Reformador
Março 1978
A Desencarnação
de Allan Kardec – Seus Funerais
"Continuai a
derramar sobre os vossos discípulos o vosso concurso benigno e poderoso; a obra
se cumprirá!.. e vosso nome, gravado no panteão da História, entre aqueles dos
benfeitores da Humanidade, se transmitirá de Idade em Idade como os dos
profetas antigos." - Levent, 1870.
No
dia em que Allan Kardec desencarnava, constituindo este fato dolorosa surpresa
para todos os seus amigos e para os espíritas em, geral, nesse mesmo dia o Sr.
E. Muller, grande amigo do Codificador e de sua digna esposa, assim se
expressava por carta ao Sr. Finet:
““Paris, 31 de março de 1869.
"Amigo:
"Agora, que já estou um pouco mais calmo, eu vos
escrevo. Enviando-vos meu aviso, como o fiz, talvez tenha agido um tanto
brutalmente, mas me parecia que devíeis receber a comunicação imediata desse
falecimento.
"Eis alguns
pormenores:
"Ele morreu esta
manhã, entre onze e doze horas, subitamente, ao entregar um número da Revue
a um caixeiro de livraria que acabava de comprá-lo; ele se curvou sobre si
mesmo, sem proferir uma única palavra: estava morto.
"Sozinho em sua
casa (Rua de Sant'Ana), Kardec punha em ordem seus livros e papéis para a mudança
que se vinha processando e que deveria terminar amanhã. Seu empregado, aos
gritos da criada e do caixeiro, acorreu ao local, ergueu-o... nada, nada mais. Delanne acudiu com toda a presteza, friccionou-o, magnetizou-o,
mas em vão. Tudo estava acabado.
"Venho de vê-lo.
Penetrando a casa, com móveis e utensílios diversos atravancando a entrada, pude ver, pela porta aberta da grande sala de sessões, a
desordem que acompanha os preparativos para uma mudança de domicílio;
introduzido numa pequena sala de visitas, que conheceis bem, com seu tapete
encarnado e seus móveis antigos, encontrei a Sra. Kardec assentada no canapé,
de face para a lareira; ao seu lado, o Sr. Delanne; diante deles, sobre dois
colchões colocados no chão, junto à porta da pequena sala de jantar, jazia o
corpo, restos inanimados daquele que todos amamos. Sua cabeça, envolta em parte
por um lenço branco atado sob o queixo, deixava ver toda a face, que parecia
repousar docemente e experimentar a suave e serena satisfação do dever cumprido.
"Nada de tétrico
marcara a passagem de sua morte; se não fosse a parada da respiração, dir-se-ía
que ele estava dormindo.
"Cobria-lhe o
corpo uma coberta de lã branca, que, junto aos ombros dele, deixava perceber a gola do robe de chambre, a roupa que ele vestia quando fora
fulminado; a seus pés, como que abandonadas, suas chinelas e meias pareciam
possuir ainda o calor do corpo dele.
"Tudo isto era
triste, e, entretanto, um sentimento de doce quietude penetrava-nos a alma;
tudo na casa era desordem, caos, morte, mas tudo aí parecia calmo, risonho e
doce, e, diante daqueles restos, forçosamente meditamos no futuro.
"Eu vos disse que
na sexta-feira é que o enterraríamos, mas ainda não sabemos a que horas; esta noite seu corpo está sendo velado por Desliens e Tailleur;
amanhã o será por Delanne e Morin.
"Procuram-se,
entre os seus papéis, suas últimas vontades, se é que ele as escreveu; de
qualquer forma, o enterro será puramente civil.
"Escrever-vos-ei,
dando-vos os pormenores da cerimônia.
"Amanhã, creio eu,
cuidaremos em nomear uma comissão de espíritas mais ligados à Causa, aqueles
que melhor conhecem as necessidades dela, a fim de aguardar e de saber o que se
irá fazer...
"De todo o
coração, vosso amigo,
(a)
Muller."
"Eis
aqui, na medida em que minhas recordações o permitem, os pormenores da cerimônia (fúnebre):
Exatamente
ao meio dia (de 2 de abril de 1869) se pôs em marcha o cortejo, encabeçado por
um único carro mortuário, modesto, seguido lentamente por respeitosa multidão formada
por, quantos conseguiram comparecer a esse último encontro. O Sr. Levent,
Vice-Presidente da Sociedade (Sociedade Parisiense de Estudos
Espíritas), presidia a comitiva, tendo à sua esquerda o Sr. Tailleur e à sua
direita o Sr. Morin, seguindo-se lhes os médiuns, o Comité -- a Sociedade toda e uma multidão de amigos e
simpatizantes. Fechavam o séquito voluntários e inativos. Ao todo, de mil a mil
e duzentas pessoas.
Andando
pela Rua de Grammont, o cortejo atravessou os grandes bulevares, as Ruas Laffitte,
Notre-dame de Lorrette, Fontaine e os bulevares exteriores (Clichy),
ingressando no cemitério de Montmartre, por entre os populares que se
acotovelavam (...)”
Falaram,
junto à sepultura e rodeados pelos que disputavam os lugares donde melhor pudessem
ouvir os discursos ("pobre gente!" - exclamou o Sr. Muller), Levent,
Camille Flammarion, Alexandre Delanne e Muller.
A
descrição dos funerais é de E. Muller, em carta aos seus amigos de Lyon, datada
de Paris, 4-4-1869. Os destaques, entre
parênteses, são do compilador.
.....
Detalhe entrada - Père Lachaise
O Caráter de Kardec
Em
31 de março de 1870, ali pelas duas horas da tarde, grande número de espíritas
encheu o famoso cemitério de Père-Lachaise, colocando-se em torno do monumento
dolmético erigido para honrar a memória imperecível do sábio codificador da
Doutrina Espírita - Allan Kardec.
Inaugurava-se
a nova morada dos despojos do saudoso extinto, e vários discursos foram
pronunciados, exprimindo todos os oradores, "com a eloquência do coração,
os sentimentos de reconhecimento e os testemunhos de gratidão dos espíritas
presentes e ausentes".
.....
Alguns
companheiros de Kardec, não podendo comparecer a essas manifestações de
carinho, remeteram belíssimas cartas. Transcreveremos, em tradução, a de
Alexandre Delanne, amigo dedicado de Kardec e pai de Gabriel Delanne.
Carta de Delanne
Rouvray,
30 de Março de 1870
Faz um mês que estou no campo, buscando
restabelecer minha saúde fortemente abalada por seis meses de doença. Tive
ciência, através de uma carta de Madame Delanne, que, amanhã, ireis inaugurar o
monumento do nosso venerado mestre Allan Kardec. Seria grande felicidade para
mim estar entre vós, a fim de assistir a essa tocante cerimônia e prestar
homenagem, de viva voz, uma vez mais, a este Espírito de elite que, ao me
infundir a fé esclarecida, deu-me ao mesmo tempo a serenidade e a resignação
tão necessária nesta terra de provações.
Mas, se a distância e o esgotamento de
minhas forças não me permitem acompanhar-vos
pessoalmente, crede que meu coração não permanece insensível, e que meu
pensamento livre, malgrado a impotência do meu corpo, irá unir-se ao vosso.
Ninguém saberia, melhor que eu,
reconhecer as raras qualidades de Allan Kardec e render-lhe a devida justiça.
Vi, muitas vezes, em minhas longas viagens, o quanto era ele amado, estimado e
compreendido por todos os adeptos. Todos desejavam conhecê-lo pessoalmente a
fim de lhe agradecerem o lhes ter dado a luz por intermédio de suas obras, a
fim de lhe testemunharem sua gratidão e seu completo devotamento. Eles o amam,
até hoje, como a um verdadeiro pai. Todos proclamam seu gênio e o reconhecem o
mais profundo dos filósofos modernos. Mas, estarão eles em condições de
apreciá-lo em sua vida privada, isto é, por seus atos? Puderam eles avaliar a
bondade do seu coração, avaliar seu caráter tão firme quão justo, a
benevolência de que usava em suas relações, sua prudência e sua extrema
delicadeza? Não.
Pois bem, senhores, é a esse respeito
que hoje vos quero falar do autor de “O Livro dos Espíritos”, visto que por
muitas vezes tive a honra de ser recebido em sua intimidade. Fui testemunha de
algumas de suas boas ações, e, a este propósito, algumas citações talvez não
sejam inconvenientes aqui.
Como um dos meus amigos, o Senhor P ...
, de Joinville, me veio ver, fomos juntos à Villa de Ségur fazer uma visita ao mestre. Durante a palestra, o
Sr. P... teve a ocasião de narrar a vida
de privações por que passava um de seus compatriotas, ancião a quem tudo faltava, que não tinha mesmo vestes próprias para proteger-se do
inverno, sendo forçado a abrigar seus pés em tamancos grosseiramente
trabalhados. Este bom homem, entretanto, longe estava de se lamentar e,
sobretudo, de solicitar auxílios: era um pobre envergonhado. (Uma brochura
espírita, que lhe caíra sob os olhos, permitira-lhe beber na Doutrina a
resignação para as suas provas e a esperança de melhor futuro.) Vi, então,
rolar dos olhos de Allan Kardec uma lágrima de compaixão, e, confiando ao meu
amigo algumas moedas de ouro, disse-lhe: “Levai,
para que possais prover as necessidades mais prementes do vosso protegido, e,
já que ele é espírita, e as economias dele lhe não permitem instruir-se quanto
ele desejaria, voltai amanhã; entregar-vos-ei, juntamente com as minhas obras,
todas aquelas que eu puder dispor em proveito dele.” Allan Kardec cumpriu
sua promessa, e o velho abençoa hoje o nome do benfeitor que, não satisfeito em
lhe socorrer a miséria, lhe dava ainda o pão da vida, a riqueza da inteligência
e da moral.
Há alguns anos me foi recomendada uma
pessoa reduzida à extrema miséria, expropriada violentamente de sua casa e
lançada à rua, sem recursos, com mulher e filhos. Eu me fiz, junto ao mestre, o
intérprete desses infelizes, e, no mesmo instante, sem pedir para conhecê-los,
sem inquirir de suas crenças ( eles não eram espíritas) , ele me forneceu os
recursos para tirá-los da miséria, o que lhes evitou o suicídio, pois que eles
haviam resolvido evadir-se ao fardo da vida (que para a alma desencorajada
deles se tornara muito pesado), se tivessem que renunciar à assistência dos
homens.
Finalmente, permiti-me contar-vos ainda
o fato a seguir, em que a generosidade de Kardec rivaliza com a sua delicadeza.
Certo espírita, que habitava uma aldeia
situada a vinte léguas de Paris, tinha rogado a Allan Kardec lhe desse a honra
de uma visita, a fim de este assistir às manifestações espíritas que com ele se
processavam.
Sempre pronto quando se tratasse de
prestar algum serviço e tendo por princípio que
o Espiritismo e os espíritas tudo devem aos humildes e aos pequenos, sem demora ele
partiu, acompanhado de alguns amigos e da Senhora Allan Kardec, sua querida
companheira.
Não foi perdida a sua ida, porque as
manifestações que testemunhou foram verdadeiramente notáveis; mas, durante sua
curta permanência ali, seu hospedeiro foi cruelmente afligido pela perda súbita
de uma parte de seus recursos. Todos, consternados, dissimulavam sua desolação,
tanto quanto possível. Entretanto, a nova do desastre chegou aos ouvidos de
Allan Kardec, que, no momento de sua partida, informando-se da cifra aproximada
das perdas sofridas pelo amigo, remeteu ao “maire” uma quantia mais que
suficiente para restabelecer o equilíbrio da situação do seu hospedeiro. Este,
só foi notificado da intervenção do seu benfeitor após a partida dele.
Não mais pararia eu de falar, se tivesse
necessidade de vos lembrar os milhares de fatos deste gênero, conhecidos
tão-somente por aqueles que por Kardec foram socorridos; não amparava apenas a
miséria, levantava, também, com palavras confortadoras, o moral abatido.
Jamais, porém, sua mão esquerda soube o que dava a direita. Antes de terminar,
não posso resistir ao desejo de dar-vos a conhecer esta última passagem:
Uma tarde, uma pessoa de minhas
relações, que passava por cruel provação, guardando aos olhos de todos suas
privações, recebeu uma carta fechada que continha recursos suficientes para
auxiliá-lo a sair de sua crítica posição, acompanhados aqueles destas simples
palavras: “Da parte dos bons Espíritos.”
Do mesmo modo que a bondade do mestre lhe descobrira o infortúnio, meu amigo,
guiado por alguns indícios e pela voz do coração, cedo reconheceu seu anônimo
benfeitor.
Eis, portanto, o coração desse filósofo
desconhecido durante a sua vida! E, na verdade, quem mais do que ele, tão bom,
tão nobre, tão grande em suas palavras quanto em suas ações, foi alvo da
injúria e da calúnia?
Entretanto, não tinha inimigos, senão os
que totalmente o desconheciam; porque, apreciando-o bem, mesmo aqueles que não
partilhavam de suas opiniões filosóficas eram forçados a render homenagem à sua
boa-fé e ao seu completo desinteresse.
Seus críticos, que dele não conheceram
senão a sua bandeira, procuraram perdê-lo na opinião pública, sem ao menos
investigarem se os boatos que espalhavam tinham algum fundamento; porém, ele
susteve a sua bandeira tão alto e tão firme, que nenhum descrédito pôde
atingi-lo, e a lama com que o queriam cobrir, não enlameou senão as mãos dos
panfletários.
Caro mestre, nobre e grande Espírito,
paira, na tua majestade, sobre aqueles que te amam e respeitam! Não os deixes
sem a tua intervenção caridosa e protetora! Comunica à alma deles o fogo
sagrado que te anima, e assim, profundamente convencidos dos imortais
princípios que professaste, marchem eles nas tuas pegadas, imitando-te as
virtudes! Faze reinar entre nós a concórdia, o amor e a paz, a fim de que a ti
nos possamos reunir quando a hora da libertação soar igualmente para nós!
Recebei, etc.
Al. Delanne
(Traduzida
da obra, editada em 1870 - Paris, Librairie Spirite, Rue de Lille, 7
-,
"Discours prononcés pour I'anniversaire de Ia mort de Allan Kardec
-
Inauguration du Monument", pp. 17/24.)
…..
Traços físicos e morais de Allan Kardec
Ana Blackwell, que conheceu de perto
Allan Kardec, cujas obras fundamentais traduziu para a língua inglesa, deixou
para a posteridade essa página referente ao Codificador:
Allan
Kardec era de estatura meã. Robusto, cabeça ampla, redonda, firme, com feições
bem pronunciadas e olhos pardo-claros, mais parecia alemão que francês. Era
ativo e tenaz, mas de temperamento calmo, precavido e realista até quase à
frieza, cético por natureza e por educação, argumentador lógico e preciso, e
eminentemente prático em suas ideias e ações; distanciado assim do misticismo que
do entusiasmo... Ponderado, lento no falar, sem afetação, com inegável
dignidade, resultante da seriedade e da honestidade, traços distintivos de seu
caráter. Sem procurar discussões nem a elas fugir, mas nunca provocando
qualquer comentário a respeito do assunto a que consagrara sua vida, recebia
amavelmente os numerosos visitantes que acorriam de todas as partes do mundo
para conversar com ele a respeito das ideias de que era o mais autorizado
expoente, respondendo às consultas e às objeções, resolvendo dificuldades, e
dando informações a todos os investigadores sérios, com os quais falava franca
e animadamente. Em algumas ocasiões apresentava fisionomia radiante, com um
sorriso agradável e prazenteiro, se bem que, por causa da sobriedade do seu
todo, jamais o viram rir.
Entre
os milhares de visitantes, encontravam-se pessoas de alto nível no mundo
social, literário, artístico e científico. O imperador Napoleão IlI, cujo
interesse pelos fenômenos espíritas não era nenhum segredo, mandou chama-lo
várias vezes, e com ele manteve longas palestras, nas Tulherias, acerca das
doutrinas expostas em «O Livro dos Espíritos".
(Traduzido
das págs. 169-70 de The History of Spiritism vol, II, da
autoria de Arthur Conan Doyle.)
Nenhum comentário:
Postar um comentário