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quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

71. 'Doutrina e Prática do Espiritismo'



71


            Recordemos em primeiro lugar que Jesus, o mestre da sabedoria divina, Espírito de Verdade e, como tal, expressão visível do pensamento de Deus, jamais deixou cair de seus misericordiosos lábios, palavras que não fossem a expressão de uma verdade mesmo quando, para impressionar a imaginação de seus ouvintes, como tão frequentemente praticava, envolvia a sua doutrinação nas roupagens da alegoria e da parábola, as imagens que empregava, os símbolos e descrições de que se socorria, tomadas muitas vezes aos costumes do próprio judaísmo, postas assim mais ao alcance do entendimento popular, não somente se ajustavam com precisão admirável ao ensino que se propunha ministrar, como encerravam sempre um sentido espiritual e um alcance que os mais versados nas coisas do espírito teriam, como terão sempre, que sondar, tanto maior profundeza lhes apreendendo quão mais porfiarem, pelo recolhimento e a meditação, em penetrá-la .

            A parábola do Filho Pródigo, que é a de que nos ocupamos, não faz exceção a essa regra. Que nos ensina por ela o Divino Salvador?

            Um homem - disse ele - teve dois filhos. Um deles, o mais moço, tendo pedido ao pai a parte que, na herança paterna, lhe cabia, com ela se ausentou para uma terra distante, num país estranho, e lá dissipou todo o seu patrimônio, vivendo dissolutamente. Reduzido à indigência, teve que sujeitar-se aos mais rudes misteres, que não lhe permitiam contudo alimentar-se ao menos com o que era distribuído aos porcos, até que, "tendo entrado em si," e considerando a abundância que havia para os próprios serviçais no lar que Insensatamente abandonara, arrependeu-se e deliberou regressar à casa paterna, onde realmente foi, com o perdão que suplicou ao pai, recebido com os mais expressivos sinais de regozijo. E como o irmão mais velho, estranhando tamanhas expansões com o dissoluto, manifestasse o seu desagrado, advertindo: "Há tantos anos que te sirvo, sem nunca transgredir mandamento algum teu, e tu nunca me deste um cabrito para eu me regalar com os meus amigos; mas, tanto que chegou este teu filho, que gastou tudo quanto tinha com perdidas, logo lhe mandaste matar um novilho gordo!" - o pai lhe replicou: "Filho, tu sempre estás comigo e tudo o que é meu é teu; era, porém, necessário que houvesse banquete e festim, pois que este teu irmão era morto e reviveu, tinha se perdido e se achou."

            Ora, despojando-se da ingênua alegoria, tão apropriada aos rústicos costumes dos hebreus; o pensamento de Jesus, que ensino se lhe pode, ao demais sem grande esforço, descobrir? Nesse filho pródigo que, de posse da herança paterna, a dissipa, num país distante, com leviandades de que lhe advêm o remorso e o arrependimento, não estará, flagrante e expressiva, a imagem dos espíritos falidos, extraviados nos mundos de provação e dor, a malbaratar os dons da inteligência em coisas subalternas, senão mesmo na prática do mal? E aquele filho obediente, que "nunca transgredira mandamento algum" paterno, não corresponderá perfeitamente aos espíritos que, sem jamais terem desobedecido às volições de Deus, permaneceram, infalidos, sempre no plano espiritual - casa paterna, da parábola - aí possuindo em comum com o Pai todas as coisas, Isto é, as verdades eternas e divinas e com ele partilhando em sua glória? Ou Jesus, em cujas palavras ele mesmo o declarou - são "espírito e vida” (1), teria forjado uma ociosa figura, sem significação espiritual?

            (1) João, VI, 64.

            Não. E não é apenas o sentido profundo que acabamos de indicar o que nessa mesma parábola do Filho Pródigo se pode apreender. Que quer dizer, com efeito, esse retorno de um decaído, que é acolhido com as mais efusivas e jubilosas demonstrações, senão que a reabilitação ou, para nos servirmos da consagrada expressão das Escrituras, a "salvação" é reservada, não a um reduzido número de escolhidos como o pretendem as religiões que se acreditam intérpretes e depositárias do Evangelho, senão a toda a humanidade, mais propriamente, a todos os espíritos falidos, por muito que hajam descido na abjeção e na maldade? Para isso uma condição é decerto indispensável: o arrependimento, ao qual jamais deixa a divina munificência - como ressalta mesmo da parábola - de responder com o perdão.

            Aqui se faz necessária uma interpretação. Em que consiste o perdão e quais são, para o culpado, as suas consequências?

            Vimos, precedentemente (1) que, sendo o espírito livre e, paralelamente, responsável, todos os atos que pratica, bons ou maus, como todos os seus movimentos psíquicos, em virtude de uma lei rigorosamente distributiva, sobre ele mesmo exercem uma iniludível influência, entretecendo a trama de suas sucessivas existências e assim determinando as expiações e provas por que passa, como as vantagens que desfruta, conforme a natureza daqueles atos e impulsos, o que justifica a afirmação de que o espírito é o artífice de sua própria felicidade ou desventura. Se sofre, sofre as consequências de seus erros; se goza, colhe o fruto de suas boas obras, não porque um poder arbitrário e caprichoso se entretenha a distribuir castigos e recompensas pessoais, mas em virtude de uma lei, tão inflexível na, ordem moral e espiritual, como no mundo físico tais se evidenciam as que regem os fenômenos dessa natureza. Não há, assim, nenhum ato bom que não atraia para seu autor um beneficio, como nenhum ato mau deixa de produzir dolorosas consequências ao culpado.

            (1) Cap. V, págs. 126 a 130.

            Foi decerto a essa lei que Jesus fez alusão, quando afirmou: "Todos os cabelos da vossa cabeça estão contados, o que também se pode entender da minuciosa e infinita solicitude de Deus por suas criaturas, nem o mais ligeiro acidente permitindo que lhes sobrevenha, que não esteja na linha de suas responsabilidades, como de seu aproveitamento necessário.

            Pois bem, se assim é, se o espirito, no curso de suas peregrinações terrestres, tem que, fatal e inevitavelmente, reparar uma a uma todas as suas faltas e construir pedra a pedra - seja-nos lícita a figura - o edifício de sua felicidade espiritual, não se libertando do tenebroso cárcere terrestre "enquanto não tiver pago o último centil" - para ainda citarmos o Evangelho a que fica reduzida e como pode ser entendida a eficácia do perdão?

            Essa questão é tanto mais digna de ser ventilada quanto, à míngua de um meditado estudo, particularmente à luz do Evangelho, certos espíritas, atendo-se unicamente, sem mais dilatado exame, à lei de causalidade, ou de justiça, que acabamos de invocar, chegam a esta aberrativa conclusão: "Deus não castiga nem perdoa." Como se a ação da lei, que não é uma lei morta, senão viva, pudesse acaso separar-se das determinações do seu Autor. Espiritualistas de outras escolas, fundando-se na inflexibilidade do mesmo principio, vão ao extremo de pretender que, não podendo o homem modificar o curso dos sucessos, a mesma prece - de cuja esplêndida eficácia nos ocuparemos oportunamente - vem a ser inútil.

            Pretensão funesta que, a ser admitida - felizmente lhe escasseiam fundamentos para isso - tiraria ao homem o mais sólido apoio nas horas de amargura e o privaria de um dos mais eficazes instrumentos de purificação e aperfeiçoamento espiritual.

            Reatemos, porém, o nosso estudo. Como se pode ou se deve entender o perdão? Que ele é um fato necessário, indispensável mesmo, aos espíritos culpados, afim de lhes abreviar - quase diríamos comutar - as penas merecidas, é o que frequentemente se encontra no Evangelho, prestigiado pela palavra e, mais que isso, pelos exemplos do Divino Salvador.

            Ele não se limita a recomendar ao povo e aos seus discípulos: "Não julgueis, e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados" (1); na Oração Dominical os ensina a invocar a misericórdia do Senhor, suplicando-lhe: "Perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós também perdoamos aos nossos devedores" (2) ,e logo os adverte: "Porque, se vós perdoardes aos homens as ofensas que tendes deles, também vosso Pai celestial vos perdoará vossos pecados mas, se não perdoardes aos homens, tão pouco vosso Pai vos perdoará vossos pecados" (3). Suspenso do madeiro, na hora angustiosa da sua Paixão, o pensamento de amor com que retribui aos homens o abominável delito contra a sua inocência perpetrado, é ainda uma invocação confirmativa daquele misericordioso ensino: "Perdoa-lhes, Pai, porque não sabem o que fazem (4)".

(1) Lucas, VI, 37.
(2) Mateus, VI, 12.
(3) Mateus VI, 14 e 15.
(4) Lucas, XXIII, 34.

            Mas não foi somente a essa atitude oralmente exemplificadora do perdão que se limitou o Divino Mestre. Em mais de uma passagem do Evangelho o vemos, com a autoridade que só ele possuía e que tinha a sua origem na incessante comunhão espiritual mantida com o Pai, aplicar essa lei, ora a enfermos do corpo, ora a decaídos do espírito, com tão majestosa segurança ,e uma tal evidência de resultados que não permitem duvidar de que ele fosse o intérprete do pensamento e da ação de Deus.

            As duas seguintes passagens, entre outras que omitimos, para não multiplicar desnecessariamente as citações, bastam para o demonstrar.

            "E, entrando em uma barca - refere o evangelista (3) - passou á outra banda e foi à sua cidade. E eis que lhe apresentaram um paralítico, que jazia num leito. E, vendo Jesus a fé que eles tinham, disse ao paralítico: Filho, tem confiança, perdoados te são teus pecados. E logo alguns escribas disseram dentro de si: Este blasfema. E como visse Jesus os pensamentos deles, disse: Por que cogitais mal nos vossos corações? Que coisa é mais fácil dizer : perdoados te são teus pecados, ou dizer: levanta-te e anela? Pois, para que saibais que o Filho do homem tem poder sobre a terra de perdoar pecados, - disse ele então ao paralítico: - Levanta-te, toma o teu leito e vai para tua casa. E ele se levantou e foi para sua casa. E, vendo isto, as gentes temeram e glorificaram a Deus, que deu tal poder aos homens."

            (3) Mateus, IX, 1 a 8

            A outra passagem é relativa à Maria Madalena e assim descrita em sua comovedora e eloquente singeleza (4):

            "E rogava-lhe um fariseu que fosse comer com ele. E, havendo entrado em casa do fariseu, se assentou à mesa. E ao mesmo tempo uma mulher pecadora que havia na cidade, quando soube que estava à mesa em casa do fariseu, levou uma redoma de alabastro, cheia de bálsamo. E, pondo-se a seus pés, por detrás dele, começou a regar-lhe os pés com lágrimas e os enxugava com os cabelos de sua cabeça; e lhe beijava os pés e os ungia com o bálsamo,

            E quando isto viu o fariseu que o tinha convidado, disse lá consigo, fazendo este discurso: Se este homem fora profeta, bem saberia quem e qual é a mulher que o toca; porque é pecadora.

            "Então, respondendo Jesus, lhe disse: Simão, tenho que te dizer uma coisa. E ele respondeu: Mestre, dize-a.

            "Um credor tinha dois devedores: um lhe devia quinhentos dinheiros, e o outro cinquenta. Porém, não tendo os tais com que pagar, lhes remitiu ele a ambos a dívida . Qual o ama, pois, mais? - Respondendo Simão, disse: Creio que aquele a quem o credor perdoou maior quantia. E Jesus lhe disse: Julgaste bem.

            "E voltando-se para a mulher, disse a Simão: Vês esta mulher? Entrei em tua casa, não me deste água para os pés; mas esta com as suas lágrimas regou os meus pés e os enxugou com os seus cabelos. Não me deste ósculo; mas esta, desde que entrou, não cessou de me beijar os pés. Não ungiste a minha cabeça com bálsamo ; e esta com bálsamo ungiu os meus pés. Pelo que te digo que perdoados lhe são seus muitos pecados, porque muito amou: mas ao que menos se perdoa, menos ama.

            "E disse-lhe a ela: Perdoados te são os teus pecados.

            "E os que comiam ali começaram a dizer entre si: Quem é este, que até perdoa pecados? E Jesus disse à mulher: A tua fé te salvou ; vai-te em paz."



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