2. Bilhetes
Tens razão, meu amigo. O diabo está
ficando cada dia mais poderoso. Tens razão também quanto ao afirmares que só as
comunicações recebidas pelos médiuns dos conventos são angélicas. Todas as
demais, recebidas pelos adeptos de outras religiões ou mesmo pelos teus confrades
que vivem fora dos conventos, são oriundas da ação do Sr. Satanás, respeitável cavalheiro
que domina noventa e nove e nove décimos das criaturas da Terra, por encaminhá-las,
com a sua habilidade, para o Inferno, roubando-as d' Aquele que as criou e não
as pode conduzir
para o seu Paraíso.
Tens razão, muita razão mesmo. O
vigário te afirmou que é assim; proibiu-te a leitura de qualquer
obra estranha ao teu meio; ameaçou-te com as tétricas caldeiras infernais;
anulou-te com
dogmas o direito de pensares; tirou-te a liberdade de raciocínio que
caracteriza o animal--homem,
logo, tens razão, muita razão.
E eu, que já me libertei dos grilhões
que me prendiam, na infância, fico a pensar nesse imaginário
demônio e me recordo de já o haver encontrado frente a frente.
Estávamos numa reunião espírita.
Sala repleta. Silêncio absoluto e respeitoso. O orador, além
de inteligente e culto, era médium inspirado. Todos os olhares se convergiam nele
e todos
os ouvidos lhe guardavam as frases repletas de ensinamentos evangélicos.
De repente, quando aquele pregador-
começou a defender o Espiritismo dos ataques de certos sacerdotes, evidenciando-lhes
os erros e os crimes registados pela História, o salão foi sacudido pelo
sapatear e pelos gritos de uma pobre mocinha que ali comparecia pela primeira
vez.
Aquela criatura humilde, que se
assentara tão calmamente numa das cadeiras da assistência, transformou-se num
ameaçador demônio, que atiraria cadeiras sobre os seus vizinhos, se não fora a
aposição imediata da mão de um médium que lhe estava próximo.
Quando vi aquela inocente mocinha de
olhos esgazeados, a quebrar cadeiras e a ameaçar o orador com palavras
violentas, tive a impressão de que me encontrava diante do tal famigerado demônio
que tantas vezes me fez fechar os olhos, quando me rebelava contra a ama-seca, que,
ninando-me, ansiava por se ver livre do trabalho.
Esse, porém, não era imaginário como
os auxiliares da pretinha que me acalentava em criança.
Esse era real. Vi-o, sem chifres, é bem verdade, mas tal qual me apresentavam
nas lições
de catecismo da minha aldeia.
Não lhe vi a indumentária preta.
Outros, porém; possuidores do dom mediúnico da vidência, me descreveram
minuciosamente.
Que nos aconselhava esse demônio? -
Que amassemos ao nosso próximo? - Não, porque era para convencer o auditório de
que só o amor constrói a felicidade prometida por Jesus que se fazia aquela
prédica. Então: Que dizia ele?
- Não te apresses, leitor amigo, não
te impacientes pelo fim. A mocinha voltou a si. De
nada se lembrava e tudo ignorava, mas nós, ao nos retirarmos do salão, depois
de uma hora de alegrias espirituais, ainda ouvíamos o barulho de cadeiras que
se quebravam e aquela voz que berrava:
- "Fora da Igreja não há
salvação".
assina G.
Mirim
(Antônio Wantuil de Freitas)
in ‘Reformador’ (FEB)
em Junho 1945
Nenhum comentário:
Postar um comentário