
em todos os continentes. Do prelo rudimentar de Gutenberg até agora, a
Humanidade evolveu com mais segurança do que em vinte mil anos de suor nos
vários campos da vida. A ela devemos a difusão da cultura, pela rapidez do trabalho
informativo. As ciências, as artes e a literatura nela encontraram acessível
campo de expansão junto ao povo.
O
jornal é um espelho mágico onde nos apercebemos do que se passa no mundo
inteiro. Além disso, não podemos esquecer-lhe as campanhas de benemerência na
redenção social. Em todas as nações cultas, foi a tribuna gritante a favor da
extinção do cativeiro e, ainda agora, é o porta-voz dos direitos humanos, seja
profligando a dominação armamentista, seja abolindo a escravidão do povo a
vícios que se arraigaram no âmago das classes, quais sejam a usura e o
lenocínio, o furto inteligente e a irresponsabilidade administrativa. E a sua
eficiência nos movimentos de higiene e socorro? A imprensa auxiliou os cientistas e os cientistas
liquidaram a peste. O brado de uma folha qualquer convoca legiões de
benfeitores anônimos para essa ou aquela tarefa humanitária...
Defendendo
as colmeias do linotipo, acentuou:
-
E quem negará mérito ao homem do jornal, sentinela vigilante do bem-estar de
todos?
Quantos
deles se apagam em oficinas bulhentas, sacrificados, dia e noite, para que o
noticiário informe, instrua e esclareça o ânimo popular?
-
Entretanto - objetei, baseado nas observações do jornalista obscuro que fui,
que dizer dos repórteres inconscientes, que suprimem a estabilidade dos lares,
transformando-os em redutos infernais com o fogo invisível da maledicência; dos
lixeiros da opinião, que arrebanham loucos escapados do hospício para fazê-los falar
como pessoas sensatas, comprometendo a dignidade dos outros; dos parteiros do
boato delituoso, dos maníacos que se refestelam no sensacionalismo, escrevendo
com o sangue das tragédias alheias, quais se fossem sanguessugas de corações
expostos na praça; dos chantagistas que negociam com a dor do próximo, convertendo-a
em prato envenenado para a gula de caluniadores indiferentes?
O
velho, Hassan, todavia, cruzou as mãos e falou, paternal:
-
Não permita que o pessimismo lhe faça da cabeça uma bola de fel. Lembre-se de
que a imprensa dos homens não é a imprensa dos anjos. E onde existirão homens
na Terra sem o sinal da luta pelo aperfeiçoamento incessante?
Que
obra elevada no Planeta crescerá sem o assédio das criaturas ignorantes e
inferiores? Onde os doentes graves a se curarem sem o desvelo
dos sãos? Quantos heróis caíram ontem, ao pé dos carrascos, para que o homem de
hoje possa pensar sem maiores impedimentos? Fora dos escândalos da imprensa,
Sócrates padeceu a acusação de Anitos e seus companheiros, sem furtar-se à
cicuta, e, ainda sem eles, o próprio Cristo encontrou a incompreensão de Judas
e se viu constrangido à morte na cruz...
Fez
pequeno intervalo e continuou:
-
Os maus estão na imprensa como em todos os demais setores da vida humana, em qualquer parte do Globo. São gênios satânicos nas
linhas da Ciência, lobos em pele de ovelha nos templos religiosos, agiotas nos
ajustes amoedados, mãos leves no erário público, hienas risonhas onde há viúvas
e órfãos por depenar...
E
existem para arguir a virtude e consolidar os valores da educação. Surgem aqui
e ali, acreditando-se intocáveis, mas, na falsa suposição de enganarem a
outrem, acabam iludindo a si mesmos, porque, realmente, não procedem à revelia
da Providência Divina. E, em nos sentindo a admiração, narrou, depois
de longa pausa:
-
Antigo rolo judeu conta que um grande senhor utilizou certo vassalo para a
compra de vasos preciosos destinados a sua casa. O enviado procurou conhecido
oleiro que lhe mostrou bela coleção. O mensageiro escolhia alguns e neles batia
com fino estilete de cobre. Todavia, porque não tocasse em todos, perguntou-lhe
o vendedor pela razão de semelhante desprezo, ao que respondeu o interpelado,
sem vacilar: - Trabalho inútil. Quantos deixo à margem são vasos trincados que
se estilhaçariam com a menor pancada. Não posso perder tempo. Devo tanger
apenas os que se mostrem primorosamente perfeitos, sem qualquer aleijão. E,
fitando-nos de modo expressivo, terminou, sorridente:
-
Assim também, os grandes instrutores que agem no mundo em nome de Deus, na imprensa
ou fora dela, jamais se preocupam em experimentar o coração dos perversos.
Entregam-nos à paciência das horas e à sabedoria da vida e usam espinhos
humanos para tocar simplesmente os justos, aferindo-lhes a resistência para a concessão
natural de tarefas superiores...
Estimaríamos
prosseguir conversando, mas o velho filósofo, alegando serviço urgente, despediu-se,
tranquilo, deixando-nos, porém, algo para meditar.
Irmão
X
por Chico Xavier
Reformador
(FEB) Abril 1959
Gutemberg Museum
Mainz, Alemanha
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