Confissão
Tácita
De diversos amigos católicos, já
recebemos, em português e em Esperanto, um documento do qual devemos deixar
memória na coleção de Reformador para ser melhor estudado no futuro, com mais
serenidade do que poderíamos ter neste momento de agitações mundiais e
desassossego , O título é "O Comunismo e o Momento Nacional - Carta
Coletiva do Episcopado do Rio Grande do Sul", e vem assinada essa carta
por um Arcebispo e cinco Bispos daquela província do Sul.
Essa carta classifica o capitalismo
com as seguintes palavrinhas pouco amenas: "A cupidez, o egoísmo, o repúdio da
caridade cristã e do sentimento de solidariedade, ditaram a exploração do homem
pelo homem. - Um capitalismo egoísta e ateu, lenta e silenciosamente, gerou a
injustiça social".
Proclamando assim a ruindade do
Capitalismo, os Bispos atacam como ainda pior ou pelo menos tão detestável a
solução comunista do problema social; dizem textualmente:
"Constitui uma confusão funesta, um
erro de consequências imprevisíveis, afirmar-se, como enfaticamente se afirma,
que o mundo contemporâneo situa-se em face de um dilema: capitalismo ou
comunismo. - Podemos e devemos optar por uma terceira atitude, única integral e
justa: a ordem social cristã. - Se há um dilema diante de nós, ele só poderá
ser formulado nestes termos: ordem social cristã ou ordem social pagã.”
Nesse tom, prossegue condenando
igualmente o capitalismo e o comunismo e optando pela ordem social cristã, que
não existe, e sua inexistência fica bem demonstrada como razão mesma de ser da
carta episcopal.
Em parêntese, convém lembrar que
juntamente com essa folha solta recebemos outra, de
elaboração protestante, citando opiniões de muito mais de seis bispos
brasileiros a favor do fascismo como solução desse mesmo problema social; isso
quer dizer que há sete anos o Episcopado brasileiro tinha outra ideologia: não
cogitava de ordem social cristã, como hoje, mas de ordem social fascista. Já
melhorou muito! Encerremos o parêntese e voltemos à carta dos bispos.
Vamos concordar com os prelados que
o capitalismo seja mesmo muito desumano; mas não
tem piorado, porque houve tempo em que o capital podia comprar homens e mulheres
para todas as finalidades que desejasse; o mercado de escravos e escravas era
uma realidade às escancaras. Compravam-se homens para trabalhar sob o chicote
do feitor e dormir no tronco, e donzelas para satisfazer à concupiscência do
capitalista e depois serem lançadas à senzala ou vendidas, com ou sem filhos. A
família de escravo podia ser vendida para diversos capitalistas, conforme o
agrado. Um comprava o marido, outro a mulher, outro a filha do casal. É
demasiado recente esse poder do capital para já estar esquecido. Há somente
cinquenta e sete anos que os capitalistas do Brasil sofreram o golpe de ficar
privados desse direito, que durante todos os milênios passados pertenceu ao
capital. Consequentemente, ninguém negará que o capitalismo sempre foi pior do
que hoje, porque as leis têm-lhe restringido muito o poder. Quantas leis
brasileiras recentes limitam o poder e os direitos do capitalismo! Mas não é
nosso desejo defender o capitalismo; queremos concordar com os Bispos que
assinaram a carta, no sentido de que ele realmente ainda é muito ruim e
desumano.
Desde os saudosos tempos de
Constantino, o Grande, no início do século quarto de nossa era, foi dado à
Igreja o direito de educar o povo, de formar a mentalidade necessária a um
mundo feliz, à "ordem social cristã" a que se referem os Srs. Bispos
em sua "Carta". Esse direito chegou a dominar os reis e imperadores
durante muitos séculos. Todos os processos de repressão às ideias erradas foram
postos em mãos da Igreja. Ela foi soberana até para impedir que a Terra girasse
em torno do Sol, que o Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão inventasse a aviação
.. Há mais de mil e seiscentos anos que ela dirige a formação da mentalidade
humana em todo o Ocidente como educadora. Agora, um novo dilema: 1) Ou a Igreja
cumpriu sua missão de educar-nos e, portanto, todos somos piedosos
espiritualistas, cristãos, e vivemos dentro de uma ordem social cristã por ela
preparada nesses mil e seiscentos anos; 2) Ou ela falhou em sua missão e nós
somos capitalistas, comunistas, ateus, pagãos e tudo que há de pior.
Dizem os Srs. Bispos que o mundo
está entre os dois abismos - capitalismo ou comunismo - que a ordem cristã não
está estabelecida; portanto, confessam tacitamente que a Igreja falhou de todo
em sua missão de educadora; chegou a resultados diametralmente opostos aos que
pretendia alcançar. Em vez de fazer um mundo cristão, fez um mundo de ateus,
materialistas, pagãos. Se fica assim confessada a falência da Igreja, terão os
seus Bispos autoridade para nos indicar ainda o caminho? Terão moral para nos
guiar política e socialmente? Depois de confessar que em mil e seiscentos anos
de trabalho falharam escandalosamente, porque insistem nos mesmos princípios,
nas mesmas ideias? O povo estará disposto a esperar outros mil e seiscentos
anos? Pretenderão readquirir o poder temporal e reacender as fogueiras,
construir novos potros de tortura, cavar novas prisões subterrâneas para
"salvar" o mundo e estabelecer a "ordem social cristã"? Mas
em fevereiro de 1929 Mussolini generosamente restituiu o poder temporal ao Papa
e o resultado prático
foi, em 1945, nossos filhos terem ido derramar seu sangue generoso nos campos
de batalha da Itália para libertá-la do homem que o Papa proclamou
Providencial; para libertar um
povo irmão da mais horrorosa ordem econômica já se viu no mundo.
Não devemos esperar novas
providências de quem já deu tantas provas de sua inépcia para organizar um
mundo feliz. A Igreja é uma triste reminiscência de um passado tenebroso, como
as matanças feitas pelos comunistas são outra triste página da história do
mundo. Se alguma coisa existe mais horrorosa do que a Revolução Russa, é a
Santa Inquisição da Igreja Romana, porque fez um número muito maior de vítimas
e com requintes de crueldade que fariam desmaiar os carrascos comunistas.
Se a História e inconscientemente a
palavra dos Bispos confessam a falência da Igreja, examinemos as causas desse
insucesso para não repetirmos os mesmos erros, cujas consequências seriam
imprevisíveis, como muito bem diz a carta dos Bispos gaúchos. O primeiro erro,
do qual originaram todos os outros, foi a oficialização, o poder temporal
conferido à Igreja. Em vez de pregar o Evangelho, seguiu ela o caminho odioso
de impor sua autoridade a ferro e fogo. A esse erro capital, seguiu-se o
profissionalismo religioso com todas as suas terríveis consequências.
O pregador do Evangelho tornou-se um
profissional que não tem a liberdade de abandonar sua missão quando tenha
perdido a fé e por isso mesmo é forçoso tornar-se hipócrita, continuar
exercendo a profissão, embora desmentindo com atos o que ensina por palavras.
Do primeiro grande erro o mundo já está livre, mas o segundo continua
produzindo seus males.
Com esses dois erros fundamentais, a
Igreja caiu no materialismo político-econômico e foi abandonada pelos Espíritos
superiores. Tornou- -se uma instituição puramente mundana que busca sua força
nos Governos, sejam eles quais forem, como vimos na Itália fascista e como
tristemente vemos neste momento no Brasil, quando as autoridades eclesiásticas
organizam Ligas Eleitorais para entrarem em entendimentos com os candidatos à
Presidência da República, ambos católicos romanos, e saber de, pelas respostas
que derem a um questionário a eles enviado pelo Arcebispo do Rio de Janeiro -
conforme foi publicado - qual deles se mostrará mais integrado aos princípios
da Igreja e qual poderá, concomitantemente
obter para ela maiores vantagens. A crença em Deus está transformadaem
crença no Chefe de Estado...
Mirem-se
nesse espelho os partidários de uma organização "forte" do
Espiritismo e vejam se não é muito melhor conservarmos nossa liberdade de
consciência.
por Lino
Teles Ismael
Gomes Braga
in ‘Reformador’ (FEB) Outubro 1945
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