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Vimos
que os instintos, longe de serem uma espécie de inteligência rudimentar, não
chegaram a se fixar e desenvolver senão a poder de repetidas, infinitamente
multiplicadas aplicações da inteligência e da atenção; e, tivéssemos
necessidade de aduzir novo argumento a tal respeito, lembraríamos que, tendo ao
começo por objeto as funções e as necessidades da vida propriamente orgânica e
vegetativa não é outra a marcha a que obedece o instinto nas esferas superiores da moral, quando se encaminha o
espírito, mais que às aquisições abstratas do saber, à posse das virtudes.
Nos
graus inferiores da evolução humana, como o em que demoram ainda, mesmo, as
sociedades que mais civilizadas se acreditam, não consegue o homem nortear os
seus sentimentos e impulsos para os atos de bondade - expressão em que entendemos
abranger um conjunto de virtudes, como a
simplicidade, a pureza, o desinteresse e a caridade em sua expressão mais
espiritualizada - senão a poder de esforços e de lutas contra as suas inveteradas
tendências egoístas. No crente, sobretudo, particularmente no espírita, essa luta
reveste o cunho de ininterrupto combate interior, na ânsia de acelerar a realização,
que em si mesmo aspira, do modelo que pelo Divino Mestre
lhe foi oferecido. Assim, o seu progresso nas virtudes é o objeto e virá a ser o resultado de constantes, deliberadas
volições, em que com a salutar experiência das reações, que toda ação má produz
em sua consciência, colaboram a inteligência e a razão, a si mesmo se
persuadindo o indivíduo de "quanto é bom ser bom." À força de repetir
os exercícios de persuasão c de ação, virá a fazer do bem um hábito, ao começo
intermitente e, por último, exclusivo. Chegará desse modo, senão numa, em muito
poucas existências com certeza, a adquirir o instinto da bondade.
Não
é assim que nos aparecem - para não irmos mais longe na exemplificação - as grandes
figuras do Cristianismo, esses admiráveis modelos de virtudes como Antônio de Pádua, Vicente de Paulo, Francisco de Assis,
que já mencionamos em seu imenso amor pelos próprios animais, e tantos outros
vultos que tais virtudes praticaram instintivamente - é o termo - e sem
esforço? Como teriam eles alcançado essas culminâncias, senão por um anterior
trabalho consciente, disciplinado e volitivo?
Gradação
idêntica se pode legitimamente supor na formação da consciência, a princípio
rudimentar e indistinta, não consistindo mais que numa vaga noção egoística do
eu, buscando se afirmar a estímulos das necessidades naturais, frequentemente
satisfeitas com sacrifício de outros seres, como se observa em todas as séries
da animalidade, para só mais tarde, na condição propriamente de espírito,
chegar a ser, segundo a definição clássica, o conhecimento que o individuo
possui de si mesmo, ou, por outros termos, o sentimento natural do próprio ser,
de suas faculdades e do valor e consequências dos seus atos.
Como
e quando despertou o espírito para essa capacidade de introspeção, que lhe vai
dar, com a posse do livre arbítrio, que desponta, a responsabilidade moral, o mérito
e o demérito das ações, conforma o sentido em que se defina a' sua escolha?
A
esse respeito não há opinião uniforme, assim nos ensinos da Revelação, como
entre os analistas e expositores da doutrina. Pretendem uns, levando mais adiante
as conclusões do que o autorizaria o que se acha cautelosamente exposto no
LIVRO DOS ESPÍRITOS (1), e assim
buscando ampliar, a seu modo o pensamento dos reveladores e os comentários pelo
Mestre formulados, que depois do milenário processo de elaboração, de lenta
individualização através de todas as séries naturais, nos reinos mineral, vegetal
e animal, o princípio espiritual, formado então espírito, é incorporado à espécie
humana e aí vai, sem solução de continuidade, prosseguir a sua evolução, desde
o estado selvagem primitivo aos mais aprimorados graus de civilização.
(1) Livro citado, cap.
XI da 2ª parte.
Aparentemente
lógica e mesmo coerente com a marcha natural evolutiva, tal como no plano
visível se nos apresenta, essa opinião, que parece ver no espírito humano a soma,
ou o resumo de todas as qualidades e defeitos, de todas as capacidades e
aptidões dos seres abaixo da nossa
espécie escalonados, com todas as experiências nesse longo trajeto adquiridas,
seria de facto irrefragável, como o acreditam os seus propugnadores, se contra
ela se não insurgissem os resultados de uma observação demorada, que não
meramente superficial, da humana psicologia.
Ora,
o que dessa observação resulta para os que se aplicam a atentamente ler nas páginas
desse livro, sempre misterioso e atraente, que é a alma humana, é que criaturas
há, excepcionais embora, que, por sua simplicidade e inexperiência, de par com
um desenvolvimento intelectual não muito extenso - indício de uma evolução
incipiente - denunciam positivamente estarmos em presença de espíritos novos,
ainda não exercitados no conhecimento das coisas deste mundo, a que se
conservam, de alguma sorte, estranhos.
Se
o homem fosse, invariavelmente e sempre, a soma ou resultante dos animais que o
precederam na escala evolutiva, nele deveriam patentear-se as qualidades
predominantes, senão em todos, num grande número, pelo menos, desses animais,
desde, por exemplo, a inteligência imitativa do macaco, a fidelidade e obediência
do cão, a altivez do cavalo, a astúcia da serpente e da raposa, a bravura do
leão, a ferocidade do tigre, a habilidade construtora do castor, a simplicidade
da pomba, a mansidão do cordeiro até o heroísmo altruístico do pelicano e a
previdência laboriosa da formiga, e assim por diante, abrangendo as mais
variadas e não raro antagônicas modalidades psíquicas de toda a escala zoológica.
Mas o que, de fato se observa é que, se as principais dessas qualidades e defeitos
parece algumas vezes se encontrarem reunidas em certos indivíduos, a disparatada
associação não abrange mais que um ou alguns grupos psicológicos, jamais
se apresentando com um caráter de integridade, que deveria revestir, se o homem
fosse realmente a síntese completa e ininterrupta
dos demais seres seus predecessores na ordem natural.
Uma
das razões, entre outras, invocada pelos que afirmam a passagem do espírito,
sem interrupção, dos últimos elos da animalidade para a espécie humana, depois de
haver percorrido todos os anteriores graus da evolução, baseia-se no testemunho
fornecido pela embriologia, no sentido de que o óvulo humano fecundado reproduz,
nas primeiras semanas da gestação e numa rápida criação evolutiva; os caracteres
morfológicos “de todos os seres pelos quais passou a raça”, isto é, célula a princípio e, em seguida,
molusco, peixe, réptil, quadrúpede, para revestir finalmente a forma
humana. E como pretendem que no perispírito é que se fixaram todas essas
formas, concluem, a nosso ver equivocadamente, que está nisso a prova da
transição que, sem descontinuidade, o princípio espiritual efetua da
animalidade para a nossa espécie, em que se torna propriamente espírito.
Equivocadamente,
dizemos, porque, não no perispírito, que é o revestimento natural e permanente
do espírito, mas no envoltório astral que, esse sim, constitui o duplo etéreo,
o modelo primordial, inseparável de todas as criações materiais - distinção em
que insistiremos e que já no capitulo IV procuramos justificar- é que reside o
desenho ideal do ser, nada repugnando admitir que aquela "abreviada história
da raça" por um misterioso processo peculiar à divina Sapiência tenha sido gravada em
caracteres microscópicos, de uns a outros transmitidos, na imensa cadeia dos
aludidos corpos etéreos, de cujas derradeiras linhas estruturais o corpo físico
não é mais que a condensação, ou fiel reprodução, em nosso plano. Associando-se, ou melhor, se adaptando sucessivamente
a cada uma dessas formas astrais, conforme vai de vida em vida peregrinando e
evoluindo o princípio espiritual, delas sem dúvida conservará temporariamente
as impressões o perispírito, pelo menos no intervalo, ou nos, primeiros tempos
do intervalo de uma a outra existência, tendendo, contudo, a eliminá-las para
adquirir a forma típica de que falamos (1), compatível com o modo de ser peculiar
ao espírito (ou ao princípio espiritual, se nos
reportamos à fase anterior a essa condição) e à constituição dos planos
superiores do invisível.
(1)
Vide cap. IV, pag. 85.
A
não se admitir essa coexistência do plano astral com o mundo físico, o primeiro
constituindo o imenso reservatório de todas as formas que neste vêm a ter a sua objetivação, como se poderá explicar a passagem,
a transição do princípio espiritual de uma forma a outra mais complexa e aperfeiçoada
como, por exemplo, do cão ao macaco -supondo que seja essa, ao menos por hipótese,
a gradação evolutiva? - Foi o perispírito que se transformou e adquiriu, antes
da encarnação, a forma do macaco? Mas não será preferível acreditar que,
existindo esta no plano astral, no momento em que se objectivava, para dar nascimento, na Terra, aos primeiros seres dessa
espécie, a ela se adaptaram, com o perispírito, os princípios espirituais
destinados a animá-los?
De
todo modo, a não ser que se atribua à matéria uma capacidade sui generis de
iniciativa e de transformação, o que é evidente, para os que do visível buscam
remontar ao invisível, é que um imenso trabalho preparatório se veio nesse
plano efetuando e - porque não também acrescentar? - se efetua, sempre no sentido
de suscitar na Terra, desde os seus primórdios, o aparecimento dos seres, dos
mais rudimentares aos mais complexos, assim no que respeita às formas como à própria essência
que as anima.
É
aí, nesse plano invisível, com efeito, que, tendo de passar de uma a outra
forma, o ser espiritual demora o tempo necessário a ser iniciado nos misteres
que em cada existência objetiva terá que realizar, consoante - já o assinalamos
- as facilidades que lhe proporcione o veículo a que se vem adaptar. E é - no-lo
diz a Revelação - sob a vigilância e direção dos espíritos prepostos a todas as manifestações da vida e a todas as ordens da criação que esse aprendizado se efetua,
assim nos aparecendo o plano invisível como um vasto laboratório de energias e um infinito campo de atividade de que
o nosso mundo físico não é mais que o desdobramento, o ou o reflexo.
Não
é tudo ainda. Se do protozoário ao último elo ascensional na escala zoológica,
não é difícil conceber que o princípio espiritual caminhou lenta e gradualmente
em seu processo de individualização e aprendizado; para se poder explicar a
rapidez dos progressos introduzidos no meio, terrestre desde o aparecimento da
nossa espécie, forçoso é admitir - e aqui retomamos o fio de nossa argumentação
interrompida - que o princípio espiritual sofreu, no plano invisível, transposto
o elo superior da animalidade uma transformação que lhe conferiu as nobres e inconfundíveis
prerrogativas de espírito, propriamente dito, livre, consciente e responsável .
Basta,
efetivamente, considerarmos que, enquanto nos 100 milhões de anos transcorridos
da formação do nosso globo, 52 dos quais correspondentes à época primária. 34 à
secundária e 14 finalmente à terciária, a vida propriamente intelectual se manteve
estacionária, não consistindo o progresso dos seres senão, de um lado, no
aperfeiçoamento das formas - essas mesmas não devidas a sua iniciativa, mas ao
Poder organizador que as elabora e distribui - e do outro, nas manifestações da
Inteligência exclusivamente aplicada à satisfação
das necessidades naturais, sob o duplo estímulo da lei de conservação da espécie
e do indivíduo, enquanto essa lentidão - dizemos - se observava no progresso
dos seres, foram suficientes cem mil anos, ou seja a milésima parte daquele
prazo para que, com o aparecimento do homem, fosse profundamente revolucionada
a face do planeta e começasse a ter curso e propriedade de objeto a palavra
civilização, rudimentar, sem dúvida, ao começo, mas cada vez mais brilhante e
acentuada; basta considerarmos tudo isso - repetimos - para compreender que
algo se teria passado no plano espiritual que justifique tais inusitados e rápidos
progressos.
Assim,
do homem primitivo e do seu tempo, isto é, da idade da pedra à do bronze e à da
indústria dos metais, do troglodita hirsuto ao europeu civilizado e das habitações
lacustres aos suntuosos monumentos e às maravilhas da arte e da ciência com que
o novo hóspede da terra vem aformoseando o seu habitat, tão longe ainda,
todavia - assinalemos de passagem - do empório de bem-estar social e de
verdadeira felicidade, em que os progressos morais que lhe falta realizar o hão
de converter, que intensas, consideráveis e maravilhosas transformações!
E
que bastou para isso? Que de quadrúmano se transformasse em bípede o último elo
da animalidade? Teria sido assim tão decisiva a transição da forma, e um
simples aumento de peso e de volume na massa encefálica seria capaz de produzir
e motivar, com as qualidades de iniciativa própria, que nenhum outro animal
revela possuir, os aprimorados dons de originalidade e de invenção, a capacidade
de abstração e, por último, o sentimento adorativo, isto é, a faculdade de se
elevar acima de si próprio e remontar a uma Causa oculta, que constitui, mais que
quaisquer outros dons, o apanágio singular da nossa espécie e o seu excelso título de dignificação? Incidiríamos assim
no clássico erro dos materialistas?
Não.
Abramos antes o livro da Revelação e vejamos se a outra modalidade em que se
bifurca o ensino dos espíritos, constituindo a variante a que páginas atrás nos
referimos, repousa sobre melhores fundamentos, no que se refere à transformação
do princípio ou gérmen espiritual em espírito, ou, por outros termos, à sua integração
na plenitude da consciência, na capacidade, portanto, de introspecção e, assim,
no conhecimento de si mesmo, de suas faculdades e do valor e consequências dos
seus atos.
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