Licenças Perniciosas
O
homem do mundo que é possuidor de sensatez, na convivência mundana, usa, mas não abusa, concorda,
mas não conive[1],
ensina, mas não impõe, discorda, mas não se inimiza, diverge, mas não dissente,
mantendo em todos os momentos uma diretriz de equilíbrio que o torna verdadeiro
cristão. Compreende que a sua saúde interior resulta do comportamento que se
aplica na convivência com os seus pares.
O
homem cristão, discípulo sincero do Evangelho de Jesus Cristo, compreende em
maior profundidade os compromissos que lhe assinalam a rota e por isto mesmo
sabe que é livre, mas não tem licença de se comprometer com as vinculações
negativas da vida, que lhe cumpre superar. Diante das licenciosidades que lhe
abrem portas convidativas ao acesso, mantém uma atitude digna, discreta, sem
envolver-se nas fantasias que levam à indigência espiritual e compelem ao
aniquilamento dos ideais superiores da vida. Sente-se escravo da verdade, por
isso não mente. Compreende que a saúde é fator primacial da vida, portanto,
luta contra a doença. No báratro das viciações que se multiplicam galvanizantes
ou douradas, percebe o lado negativo das concessões agradáveis que levam à sensualidade
― bafio[2]
pestilencial de morte que entorpece o sentimento e perturba a razão ―. Abstém
de enrodilhar-se nas malhas constritoras do mal que urde[3]
toda uma série de aflições e vexames, que terminam por destruir o que há de
mais elevado no ser. Coloca-se em vanguarda contra as facilidades morais que
arestesiam os centros do discernimento, por mais favoráveis se lhe apresentem,
mesmo quando doando um cabedal glorioso de transitória posição de relevo no
mundo. Resguarda-se contra os vícios sociais, os pequenos crimes que são as
matrizes dos grandes delíquios[4]
espirituais. Afirma os seus valores legítimos, não pelo envilecimento da
personalidade, porém através da manutenção dos requisitos que o tornam
verdadeiramente digno de ser respeitado e imitado. Não aquiesce diante da
mentira, da inveja, da embriaguês, da concupiscência, da calúnia, dos tóxicos,
estabelecendo uma normativa de comportamento que lhe constitui a couraça de
segurança, ao mesmo tempo abrindo as portas da liberdade por onde avança
resoluto, na marcha que o conduza para a paz.
Enquanto
medram as licenciosidades, que vão, a pouco e pouco, dominando o homem e a
sociedade hodiernos, o cristão verdadeiro sabe que a sua segurança é o
Evangelho, sua definição é o Bem, sua metodologia é a Caridade, sua salvação é
o Amor.
Sem
qualquer pieguismo ou manifestação de covardia moral, estabelece um estado de
paz interior que os conflitos e as convulsões de fora não conseguem
desconectar.
Caracteriza-se
a degenerência de um povo, a queda de uma comunidade pela explosão aberrativa
das permissividades morais que neles se multiplicam. Quando combalem os valores
éticos, desmoronam-se os alicerces da vida humana.
Verdade
é que muitas vezes se tornam legais as excrescências do caráter humano, apesar
disso jamais se tornam morais.
Aqueles
que compactuam com as licenciosidades douradas são também criminosos que se
unem para os homicídios recíprocos da vida interior. Enquanto vibram,
estonteantes, em sensações enganosas, as expressões do prazer, na atualidade do
sexo que tresvaria[5],
fazendo do homem um feixe de instintos animalizantes e da mulher um objeto de
uso indiscriminado, sem desejarmos referir-nos aos grandes comprometidos da
História, não podemos sopitar[6]
referências a alguns deles, como Cláudio e Messalina que, não obstante a
posição relevante à cabeça do Império Romano, se entregavam à exaustão dos
sentidos, culminando pela alucinação do desejo infrene[7]
e da degeneração mental; Justiniano e Teodora, esta última uma atriz arrancada
do bordel para o primeiro ponto de destaque da comunidade, exercendo lamentável
influência, inclusive na Religião... Mais recentemente Paulina Bonaparte que,
tendo o irmão à frente do Império Francês, se entregou à volúpia insana do
prazer até o total aniquilamento das forças... E quantos outros?!...
Seria
difícil eleger os grandes prevaricadores e as atormentadas da
contemporaneidade. É verdade, que a mulher que envileceu os sentimentos, no
rebaixamento da sexualidade, e que brilha, despertando inveja, provocando
ciúmes, é, no íntimo, uma infeliz, vitimada em si mesma. Espírito sofrido, que
foi ludibriado nos seus sentimentos mais profundos, jornadeia nas luzes
enganosas da glória, que logo se apagam, sem contar com um braço amigo que lhe
conceda dignidade e apoio quando as carnes trôpegas perderem o momentâneo viço,
e o fulgor dos olhos apagar a sua luminosidade. Poderá estar ajaezada e
adereçada de gemas de alto custo, todavia sempre experimenta o travo profundo
da soledade e o ácido tormentoso de transitar sem amor. Se lhe veio das carnes um filho, órfão de pai
vivo, terá que segurá-lo em transe de dor num misto de mágoa, amor e agonia
profunda quão devastadora. Se derrapa na miséria econômica, que muitas vezes
precede ou sucede à moral, passa combatida, com a ferida aberta do sentimento
ultrajado onde o veneno da insensatez humana aumenta cada vez mais a pústula,
tornando-a mais dolorosa. Ninguém dela se apiada. Desculpam o cômpar[8] Que contribuiu para a sua queda, mas não a ela
que tombou. Em verdade, poucos lembram de que a sua queda se consumou porque
uma mão anônima e acovardada empurrou-a pela escada abaixo da dignidade,
permanecendo santa, na própria vergonha.
Os
vícios, que são frutos dos distúrbios da emotividade, da insegurança e das
ambições desnorteadoras deste século de misérias e de glórias, de despudor e de
renúncias, objetivam o saciar do egoísmo na sua multiface de paixões.
Não
vos deixeis enredar nas malhas bem entretecidas das ações destrutivas dos
vícios, por mais simples que vos pareçam!
A
barragem poderosa que sustém as águas arrebenta-se, quando uma pequena
infiltração lhe mina as resistências. As pirâmides colossais levantaram-se
pedra sobre pedra. A escada da degradação dos costumes começa no primeiro passo
para baixo e não encontra fundo, porque quem cai moralmente e se deixa derruir[9]
tomba sempre um degrau a mais.
Detende
o vosso passo e erguei vosso sentimento!
O
melhor conselheiro do ser é a consciência tranquila.
Inutilmente
procurar-se-ão psicoterapeutas, analistas, medicações se não se erradicarem do
sentimento profundo as marcas dos crimes perpetrados contra a consciência
pessoal ou coletiva.
Analisai
o Evangelho, comprometendo-vos com ele e, livres como sois, não useis da vossa
licença para destruir a oportunidade da atual reencarnação.
O
Apóstolo Paulo gritava com emoção que era escravo do Cristo; João da Cruz, o
místico espanhol, entregando-se totalmente ao Mestre Galileu, tornou-se o
protótipo do senhor de si mesmo e Tereza de Ávila, que com ele compartia as
excelências espirituais, escreveu emocionada: “Me muero, por que non muero”, a
sofrer, porque não morrer para ela constituía verdadeiramente uma forma de
morte.
O
homem que encontra Jesus e que O segue rompe a grilheta que o ata aos vícios
dissolventes, estes que infelicitam o coração.
Avançar
com o espírito estóico no rumo da felicidade íntima, através da retidão do
caráter e da preservação dos costumes, é a diretriz que vos chega, com o
objetivo de edificardes, no mundo, uma humanidade melhor, onde todos
encontraremos a verdadeira paz hoje ou amanhã.
Francisco do
Monte Alverne
por Divaldo P. Franco
in “Florilégios Espirituais”
3ª Edição 1983
[1]
Diz-se daquele que está secretamente de acordo com outrem para a prática de
alguma ação condenável
[2]
Mau cheiro que se desprende de uma coisa que esteve muito tempo em recinto
fechado e úmido
[3] Enredar, tramar, maquinar, intrigar: urdir
uma traição.
[4]
Liquefação de um corpo sólido por efeito da umidade atmosférica. Desmaio,
desfalecimento, síncope
[5]
Praticar desvarios, estar fora de si, delirar. Dizer ou fazer disparates.
[6]
Adormecer. Abrandar, acalmar. Desalentar, debilitar, enlanguescer. Fig.
Alimentar esperanças em. Dominar, vencer: sopitar desejos.
[7]
Sem freio; desenfreado, descomedido
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