quinta-feira, 4 de julho de 2013

14. 'Rimas do Além Túmulo - O presente de Natal


14
‘Rimas do Além Túmulo’
Versos Mediúnicos de
 Guerra Junqueiro

Grupo Espírita Roustaing
Belém do Pará 1929

Casa Editora Guajarina

O Presente de Natal

Ao irmão LINO IATAROLA (1)

(1)-A dedicatória parece ter origem na circunstância
de não haver Lino latarola conseguido jamais decorar uma poesia
 exceto os versos de Guerra Junqueiro intitulados ‘O Fiel’.

             Quando ele aparecia à curva do caminho,
 andando de mansinho,
descalço e mal vestido,
bradavam as más línguas: vem o maltrapilho;
ainda tão pequeno e já bem atrevido.
E as crianças soberbas assim: empecilho,
            não queremos brincar contigo, és malcriado,
não sabes nem cantar,
e sempre que apareces vens esfarrapado;
por seres sujo, magro e tão desajeitado,
nós já sentimos nojo até de te falar!

E ele ri, (o seu riso era tão inocente!),
mas, depois, respondia em voz angelical,
olhando o azul do céu resplandecente:
eu tenho paciência; chegando o Natal,
eu também vou ganhar uns lindos brinquedinhos
e roupa nova para correr nas estradas,
e ter, como vocês, um par de sapatinhos
para ir passear à beira das calçadas.

E as crianças voltavam costas desdenhosas,
já eram orgulhosas,
devido à educação que tinham dos seus pais,
pois estes costumavam, impiedosamente,
enxotar o menino, porque pobremente
vestido, e insultá-lo, em termos bem brutais,
quando ele, sorrateiro assim como um ladrão
e sem pedir licença,
entrava lhes de chofre pelo amplo portão
do palacete, a rir, numa alegria imensa...

Toda a gente sabia a historia do enjeitado,
que misteriosas mãos haviam desprezado
à porta de uma venda. E a rústica vendeira
o recolhera, mas lhe dava diariamente,
para juntar ao paio ração do inocente,
socos e bofetadas, com a mão grosseira.

Mas era inofensivo o pobre enjeitadinho...
Tinha o olhar tão calmo e o riso tão sereno!..
E como ele era órfão (coitado, o Pedrinho!)
as crianças zombavam, riam do pequeno,
pois sempre é desprezada a virtude que brota
sob o teto acanhado de rasa choupana, 
e o certo é que a vendeira, bem que mui devota,
ainda pertencia à pobre raça humana.

Quantas vezes Pedrinho foi, horas inteiras,
de castigo, amarrado ao tronco das fruteiras,
só por haver comido um fruto sazonado,
ou então de joelhos na terra inclemente!

O castigo era bárbaro, e o pobre inocente
            já estava atrofiado,
mas nem sequer lhe vinha ao menos à lembrança,
ao mártir pequenino, à tímida criança,
fugir às garras vis dessa mulher feroz, 
pois tinha lhe o respeito de um filho obediente
e curvava a cabeça, resignadamente,
quando ela lhe infligia algum castigo atroz.

Enfim chegou o dia, o DIA DE NATAL.

E não obstante o tempo estar enevoado,
preparavam-se as festas,- júbilo geral.
De cada lar saía um hino entusiasmado,
um concerto de vozes, risos cristalinos,
que as gargantas gentis da alegre criançada
soltavam pelo ar, em trilos argentinos,
inocentes, fazendo um barulho estridente.

E, quando a noite veio ligeira, e tristemente
estendeu sobre a Terra o seu espesso véu,
não brilhava um só astro, uma só estrelinha,
nem a Lua surgia, pálida rainha,
do mistério insondável de um escuro céu..!
Nessa noite, Pedrinho
silencioso e triste, perto da lareira,
escutava a zoada que vizinho, junto,
faziam, na alegria sã, alvissareira,
festejando o Natal. E quedo, e vacilante,
tanto afagou o desejo de ir à brincadeira
que, pé a pé, saiu de junto da lareira 
            sorrindo triunfante,
e fugiu pela porta, á rua, mansamente,
sem ninguém pressentir.
Lá fora, se atirava o vento doidamente,
como um ser incorpóreo, atlético, a rugir!
Enfrentando com calma a rija ventania,
o menino, impassível, sereno, seguia,
andando, a passos largos, na rua molhada,
até que, enfim, chegando em frente do portão
onde os ricos moravam, parou; viu, então,
que a porta estava aberta e a casa iluminada.

Cauteloso, Pedrinho entrou pelo jardim
e, depressa, a esconder-se, subiu a escadaria.
E, oculto em dobras de uma cortina, por fim
a Árvore de Natal viu, lá, em mesa esguia,
com brinquedos e doces e coroas de flores
suspensos dos galhinhos; e, a tremeluzir,
bailavam lampadinhas de variadas cores,
bonequinhos a rir...
           
E ficou-se a mirar largo tempo entretido,      
por detrás da cortina, espreitando escondido,
tendo bem a aparência de novel ladrão.
Esteve, horas a fio ainda, contemplando        
as crianças brincar à roda do salão.

Depois pensou: já é tempo de ir-me retirando
            E saiu a correr.
Mas, ao chegar à frente da velha morada,
de pavor e de espanto ficou a tremer:
cruelmente já a porta se achava fechada!

Foi em vão que bateu, foi em vão que chamou...
Ninguém lhe veio abrir a porta inflexível.
pobre enjeitadinho, a tiritar, ficou
tremendo e soluçando naquele ermo horrível!

De repente, porém, ouviram seus ouvidos
uns clamores, que mais pareciam grunhidos:
era a voz da mulher, que, de dentro, bradava,
terrível e brutal:

Não penses que te abro a porta, ó fera brava;
já não posso aturar-te, ò sórdido animal;
se entras para aqui, eu te juro que apanhas
até ficar sem vida
(depois vem a policia, e, por tirar-te as manhas,
prender-me-ão e vou ficar perdida).

O menino escutou aquela repreensão,
encostado à parede, febril e abatido.
E, apertando com mão gelada o coração,
tinha a mágoa cruel de um pássaro ferido.
E, como um pobre cão, a quem ingrato dono
atirasse de noite a uma rua encharcada
Pedrinho inda carpiu o seu pobre abandono...

Depois, adormeceu na pedra da calçada.
            E que sonho bonito
ele teve, avistando Jesus, resplendente,
descer, rápido, em luz, das nuvens do Infinito
trazendo-lhe um presente!

E seu corpo tremia, em febre repentina,
que às vezes rouba a vida,
essa febre terrível que ardente fulmina
uma existência já mortalmente ferida.

E quando, ao outro dia, a ríspida vendeira
a porta abriu, recuou, soltando um grito:
acabava de ver, bem do passeio à beira,
completamente inerte, o corpo do Pedrito,
os olhos entreabertos, já sem luz de vida,
e, com as mãos no peito, inanimado e frio,
A criança jazia como que embebida
num sonho juvenil sobre um leito macio.
            O rosto sorridente
parecia dizer, em tom confidencial        
que ele já obtivera o mais lindo presente
que se pode ganhar na noite de NATAL 
e que, após ter falado, em sonhos, com Jesus, 
sem poder resistir ao rútilo esplendor, 
foi despertar, sorrindo, inundado de Luz, 
No REINO DO SENHOR!
             
(Lede esta comunicação e confrontai-a aos versos
que escrevi quando na Matéria e sob o título de FIEL).
Guerra Junqueiro

27 de Dezembro de 1928

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