72
Analisando
estes exemplos e buscando a sua concordância com as exortações de Jesus sobre a
reciprocidade do perdão entre os homens, como indispensável condição de o
obterem de Deus para suas culpas, sem por outro lado perdermos de vista a obrigatoriedade
das expiações e reparações, na lei divinal estatuída, acreditamos não ficar
distanciado da verdade, firmando o seguinte principio:
As
transgressões perpetradas pelo homem contra as leis divinas podem ser divididas
em duas principais categorias: aquelas que só prejudicam o indivíduo e as que
são, tanto ou mais que a ele, prejudiciais ao próximo. Na primeira estão
compreendidos os excessos, desvarios e abusos de todo gênero que, arruinando a saúde, a
reputação e muitas vezes a bolsa, contribuem não raro para abreviar a vida. São
antes leviandades que delitos, e as suas consequências não passam da pessoa do
seu autor, impregnando-o de materialidade, entorpecendo-lhe as faculdades
espirituais e condenando-o a imediatas ou ulteriores expiações na carne, as quais
devem, cedo ou tarde, - e é esse o seu objetivo salutar - provocar o
arrependimento, a que sucedem firmes propósitos de regeneração, tanto mais fácil
de obter quanto não depende de estranhas vontades. Que o decaído, por um
veemente impulso interior, abomine sinceramente os extravios com que a si próprio
se infelicitou e tome o resoluto compromisso de não reincidir, e o perdão que
suplicar lhe será deferido, bastando porventura - tal seja a firmeza da resolução
e humilde submissão à prova - uma única existência para sua inteira purificação.
Fora
provavelmente esse o caso do paralítico. E Jesus, cuja lúcida visão espiritual
penetrava o recesso das consciências, vendo que a dolorosa expiação produzira
naquele espírito os necessários frutos de arrependimento e a firme deliberação
de emenda, libertando-o do seu mal, não foi mais que o eco exteriorizado, a
expressão verbal da Lei, que sabia satisfeita.
Semelhante,
senão por natureza idêntico, é o caso de Maria Madalena, com a diferença de que
muito mais cedo se deteve ela no resvaladouro das leviandades, não necessitando
que as torturas da expiação a fizessem retroceder, antes bastando que a
aproximação do Mestre, pelo divino poder que dele irradiava, lhe despertasse na
alma as capacidades morais adormecidas e produzisse aquele maravilhoso retorno,
que a transformou de decaída numa das mais belas figuras do Cristianismo. O motivo
dessa instantânea transfiguração radica no fato de que naquele espírito, que
não soubera resistir às seduções do meio, para quem a deslumbrante beleza física
fora o pretexto de queda e de falência, não havia pendores viciosos. Sucumbindo
às solicitações da vaidade e deixando-se imolar pela concupiscência que de todo
lado a assediava, nutria, entretanto, em seu coração um profundo, um enternecido
amor pelos pobres e os pequenos, que largamente beneficiava com o fruto de suas
deploráveis leviandades.
É
por isso que, dizendo "perdoados lhe são seus muitos pecados, porque muito
amou," Jesus não aludia, como o têm acreditado espíritos superficiais, aos
desvarios de que viera a ser ela própria a maior vítima - e poderia Aquele que
era a pureza perfeita e imaculada fazer da impureza um título de merecimento? - mas ao amor
desinteressado e espiritual que lia naquela alma e de que, sabia, eram objeto
os sofredores e necessitados. Foi esse imaterial sentimento, fonte das mais
elevadas manifestações do espírito e o mais fecundo propulsor do seu progresso,
que tão depressa converteu Maria à lei do Cristo e tão intimamente com ele
identificou o seu espirito.
Mas,
de todo modo, ela tinha em seu passivo os desregramentos dessa vida pecadora .
Com uma palavra Jesus lh'os remitiu, Porque? - Porque o arrependimento - e era
decerto profundo o de Maria Magdalena - atrai o perdão, e o perdão apaga a
culpa.
Definitivamente?
Sem mais necessidade de prova ou de reparação? Tudo depende da intensidade do
arrependimento e dos atos que se lhe seguem, tendentes a eliminar, assim da
consciência do espírito como do aura que o envolve, toda impureza, todo
vestígio das antigas culpas.
No
que se refere particularmente a Maria de Magdala, não somente, a partir de sua
conversão, ela se fez uma fiel seguidora de Jesus, de cujos lábios não se
fartava de ouvir as palavras de redenção e vida eterna, sendo uma das raras
almas intrépidas que o acompanharam na hora trágica da crucificação, mas quis
selar por um novo, decisivo triunfo sobra a carne - e aqui emitimos uma opinião
inteiramente pessoal - os seus propósitos de regeneração.
Se,
com efeito, acompanhamos a história da igreja, mesmo depois que a tantos
respeitos se divorciou do pensamento cristão, valendo-lhe contudo, para lhe
assegurar uma temporária vitalidade, a presença em seu seio de grandes missionários
que fulguraram de inusitado brilho nas obras da fé e caridade, vamos encontrar,
ao fim do tenebroso período da Idade Média e em pleno alvorecer da Renascença,
uma singular figura de monja, em quem parece reviverem os traços principais da
Magdalena, encaminhados, porém, a uma nobre e redentora missão. Notável pela
prodigiosa atividade que desenvolveu na fundação de institutos e recolhimentos
destinados a abrigar das tentações do mundo as pessoas do seu sexo, era também
dotada de uma impressionadora beleza física, de cujas seduções soube, todavia,
triunfar, sobrepondo-lhe a inquebrantável firmeza de sua vocação religiosa, ao
mesmo tempo caracterizada por um tão intenso e arrebatado amor ao Cristo que,
não raro, - a história da sua vida o menciona - com ele se entretinha em colóquios
espirituais, nos êxtases da adoração em que se transportava.
Nessa
figura, de um relevo tão casto e imaterial, não temos dúvida por nossa parte em
admitir uma reencarnação da Madalena, a cuja personalidade assim se sobrepõe
uma outra imaculada, que a redime e enobrece.
É
tempo, contudo, de analisarmos o outro aspecto das transgressões, a que atrás
nos referimos, perpetradas pelo homem contra as leis divinas, isto é, as que
são prejudiciais, não apenas a ele, mas ao próximo.
Pertencem
a esse numero todos os atos de maldade que, inspirados nos sentimentos de egoísmo,
orgulho, inveja, ambição e semelhantes, pela natureza das impuras vibrações
produzidas por esses desordenados movimentos psíquicos, não somente envolvem os
seus autores numa entenebrecida trama fluídica, senão que, pelas repulsas que
despertam, traduzidas em ressentimentos e rancores, desenvolvem correntes magnéticas
similares, em que vítimas e algozes ficam presos como num circuito fechado.
De
que modo se podem quebrar esses verdadeiros grilhões forjados pelo mal e
fortalecidos, do outro lado, pelo ódio? É preciso que o ofendido, pelo perdão,
que importa completo esquecimento, desligue de si o ofensor, ou, para ainda
utilizarmos a mesma figura, interrompa o circuito, que neste caso se fechará
exclusivamente sobre o recalcitrante.
Eis
porque Jesus recomendava: "Concerta-te sem demora com o teu adversário, enquanto
estás a caminho com ele; e empregando mais uma vez a linguagem figurada com
que, para ser melhor compreendido, buscava de alguma sorte materializar o
pensamento, imediatamente advertia: “para que não suceda que ele, adversário,
te entregue ao juiz e o juiz te entregue ao seu ministro e sejas mandado para a
cadeia. Em verdade te digo que não sairás de lá, até pagares o último centil (1)."
(1) Mateus, V, 25 e
26.
O
que, em sua significação espiritual, quer dizer que, enquanto colocados na
linha das peregrinações terrestres, permanecerem irredutíveis na mesma ordem de
sentimentos, vítimas e algozes prolongarão o seu encarceramento na carne, em
vez de o abreviar, a fim de aí expiar e reparar todas as suas impenitentes
transgressões.
Desde
que, porém, o ofendido quebre, pelo perdão, os grilhões que o prendem ao
ofensor, ao mesmo tempo que se emancipa da influência escravizadora de seus malévolos sentimentos, adquire o direito ao equitativo
tratamento prometido pelo Cristo, isto é, faz jus ao perdão para as suas próprias
culpas. Que ninguém há delas isento. Exceção apenas, com efeito, da imaculada
figura de Jesus, haverá ou terá porventura havido, mesmo entre os grandes missionários,
espíritos que não sejam mais ou menos falidos e se não encontrem mais ou menos
distanciados do ideal de perfeição, que todos, entretanto, cedo ou tarde hão
de alcançar? E que é que lhes pode suprir a deficiência
em tal sentido e ungi-los da pureza perfeita que lhes falta, senão a indulgência,
o perdão de suas remanescentes debilidades, numa palavra, a transfusão da graça
divina, que menos considera o merecimento do doado que a magnanimidade do
Doador?
Se
o espírito, mesmo depois de arrependido, fosse condenado a voltar
incessantemente à carne, para expiar e reparar até a última, até a menor de
suas faltas e delíquios, se, por outros termos, entregue, de um lado, exclusivamente
às suas próprias energias e, do outro, às inflexíveis reações da lei de causa e
efeito, houvesse uma razão rigorosamente matemática entre os erros e fraquezas
do individuo, cometidos por pensamentos, palavras e atos, e a obrigatoriedade
de um a um os reparar na carne, quem haveria que lograsse, a fim se libertar do
tenebroso círculo das encarnações terrestres? Onde a vida bastante e
irrepreensivelmente santa, para não ser maculada sequer de uma tentação ou de
um pensamento impuro? Se tal fosse, para o espírito, a condição de liberdade,
quão poucos se porventura algum - poderiam alimentar a esperança de encerrar na
Terra o ciclo de suas dolorosas peregrinações.
É
preciso, pois, que, respondendo às íntimas, às reiteradas aspirações de
perfeição na consciência do espírito engendradas, a intervenção de um supremo e
providencial fator lhe venha abreviar a proscrição, reduzindo o número das
reparações, devidas menos aos ofendidos, igualmente réus, do que à Lei, que em
seu beneficio se executa e que, satisfeita pela reconciliação do culpado com os
seus ditames, não pode prolongar o seu rigor além do limite necessário à efetividade
dessa mesma reconciliação.
Porque
a lei de que falamos, lei de vida, por isso mesmo que de amor, não pode ser um
instrumento frio e implacável, segundo o conceito humano, - e daí a repugnância
de alguns em admitir o castigo, a punição, pela ideia de vingança que sugere,
quando a sua legítima significação é a de corretivo, ou advertência paternal -
senão que, inspirada nos atributos do seu próprio Autor, é bem a lei do
sentimento, representado naquele Pai que, na parábola do Filho Pródigo, Jesus
nos apresenta e se comove com o arrependimento do que, pelo pecado, "era
morto e reviveu, havia-se perdido e se achou."
Esse tema, porém, dos atributos divinos
pertence a outro capítulo, em que lhe procuraremos dar o conveniente
desenvolvimento.
Nenhum comentário:
Postar um comentário