Fonte: ‘Revista Espirita’- Setembro, Ano: 1869
Ed. FEB 2004
Entendemos ter sido Leymarie quem juntou os
discursos e notas da imprensa, como abaixo.
Discursos
Pronunciados Junto ao Túmulo
Em nome da Sociedade
Espírita de Paris
Pelo Vice-Presidente, Sr. Levent
Senhores,
Em nome da Sociedade Espírita de Paris, da qual tenho a
honra de ser Vice-Presidente, venho exprimir seu pesar pela perda cruel que
acaba de sofrer, na pessoa de seu venerado mestre, Sr. Allan Kardec, morto subitamente
anteontem, quarta-feira, nos escritórios da Revista.
A vós, senhores, que todas as sextas-feiras vos reuníeis
na seda da Sociedade, não preciso lembrar essa fisionomia ao mesmo tempo
benevolente e austera, esse tato perfeito, essa justeza de apreciação, essa
lógica superior e incomparável que nos parecia inspirada.
A vós, que todos os dias da semana partilháveis dos
trabalhos do mestre, não retraçarei seus labores contínuos, sua correspondência
com as quatro partes do mundo, que lhe enviavam documentos sérios, logo
classificados em sua memória e
preciosamente recolhidos
para serem submetidos ao cadinho de sua alta razão, e formar, depois de um
trabalho escrupuloso de elaboração, os elementos dessas obras preciosas que
todos conheceis.
Ah! se, como a nós, vos fosse dado ver esta massa de
materiais acumulados no gabinete de trabalho desse infatigável pensador; se,
conosco, tivésseis penetrado no santuário de suas meditações, veríeis esses
manuscritos, uns quase terminados, outros
em curso de execução,
outros, enfim, apenas esboçados, espalhados aqui e ali, e que parecem dizer:
Onde está, pois, o nosso mestre, tão madrugador no trabalho?
Ah! mais do que nunca, também exclamaríeis, com inflexões
tão pesarosas de amargura que seriam quase ímpias: Precisaria Deus ter chamado
o homem, que ainda podia fazer tanto bem? a inteligência tão cheia de seiva, o
farol, enfim, que nos tirou das trevas e nos fez entrever esse novo mundo, mais
vasto e admirável do que o que imortalizou o gênio de Cristóvão Colombo? Ele
apenas começara a fazer a descrição desse mundo, cujas leis fluídicas e
espirituais já pressentíamos.
Mas, tranquilizai-vos, senhores, por este pensamento tantas
vezes demonstrado e lembrado pelo nosso presidente: "Nada é inútil em a Natureza, tudo tem sua razão de ser, e o que Deus
faz é sempre bem-feito."
Não nos assemelhemos a esses meninos indóceis que, não
compreendendo as decisões dos pais, se permitem criticá-los e por vezes mesmo
censurá-los.
Sim, senhores, disto tenho a mais profunda convicção e vo-lo
exprimo abertamente: a partida do nosso caro e venerado mestre era necessária!
Aliás, não seríamos ingratos e egoístas se, não pensando
senão no bem que ele nos fazia, esquecêssemos o direito que ele adquirira, de
ir repousar um pouco na pátria celestial, onde tantos amigos, tantas almas de escol o esperavam e vieram recebê-lo,
após uma ausência, que também para eles parecia bem longa?
Oh! sim, há alegria, há grande festa no Alto, e essa
festa, essa alegria, só se iguala à tristeza e ao luto causados por sua partida
entre nós, pobres exilados, cujo tempo ainda não chegou! Sim, o mestre havia
realizado a sua missão! Cabe a nós continuar a sua obra, com o auxílio dos
documentos que ele nos deixou, e daqueles, ainda mais preciosos, que o futuro
nos reserva. A tarefa será fácil, ficai certos, se cada um de nós ousar
afirmar-se corajosamente; se cada um de nós tiver compreendido que a luz que
recebeu deve ser propagada e comunicada aos
seus irmãos; se cada um de nós, enfim, tiver a memória do coração para o nosso
lamentado presidente e souber compreender o plano de organização que levou o
último selo de sua obra.
Continuaremos, pois, o teu trabalho, caro mestre, sob teu
eflúvio benfazejo e inspirador. Recebe aqui a nossa promessa formal. É o melhor
sinal de afeição que podemos te dar.
Em nome da Sociedade
Parisiense de Estudos Espíritas, não te dizemos adeus, mas até
logo, até breve!
O
Espiritismo e a Ciência
Pelo Sr. C. Flammarion
Depois que o Sr. Vice-Presidente da Sociedade, junto à
tumba do mestre, proferiu a prece pelos mortos e, em nome da Sociedade,
testemunhou os sentimentos de pesar que acompanham o Sr. Allan Kardec à sua
partida desta vida, o Sr. Camille Flammarion pronunciou o discurso que vamos
reproduzir em parte. De pé, numa elevação de onde dominava a assembleia, o Sr.
Flammarion pôde ser ouvido por todos, afirmando publicamente realidade dos
fatos espíritas, seu interesse geral na Ciência e sua importância futura. Esse
discurso não é apenas um esboço do caráter do Sr. Allan Kardec e do papel de
seus trabalhos no movimento contemporâneo, mas, ainda e sobretudo, uma
exposição da situação atual das ciências físicas, do ponto de vista do mundo
invisível, das forças naturais desconhecidas, da existência da alma e de sua
indestrutibilidade.
Falta-nos espaço para dar in extenso o discurso do Sr. Flammarion. Eis o que se liga
diretamente ao Sr. Allan Kardec e ao Espiritismo, considerado em si mesmo. (O
discurso inteiro será publicado em brochura).
“Senhores,
''Aceitando com deferência o convite simpático dos amigos
do pensador laborioso cujo corpo terreno jaz agora aos nossos pés, vem-me à
mente um dia sombrio do mês de dezembro de 1865, em que pronunciei palavras de
supremo adeus junto à tumba do fundador da Livraria Acadêmica, do honrado
Didier, que, como editor, foi colaborador convicto de Allan Kardec, na
publicação das obras fundamentais de uma doutrina que lhe era cara. Também ele
morreu subitamente, como se o céu houvesse querido poupar a esses dois
Espíritos íntegros o embaraço fisiológico de sair desta vida por via diferente
da comumente seguida. A mesma reflexão se aplica à morte do nosso ex-colega
Jobard, de Bruxelas.
"Hoje, maior ainda é a minha tarefa, porquanto eu
desejara figurar à mente dos que me ouvem e à dos milhões de criaturas que na
Europa inteira e no Novo Mundo se têm ocupado com o problema ainda misterioso
dos fenômenos chamados espíritas; - eu quisera, digo, poder figurar-lhes o
interesse científico e o porvir filosófico do estudo desses fenômenos, ao qual
se hão consagrado, como ninguém ignora, homens eminentes dentre os nossos
contemporâneos. Estimaria fazer-lhes entrever os horizontes desconhecidos que a
mente humana verá rasgar-se diante de si, à medida que ela ampliar o
conhecimento positivo das forças naturais que em torno de nós atuam;
mostrar-lhes que essas comprovações constituem o
mais eficaz antídoto para a lepra do ateísmo, de que parece atacada,
principalmente, a nossa época de transição; dar, enfim, aqui, testemunho
público do eminente serviço que o autor de O
livro dos Espíritos prestou à filosofia, chamando a atenção e provocando
discussões sobre fatos que até então pertenciam ao domínio mórbido e funesto
das superstições religiosas.
"Seria, com efeito, um ato importante firmar aqui,
junto deste túmulo eloquente, que o metódico exame dos fenômenos erroneamente
qualificados de sobrenaturais, longe de renovar o espírito de superstição e de
enfraquecer a energia da razão, ao contrário, afasta os erros e as ilusões da
ignorância e serve melhor ao progresso, do que as negações ilegítimas dos que
não querem dar-se ao trabalho de ver.
"Mas, este não é lugar apropriado a estabelecer uma
arena às discussões desrespeitosas. Deixemos apenas que das nossas mentes
desçam, sobre a face impassível do homem ora estendido diante de nós,
testemunhos de afeição e sentimentos de pesar, que lhe permaneçam ao derredor
em seu túmulo, qual embalsamamento do coração! E, pois que sabemos que sua alma
eterna sobrevive a estes despojos mortais, do mesmo modo que a eles preexistiu;
pois que sabemos que laços indestrutíveis unem o nosso mundo visível ao mundo
invisível; pois que esta alma existe hoje tão bem como há três dias e que não é
impossível se ache atualmente na minha presença. Digamos-lhe que não quisemos
se desvanecesse a sua imagem terrena encerrada no sepulcro, sem unanimemente rendermos
homenagem a seus trabalhos e à sua memória, sem pagar um tributo de reconhecimento
à sua encarnação ter rena, tão útil e tão dignamente preenchida.
"Traçarei, primeiro, num esboço rápido, as linhas
principais da sua carreira literária.
"Morto na idade de 65 anos, Allan Kardec consagrara
a primeira parte de sua vida a escrever obras clássicas, elementares,
destinadas, sobretudo, ao uso dos educadores da mocidade. Quando, pelo ano de
1850, as manifestações, novas na aparência, das mesas girantes, das pancadas
sem causa ostensiva, dos movimentos insólitos de objetos e móveis começaram a
prender a atenção pública, determinando mesmo, nos de imaginação aventureira, uma espécie
de febre, devida à novidade de tais experiências, Al1an Kardec, estudando ao
mesmo tempo o magnetismo e seus singulares efeitos, acompanhou com a maior
paciência e clarividência judiciosa as experimentações e as tentativas
numerosas que então se faziam em Paris.
"Recolheu e pôs em ordem os resultados conseguidos
dessa longa observação e com eles compôs o corpo de doutrina que publicou em
1857, na primeira edição de O Livro dos
Espíritos. Todos sabeis que êxito alcançou essa obra, na França e no
estrangeiro. Havendo atingido a 16ª edição, tem espalhado em todas as classes
esse corpo de doutrina elementar que, na sua essência, não é absolutamente
novo, porquanto a escola de Pitágoras, na Grécia, e a dos druidas, em nossa
própria Gália, ensinavam os seus princípios fundamentais, mas que agora reveste
uma forma de verdadeira atualidade, por corresponder aos fenômenos.
"Depois dessa primeira obra apareceram,
sucessivamente, O Livro dos Médiuns,
ou Espiritismo experimental, - O que é o
Espiritismo, ou resumo sob a forma de perguntas e respostas; - O Evangelho segundo o Espiritismo; - O Céu e o Inferno, - A Gênese. A morte o surpreendeu no
momento em que, com a sua infatigável atividade, trabalhava noutra sobre as
relações entre o Magnetismo e o Espiritismo.
"Pela Revista
Espírita e pela Sociedade de Paris,
cujo presidente ele era, se constituíra, de certo modo, o centro a que tudo ia
ter, o traço de união de todos os experimentadores. Faz alguns meses, sentindo
próximo o seu fim, preparou as condições de vitalidade de tais
estudos para depois de sua morte e instituiu a Comissão Central que lhe sucede.
"Suscitou rivalidades; fez escola de feição um pouco
pessoal, havendo ainda alguns dissídios entre os "espiritualistas" e
os "espíritas". Doravante, senhores (tal, pelo menos, o voto que
formulam os amigos da verdade), devemos unir-nos todos por uma solidariedade fraterna,
pelos mesmos esforços em prol da elucidação do problema, pelo desejo geral e
impessoal do verdadeiro e do bem.
"Quantos corações foram consolados, de início, por
esta crença religiosa! Quantas lágrimas foram enxutas! Quantas consciências
abertas aos raios da beleza espiritual! Nem todos são felizes aqui na Terra.
Muitas afeições foram destruídas! Muitas almas foram adormecidas no ceticismo.
Não será nada ter trazido ao espiritualismo tantos seres que vacilavam na
dúvida e que não mais amavam a vida física, nem a intelectual?
''Allan Kardec era o que eu denominarei simplesmente
"o bom-senso encarnado." Razão reta e judiciosa, aplicava sem cessar
à sua obra permanente as indicações íntimas do senso comum. Não era essa uma
qualidade somenos, na ordem de coisas com que nos ocupamos. Era, ao contrário,
pode-se afirmá-lo, a primeira de todas e a mais preciosa, sem a qual a obra não
teria podido tornar-se popular, nem lançar pelo mundo suas raízes imensas. A maioria dos que
se têm dado a estes estudos lembram-se de que na mocidade, ou em certas
circunstâncias, foram testemunhas de manifestações inexplicadas. Poucas são as
famílias que não contem na sua história provas desta natureza. O ponto de partida
era aplicar-lhes a razão firme do simples bom-senso e examiná-las segundo os
princípios do método positivo.
"Conforme o próprio organizador deste estudo
demorado e difícil previra, esta doutrina, até então filosófica, tem que entrar
agora num período científico. Os fenômenos físicos, sobre os quais a princípio
não se insistia, hão de tornar-se objeto da crítica experimental, sem a qual
nenhuma constatação séria é possível. Esse método experimental, a que devemos a
glória dos progressos modernos e as maravilhas da eletricidade e do vapor, deve
colher os fenômenos de ordem ainda misteriosa a que
assistimos para os
dissecar, medir e definir.
"Porque, meus Senhores, o Espiritismo não é uma
religião, mas uma ciência, da qual apenas conhecemos o abecê. Passou o tempo
dos dogmas. A Natureza abrange o Universo, e o próprio Deus, feito outrora à
imagem do homem, a moderna Metafísica não o pode considerar senão como um espírito na Natureza. O sobrenatural
não existe. As manifestações obtidas com o auxilio dos médiuns, como as do
magnetismo e do sonambulismo, são de ordem
natural e devem ser severamente submetidas à verificação da experiência. Não há
mais milagres. Assistimos ao alvorecer de uma ciência desconhecida, Quem poderá
prever a que consequências conduzirá, no mundo do pensamento, o estudo positivo
desta nova psicologia?
"Doravante, o mundo é regido pela ciência e,
Senhores, não virá fora de propósito, neste discurso fúnebre, assinalar lhe a
obra atual e as induções novas que ela nos patenteia, precisamente do ponto de
vista das nossas pesquisas."
Aqui o Sr. Flammarion entra na parte científica de seu
discurso. Expõe o estado atual da Astronomia e da Física, desenvolvendo
particularmente as descobertas relativas à análise recente do espectro solar.
Resulta dessas descobertas que não vemos quase nada do que se passa à nossa
volta na Natureza. Os raios caloríficos, que evaporam a água, formam as nuvens,
causam os ventos, as correntes, organizam a vida do globo, são invisíveis para
a nossa retina. Os raios químicos que regem os movimentos das plantas e as
transformações químicas do mundo inorgânico são igualmente invisíveis. A
ciência contemporânea autoriza, pois, os pontos de vista revelados pelo
Espiritismo e, por sua vez, nos abre um mundo invisível real, cujo conhecimento
só pode esclarecer-nos quanto ao modo de produção dos fenômenos espíritas.
Em seguida o jovem astrônomo apresentou o quadro das
metamorfoses, do qual resulta que a existência e a imortalidade da alma se
revelam pelas mesmas leis da vida. Não podemos aqui entrar nessa exposição, mas
aconselhamos vivamente os nossos irmãos em doutrina a ler e estudar na íntegra
o discurso do Sr. Flammarion.
Após sua exposição científica, assim termina o autor:
"Que os que têm a vista restringida pelo orgulho ou
pelo preconceito não compreendam absolutamente os anseios de nossas mentes
ávidas de conhecer e lancem sobre este gênero de estudos seus sarcasmos ou
anátemas! Colocamos mais alto as nossas contemplações!.. Foste o primeiro, oh!
mestre e amigo! foste o primeiro a dar, desde o princípio da minha carreira
astronômica, testemunho de viva simpatia às minhas deduções relativas à existência das
humanidades celestes, pois, tomando do livro sobre a Pluralidade dos mundos habitados, o puseste imediatamente na base
do edifício doutrinário com que sonhavas. Muito amiúde conversávamos sobre essa
vida celeste tão misteriosa; agora, oh! alma, sabes, por visão direta, em que
consiste a vida espiritual a que voltaremos e que esquecemos durante a
existência na Terra.
"Voltaste a esse mundo donde viemos e colhes o fruto
de teus estudos terrestres. Aos nossos pés dorme o teu envoltório, extinguiu-se
o teu cérebro, fecharam-se te os olhos para não mais se abrirem, não mais
ouvida será a tua palavra... Sabemos que todos havemos de mergulhar nesse
mesmo último sono, de volver a essa mesma inércia, a esse mesmo pó. Mas não é
nesse envoltório que pomos a nossa glória e a nossa esperança. Tomba o corpo, a
alma permanece e retorna ao Espaço. Encontrar-nos-emos num mundo melhor e no
céu imenso onde usaremos das nossas mais preciosas faculdades, onde
continuaremos os estudos para cujo desenvolvimento a Terra é teatro por demais
acanhado.
"É-nos mais grato saber esta verdade, do que
acreditar que jazes todo inteiro nesse cadáver e que tua alma se haja
aniquilado com a cessação do funcionamento de um órgão. A imortalidade é a luz
da vida, como este refulgente Sol é a luz da Natureza.
''Até à vista, meu caro Allan Kardec, até à vista!"
Em nome dos Espíritas
dos Centros distantes
Pelo Sr. Alexandre Delanne
Mui caro Mestre,
Tantas vezes tive ocasião, nas minhas numerosas viagens,
de ser junto a vós o intérprete dos sentimentos fraternos e reconhecidos de
nossos irmãos da França e do estrangeiro, que julgaria faltar a um dever
sagrado se, em nome deles, eu não viesse neste momento vos testemunhar o seu
pesar.
Eu não serei, ai! senão um eco bem fraco para vos
descrever a felicidade daquelas almas tocadas pela fé espírita, que se abrigaram
sob a bandeira de consolação e de esperança que tão corajosamente implantastes
entre nós.
Muitos dentre eles certamente desempenhariam, melhor que
eu, essa tarefa do coração.
Como a distância e o tempo não lhes permitem estar aqui,
ouso fazê-lo, conhecedor que sou da vossa benevolência habitual a meu respeito
e a de nossos bons irmãos que represento.
Recebei, pois, caro mestre, em nome de todos, a expressão
dos pesares sinceros e profundos que a vossa partida precipitada da Terra vai
fazer nascer por todos os lados.
Conheceis, melhor que ninguém, a natureza humana; sabeis
que ela precisa de amparo. Ide, pois, até eles, derramar ainda esperança em
seus corações.
Provai-lhes, por vossos sábios conselhos e vossa lógica
poderosa, que não os abandonais e que a obra a que vos dedicastes tão
generosamente não perecerá, e nem poderia perecer, porque está assentada nas
bases inabaláveis da fé raciocinada.
Pioneiro emérito, soubestes coordenar a pura Filosofia
dos Espíritos e pô-la ao alcance de todas as inteligências, desde as mais
humildes, que elevastes, até as mais eruditas, que vieram até vós e que hoje se
contam modestamente em nossas fileiras.
Obrigado, nobre coração, pelo zelo e pela perseverança
que pusestes em nos instruir.
Obrigado por vossas vigílias e vossos labores, pela fé
vigorosa que em nós inculcastes.
Obrigado pela felicidade presente que desfrutamos, e pela
felicidade futura, cuja certeza nos destes, quando nós, como vós, tivermos
entrado na grande pátria dos Espíritos.
Obrigado ainda pelas lágrimas que enxugastes, pelos
desesperos que acalmastes e pela esperança que fizestes brotar nas almas
abatidas e desalentadas.
Obrigado! mil vezes obrigado, em nome de todos os nossos
confrades da França e do estrangeiro! Até breve.
Em nome da
família e dos amigos
Pelo Sr. E. Muller
Caros aflitos,
Falo por último junto a esta fossa aberta, que contém os
despojos mortais daquele que, entre nós se chamava Allan Kardec.
Falo em nome de sua viúva, daquela que foi sua
companheira fiel e ditosa, durante trinta e sete anos de uma felicidade sem
nuvens e sem mesclas, daquela que compartilhou de suas crenças e de seus
trabalhos, bem como de suas vicissitudes e alegrias; que, hoje só, se orgulha
da pureza dos costumes, da honestidade absoluta e do sublime desinteresse de
seu esposo. É ela que nos dá a todos o exemplo de coragem, de tolerância, de
perdão das injúrias e do dever cumprido escrupulosamente.
Falo também em nome de todos os amigos, presentes ou
ausentes, que seguiram passo a passo a carreira laboriosa que Allan Kardec
sempre percorreu honradamente; daqueles que querem honrar sua memória,
lembrando alguns traços de sua vida.
Primeiramente quero dizer-vos por que seu envoltório mortal
foi para aqui conduzido diretamente, sem pompa e sem outras preces senão as
vossas! Precisaria de preces aquele cuja vida inteira não foi senão um longo
ato de piedade, de amor a Deus e à Humanidade? Não bastaria que todos pudessem
unir-se a nós nesta ação comum, que afirma a nossa estima e a nossa afeição?
A tolerância absoluta era a regra de Allan Kardec. Seus
amigos, seus discípulos pertenciam a todas as religiões: israelitas,
maometanos, católicos e protestantes de todas as seitas; de todas as classes:
ricos, pobres, sábios, livres-pensadores, artistas e operários, etc... Todos puderam vir
aqui, graças a esta medida que não compromete nenhuma consciência e que será um
bom exemplo.
Mas, ao lado desta tolerância que nos reúne, devo citar
uma intolerância, que admiro? Fá-lo-ei, porque, aos olhos de todos, ela deve
legitimar esse título de mestre, que muitos dentre nós lhe atribuímos. Essa
intolerância é um dos caracteres mais salientes de sua nobre existência. Ele
tinha horror à preguiça e à ociosidade; e este grande trabalhador morreu de pé,
após um labor imenso, que acabou ultrapassando as forças de seus órgãos, mas
não as do seu espírito e do seu coração.
Educado na Suíça, naquela escola patriótica em que se
respira um ar livre e vivificante, ocupava seus lazeres, desde a idade de
quatorze anos, a dar aulas aos seus camaradas que sabiam menos que ele.
Vindo para Paris, e sabendo falar alemão tão bem quanto
francês, traduziu para a Alemanha os livros da França que mais lhe tocavam o
coração. Escolheu Fénelon para o tornar conhecido, e essa escolha denota a
natureza benévola e elevada do tradutor. Depois, entregou-se à educação. Sua
vocação era instruir. Seus sucessos foram grandes e as obras que publicou,
gramática, aritmética e outras, tornaram popular o seu verdadeiro nome, o de
Rivail.
Não satisfeito em utilizar suas notáveis faculdades numa
profissão que lhe assegurava uma tranquila comodidade, quis que aproveitassem
os seus conhecimentos aqueles que não podiam pagar, e foi um dos primeiros a
organizar, nesta época de sua vida, cursos gratuitos,
ministrados na rua de Sèvres, nº 35, nos quais ensinava Química, Física,
Anatomia comparada, Astronomia, etc.
É que havia tocado em todas as ciências e, tendo-as bem
aprofundado, sabia transmitir aos outros o que ele mesmo conhecia, talento raro
e sempre apreciado.
Para este sábio dedicado, o trabalho parecia o elemento
mesmo da vida. Por isso, mais que ninguém, não podia suportar a ideia da morte
tal qual então a apresentavam, tendo como resultado um eterno sofrimento ou uma
felicidade egoísta e eterna, mas sem
utilidade, nem para os
outros nem para si mesmo.
Era como predestinado, bem o vedes, para espalhar e
vulgarizar esta admirável filosofia que nos faz esperar o trabalho no
além-túmulo e o progresso indefinido de nossa individualidade, que se conserva
melhorando-se.
Soube tirar dos fatos, considerados ridículos e vulgares,
admiráveis consequências filosóficas e toda uma doutrina de esperança, de
trabalho e de solidariedade, semelhante ao verso de um poeta que ele amava:
Transformar o
chumbo vil em ouro puro.
Sob o esforço de seu pensamento tudo se transformava e
engrandecia, aos raios de seu coração ardente; sob sua pena tudo se precisava e
se cristalizava, a bem dizer, em frases de deslumbrante clareza.
Tomava para seus livros esta admirável epígrafe: Fora da caridade não há salvação, cuja
aparente intolerância ressalta a tolerância absoluta.
Transformava as velhas fórmulas e, sem negar a feliz
influência da fé, da esperança e da caridade, arvorava uma nova bandeira, ante
a qual todos os pensadores podem e devem inclinar-se, porque esse estandarte do
futuro leva escritas estas três palavras:
Razão, Trabalho e Solidariedade.
É em nome desta mesma razão que ele colocou tão alto, em
nome de sua viúva, em nome de seus amigos que eu vos digo a todos que não mais
olheis esta fossa aberta. É para mais alto que devemos erguer os olhos, para
encontrar aquele que acaba de nos deixar! Para conter esse coração tão devotado
e tão bom, essa inteligência de escol, esse espírito tão fecundo, essa
individualidade tão poderosa, bem o vedes vós mesmos, medindo-a com os olhos,
esta fossa seria demasiado pequena, e nenhuma seria bastante grande.
Coragem, pois! e saibamos honrar o filósofo e o amigo,
praticando suas máximas e trabalhando, cada um no limite de suas forças, para
propagar aquelas que nos encantaram e convenceram.
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