João do Rio
‘Enquanto o
braço corre’
Trecho
sobre espiritismo incluído no livro
‘As
Religiões do Rio’, escrito em 1904
pelo
cronista carioca Paulo
Barreto,
o João do Rio
“Nas
rodas mais elegantes, entre sportsmen inteligentes, lavra o desespero das
comunicações espíritas, como em Paris o automobilismo.
Ainda há alguns meses senhores de
tom, ao voltarem do Lírico, encasacados e de gardênia ao peito, comunicaram-se
no Hotel dos Estrangeiros com as almas do outro mundo, por intermédio de uma
cantora, médium ultra-assombroso.
À tarde na Colombo, esses senhores
combinavam a partie de plaisit
(expressão que significava que combinavam "o que fazer à noite") e à
noite nos corredores do Lírico, enquanto Caruso rouxinoleava corpulentamente
para encanto das almas sentimentais, eles prelibavam
as revelações sonambúlicas da médium musical.
Esses fatos são raros, porém, e as
experiências assombrosas multiplicam-se. Os médiuns curam criaturas a morrer.
Leôncio de Albuquerque, que tratava caridosamente a Saúde em peso,
anuncia, sem tocar no doente, o primeiro caso de peste bubônica, e cada vez mais
aumenta o número de crentes.
O meu amigo dizia-me: - Nunca se viu
uma crença que com tal rapidez assombrasse crentes. Se o Figaro dava para Paris
cem mil espíritas, o Rio deve ter igual soma de fiéis. O Brasil, pela junção de
uma raça de sonhadores como os portugueses com a fantasia dos negros
e o pavor indiano do invisível, está fatalmente à beira dos abismos de onde se
entrevê o
além. A Federação publicou uma estatística de jornais espíritas no mundo
inteiro. Pois bem:existem
no mundo 96 jornais e revistas, sendo que 56 em toda a Europa e 19 só no
Brasil. ( ... )
A Federação fica na Rua do Rosário,
97. É um grande prédio, cheio de luz e claridade. Cumprem-se aí os preceitos da
ortodoxia espírita; não há remuneração de trabalho e nada se recebe pelas
consultas. A diretoria gasta parte do dia a servir os irmãos, tratando da
contabilidade, da biblioteca, do jornal, dos doentes. A instalação é magnífica.
No primeiro pavimento ficam a biblioteca, a sala de entrega do receituário, a
secretaria, o salão de espera dos consultantes e os consultórios. Seis médios
psicográficos prestam-se duas horas por dia a receitar, e as salas conservam-se
sempre cheias de uma multidão de doentes, mulheres, homens, crianças, figuras
dolorosas com um laivo de esperança no olhar.
A casa está sonora do rumor
contínuo, mas tudo é simples, caridoso e sem espalhafato. Quando entramos não
se lhe altera a vida nervosa. A Federação parece um banco de caridade,
instalado à beira do outro mundo. Os homens agitam-se, andam, conversam, os
doentes esperam que os espíritas venham receitar pelo braço dos médiuns, e os
médiuns, sob a ação psicográfica, falam e conversam enquanto o braço corre.
Atravessamos a sala dos clientes,
entramos no consultório do Sr. Richard[1].
Há uma hora que esse honrado cavalheiro, espírita convencido, escreve e já
receitou para 47 pessoas.
- Há curas? - perguntamos nós,
olhando as fileiras dos doentes.
- Muitas. Nós, porém, não tomamos
nota.
- Mas o senhor não se lembra de ter
curado ninguém?
- A mim me dizem que pus boa uma
pessoa da família do general Argollo. Mas não sei nem devo dizer. É o preceito
de Deus.
Deíxamo-lo receitando, já
perfeitamente normalizados com aquele ambiente estranho, e interrogamos. Há
milhares de curas. A sra. Georgina, esposa do sr. César Pacheco, depois de louca
e cega, ficou boa em dez dias; d. Jesuína de Andrade, viúva, quase tísica, em
trinta dias salva, e outros, outros muitos.
Que valor têm essas declarações? Os
doentes enfileirados parecem crer e o sr. Richard é a fé em pessoa. É o que
basta talvez.
Extraído de “Época” nº 424 de 03 de
Julho de 2006
[1] Pedro
Richard – também conhecido como ‘O discípulo
de Max’.
Max – Pseudônimo de Bezerra de Menezes. Do Blog..
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