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Recordemos
em primeiro lugar que Jesus, o mestre da sabedoria divina, Espírito de Verdade
e, como tal, expressão visível do pensamento de Deus, jamais deixou cair de seus misericordiosos lábios, palavras que não
fossem a expressão de uma verdade mesmo quando, para impressionar a imaginação
de seus ouvintes, como tão frequentemente praticava, envolvia a sua doutrinação
nas roupagens da alegoria e da parábola, as imagens que empregava, os símbolos
e descrições de que se socorria, tomadas muitas vezes aos costumes do próprio
judaísmo, postas assim mais ao alcance do entendimento popular, não somente se
ajustavam com precisão admirável ao ensino que se propunha ministrar, como
encerravam sempre um sentido espiritual e um alcance que os mais versados nas
coisas do espírito teriam, como terão sempre, que sondar, tanto maior
profundeza lhes apreendendo quão mais porfiarem, pelo recolhimento e a
meditação, em penetrá-la .
A
parábola do Filho Pródigo, que é a de que nos ocupamos, não faz exceção a essa
regra. Que nos ensina por ela o Divino Salvador?
Um
homem - disse ele - teve dois filhos. Um deles, o mais moço, tendo pedido ao pai
a parte que, na herança paterna, lhe cabia, com ela se ausentou para uma terra
distante, num país estranho, e lá dissipou todo o seu patrimônio, vivendo dissolutamente.
Reduzido à indigência, teve que sujeitar-se aos mais rudes misteres, que não
lhe permitiam contudo alimentar-se ao menos com o que era distribuído aos
porcos, até que, "tendo entrado em si," e considerando a abundância que havia
para os próprios serviçais no lar que Insensatamente abandonara, arrependeu-se
e deliberou regressar à casa paterna, onde realmente foi, com o perdão que suplicou ao pai,
recebido com os mais expressivos sinais de regozijo. E como o irmão mais velho,
estranhando tamanhas expansões com o dissoluto, manifestasse o seu desagrado,
advertindo: "Há tantos anos que te sirvo, sem nunca transgredir mandamento
algum teu, e tu nunca me deste um cabrito para eu me regalar com os meus
amigos; mas, tanto que chegou este teu filho, que gastou tudo quanto tinha com perdidas, logo lhe mandaste matar um novilho
gordo!" - o pai lhe replicou: "Filho, tu sempre estás comigo e tudo o
que é meu é teu; era, porém, necessário que houvesse banquete e festim, pois
que este teu irmão era morto e reviveu, tinha se perdido e se achou."
Ora,
despojando-se da ingênua alegoria, tão apropriada aos rústicos costumes dos
hebreus; o pensamento de Jesus, que ensino se lhe pode, ao demais sem grande
esforço, descobrir? Nesse filho pródigo que, de posse da herança paterna, a
dissipa, num país distante, com leviandades de que lhe advêm o remorso e o
arrependimento, não estará, flagrante e expressiva, a imagem dos espíritos falidos,
extraviados nos mundos de provação e dor, a malbaratar os dons da inteligência em coisas
subalternas, senão mesmo na prática do mal? E aquele filho obediente, que
"nunca transgredira mandamento algum" paterno, não corresponderá
perfeitamente aos espíritos que, sem jamais terem desobedecido às volições de
Deus, permaneceram, infalidos, sempre no plano espiritual - casa paterna, da
parábola - aí possuindo em comum com o Pai todas as coisas, Isto é, as verdades
eternas e divinas e com ele partilhando em sua glória? Ou Jesus, em cujas
palavras ele mesmo o declarou - são "espírito e vida” (1), teria forjado uma ociosa figura, sem significação espiritual?
(1) João, VI, 64.
Não.
E não é apenas o sentido profundo que acabamos de indicar o que nessa mesma parábola
do Filho Pródigo se pode apreender. Que quer dizer, com efeito, esse retorno de
um decaído, que é acolhido com as mais efusivas e jubilosas demonstrações,
senão que a reabilitação ou, para nos servirmos da consagrada expressão das
Escrituras, a "salvação" é reservada, não a um reduzido número de
escolhidos como o pretendem as religiões que se acreditam intérpretes e depositárias
do Evangelho, senão a toda a humanidade, mais propriamente, a todos os espíritos
falidos, por muito que hajam descido na abjeção e na maldade? Para isso uma
condição é decerto indispensável: o arrependimento, ao qual jamais deixa a
divina munificência - como ressalta mesmo da parábola - de responder com o
perdão.
Aqui
se faz necessária uma interpretação. Em que consiste o perdão e quais são, para
o culpado, as suas consequências?
Vimos,
precedentemente (1) que, sendo o
espírito livre e, paralelamente, responsável, todos os atos que pratica, bons
ou maus, como todos os seus movimentos psíquicos, em virtude de uma lei
rigorosamente distributiva, sobre ele mesmo exercem uma iniludível influência,
entretecendo a trama de suas sucessivas existências e assim determinando as
expiações e provas por que passa, como as vantagens que desfruta, conforme a
natureza daqueles atos e impulsos, o que justifica a afirmação
de que o espírito é o artífice de sua própria felicidade ou desventura. Se
sofre, sofre as consequências de seus erros; se goza, colhe o fruto de suas
boas obras, não porque um poder arbitrário e caprichoso se entretenha a
distribuir castigos e recompensas pessoais, mas em virtude de uma lei, tão
inflexível na, ordem moral e espiritual, como no mundo físico tais se
evidenciam as que regem os fenômenos dessa natureza. Não há, assim, nenhum ato
bom que não atraia para seu autor um beneficio, como nenhum ato mau deixa de
produzir dolorosas consequências ao culpado.
(1) Cap. V, págs. 126
a 130.
Foi
decerto a essa lei que Jesus fez alusão, quando afirmou: "Todos os cabelos
da vossa cabeça estão contados, o que também se pode entender da minuciosa e
infinita solicitude de Deus por suas criaturas, nem o mais ligeiro acidente permitindo
que lhes sobrevenha, que não esteja na linha de suas responsabilidades, como
de seu aproveitamento necessário.
Pois
bem, se assim é, se o espirito, no curso de suas peregrinações terrestres, tem
que, fatal e inevitavelmente, reparar uma a uma todas as suas faltas e
construir pedra a pedra - seja-nos lícita a figura - o edifício de sua felicidade
espiritual, não se libertando do tenebroso cárcere terrestre "enquanto não
tiver pago o último centil" - para ainda citarmos o Evangelho a que fica
reduzida e como pode ser entendida a eficácia do perdão?
Essa
questão é tanto mais digna de ser ventilada quanto, à míngua de um meditado
estudo, particularmente à luz do Evangelho, certos espíritas, atendo-se
unicamente, sem mais dilatado exame, à lei de causalidade, ou de justiça, que
acabamos de invocar, chegam a esta aberrativa conclusão: "Deus não castiga
nem perdoa." Como se a ação da lei, que não é uma lei morta, senão viva,
pudesse acaso separar-se das determinações do seu Autor. Espiritualistas de
outras escolas, fundando-se na inflexibilidade do mesmo principio, vão ao
extremo de pretender que, não podendo o homem modificar o curso dos sucessos, a
mesma prece - de cuja esplêndida eficácia nos ocuparemos oportunamente - vem a
ser inútil.
Pretensão
funesta que, a ser admitida - felizmente lhe escasseiam fundamentos para isso -
tiraria ao homem o mais sólido apoio nas horas de amargura e o privaria de um
dos mais eficazes instrumentos de purificação e aperfeiçoamento espiritual.
Reatemos,
porém, o nosso estudo. Como se pode ou se deve entender o perdão? Que ele é um
fato necessário, indispensável mesmo, aos espíritos culpados, afim de lhes
abreviar - quase diríamos comutar - as penas merecidas, é o que frequentemente
se encontra no Evangelho, prestigiado pela palavra e, mais que isso, pelos
exemplos do Divino Salvador.
Ele
não se limita a recomendar ao povo e aos seus discípulos: "Não julgueis, e
não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai, e sereis
perdoados" (1); na Oração
Dominical os ensina a invocar a misericórdia do Senhor, suplicando-lhe:
"Perdoa-nos as nossas dívidas, assim como nós também perdoamos
aos nossos devedores" (2) ,e logo os
adverte: "Porque, se vós perdoardes aos homens as ofensas que tendes
deles, também vosso Pai celestial vos perdoará vossos pecados mas, se não
perdoardes aos homens, tão pouco vosso Pai vos perdoará vossos pecados" (3).
Suspenso do madeiro, na hora angustiosa da sua Paixão, o pensamento de amor com
que retribui aos homens o abominável delito contra a sua inocência perpetrado, é ainda uma invocação
confirmativa daquele misericordioso ensino: "Perdoa-lhes, Pai, porque não
sabem o que fazem (4)".
(1) Lucas, VI, 37.
(2) Mateus, VI, 12.
(3) Mateus VI, 14 e 15.
(4) Lucas, XXIII, 34.
Mas
não foi somente a essa atitude oralmente exemplificadora do perdão que se
limitou o Divino Mestre. Em mais de uma passagem do Evangelho o vemos, com a
autoridade que só ele possuía e que tinha a sua origem na incessante comunhão
espiritual mantida com o Pai, aplicar essa lei, ora a enfermos do corpo, ora a
decaídos do espírito, com tão majestosa segurança ,e uma tal evidência de
resultados que não permitem duvidar de que ele fosse o intérprete do pensamento
e da ação de Deus.
As
duas seguintes passagens, entre outras que omitimos, para não multiplicar
desnecessariamente as citações, bastam para o demonstrar.
"E,
entrando em uma barca - refere o evangelista (3) - passou á outra banda e foi à
sua cidade. E eis que lhe apresentaram um paralítico, que jazia num leito. E, vendo
Jesus a fé que eles tinham, disse ao paralítico: Filho, tem confiança,
perdoados te são teus pecados. E logo alguns escribas disseram dentro de si:
Este blasfema. E como visse Jesus os pensamentos deles, disse: Por que cogitais
mal nos vossos corações? Que coisa é mais fácil dizer : perdoados te são teus
pecados, ou dizer: levanta-te e anela? Pois, para que saibais que o Filho do
homem tem poder sobre a terra de perdoar pecados, - disse ele então ao paralítico:
- Levanta-te, toma o teu leito e vai para tua casa. E ele se levantou e foi
para sua casa. E, vendo isto, as gentes temeram e glorificaram a Deus, que deu
tal poder aos homens."
(3) Mateus, IX, 1 a 8
A
outra passagem é relativa à Maria Madalena e assim descrita em sua comovedora e
eloquente singeleza (4):
"E
rogava-lhe um fariseu que fosse comer com ele. E, havendo entrado em casa do fariseu,
se assentou à mesa. E ao mesmo tempo uma mulher pecadora que havia na cidade,
quando soube que estava à mesa em casa do fariseu, levou uma redoma de
alabastro, cheia de bálsamo. E, pondo-se a seus pés, por detrás dele, começou a
regar-lhe os pés com lágrimas e os enxugava com os cabelos de sua cabeça; e lhe
beijava os pés e os ungia com o bálsamo,
E quando isto viu o fariseu
que o tinha convidado, disse lá consigo, fazendo este discurso: Se este homem fora
profeta, bem saberia quem e qual é a mulher que o toca; porque é pecadora.
"Então,
respondendo Jesus, lhe disse: Simão, tenho que te dizer uma coisa. E ele
respondeu: Mestre, dize-a.
"Um credor tinha
dois devedores: um lhe devia quinhentos dinheiros, e o outro cinquenta. Porém,
não tendo os tais com que pagar, lhes remitiu ele a ambos a dívida . Qual o
ama, pois, mais? - Respondendo Simão, disse: Creio que aquele a quem o credor
perdoou maior quantia. E Jesus lhe disse: Julgaste bem.
"E
voltando-se para a mulher, disse a Simão: Vês esta mulher? Entrei em tua casa,
não me deste água para os pés; mas esta com as suas lágrimas regou os meus pés
e os enxugou com os seus cabelos. Não me deste ósculo; mas esta, desde que
entrou, não cessou de me beijar os pés. Não ungiste a minha cabeça com bálsamo
; e esta com bálsamo ungiu os meus pés. Pelo que te digo que perdoados lhe são
seus muitos pecados, porque muito amou: mas ao que menos se perdoa, menos ama.
"E
disse-lhe a ela: Perdoados te são os teus pecados.
"E
os que comiam ali começaram a dizer entre si: Quem é este, que até perdoa
pecados? E Jesus disse à mulher: A tua fé te salvou ; vai-te em paz."
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