quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

69. 'Doutrina e Prática do Espiritismo'





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            Vimos que os instintos, longe de serem uma espécie de inteligência rudimentar, não chegaram a se fixar e desenvolver senão a poder de repetidas, infinitamente multiplicadas aplicações da inteligência e da atenção; e, tivéssemos necessidade de aduzir novo argumento a tal respeito, lembraríamos que, tendo ao começo por objeto as funções e as necessidades da vida propriamente orgânica e vegetativa não é outra a marcha a que obedece o instinto nas esferas superiores da moral, quando se encaminha o espírito, mais que às aquisições abstratas do saber, à posse das virtudes.

            Nos graus inferiores da evolução humana, como o em que demoram ainda, mesmo, as sociedades que mais civilizadas se acreditam, não consegue o homem nortear os seus sentimentos e impulsos para os atos de bondade - expressão em que entendemos abranger  um conjunto de virtudes, como a simplicidade, a pureza, o desinteresse e a caridade em sua expressão mais espiritualizada - senão a poder de esforços e de lutas contra as suas inveteradas tendências egoístas. No crente, sobretudo, particularmente no espírita, essa luta reveste o cunho de ininterrupto combate interior, na ânsia de acelerar a realização, que em si mesmo aspira, do modelo que pelo Divino Mestre lhe foi oferecido. Assim, o seu progresso nas virtudes é o objeto e  virá a ser o resultado de constantes, deliberadas volições, em que com a salutar experiência das reações, que toda ação má produz em sua consciência, colaboram a inteligência e a razão, a si mesmo se persuadindo o indivíduo de "quanto é bom ser bom." À força de repetir os exercícios de persuasão c de ação, virá a fazer do bem um hábito, ao começo intermitente e, por último, exclusivo. Chegará desse modo, senão numa, em muito poucas existências com certeza, a adquirir o instinto da bondade.

            Não é assim que nos aparecem - para não irmos mais longe na exemplificação - as grandes figuras do Cristianismo, esses admiráveis modelos de virtudes como Antônio de Pádua, Vicente de Paulo, Francisco de Assis, que já mencionamos em seu imenso amor pelos próprios animais, e tantos outros vultos que tais virtudes praticaram instintivamente - é o termo - e sem esforço? Como teriam eles alcançado essas culminâncias, senão por um anterior trabalho consciente, disciplinado e volitivo?

            Gradação idêntica se pode legitimamente supor na formação da consciência, a princípio rudimentar e indistinta, não consistindo mais que numa vaga noção egoística do eu, buscando se afirmar a estímulos das necessidades naturais, frequentemente satisfeitas com sacrifício de outros seres, como se observa em todas as séries da animalidade, para só mais tarde, na condição propriamente de espírito, chegar a ser, segundo a definição clássica, o conhecimento que o individuo possui de si mesmo, ou, por outros termos, o sentimento natural do próprio ser, de suas faculdades e do valor e consequências dos seus atos.

            Como e quando despertou o espírito para essa capacidade de introspeção, que lhe vai dar, com a posse do livre arbítrio, que desponta, a responsabilidade moral, o mérito e o demérito das ações, conforma o sentido em que se defina a' sua escolha?

            A esse respeito não há opinião uniforme, assim nos ensinos da Revelação, como entre os analistas e expositores da doutrina. Pretendem uns, levando mais adiante as conclusões do que o autorizaria o que se acha cautelosamente exposto no LIVRO DOS ESPÍRITOS (1), e assim buscando ampliar, a seu modo o pensamento dos reveladores e os comentários pelo Mestre formulados, que depois do milenário processo de elaboração, de lenta individualização através de todas as séries naturais, nos reinos mineral, vegetal e animal, o princípio espiritual, formado então espírito, é incorporado à espécie humana e aí vai, sem solução de continuidade, prosseguir a sua evolução, desde o estado selvagem primitivo aos mais aprimorados graus de civilização.

            (1) Livro citado, cap. XI da 2ª parte.

            Aparentemente lógica e mesmo coerente com a marcha natural evolutiva, tal como no plano visível se nos apresenta, essa opinião, que parece ver no espírito humano a soma, ou o resumo de todas as qualidades e defeitos, de todas as capacidades e aptidões dos seres abaixo da  nossa espécie escalonados, com todas as experiências nesse longo trajeto adquiridas, seria de facto irrefragável, como o acreditam os seus propugnadores, se contra ela se não insurgissem os resultados de uma observação demorada, que não meramente superficial, da humana psicologia.

            Ora, o que dessa observação resulta para os que se aplicam a atentamente ler nas páginas desse livro, sempre misterioso e atraente, que é a alma humana, é que criaturas há, excepcionais embora, que, por sua simplicidade e inexperiência, de par com um desenvolvimento intelectual não muito extenso - indício de uma evolução incipiente - denunciam positivamente estarmos em presença de espíritos novos, ainda não exercitados no conhecimento das coisas deste mundo, a que se conservam, de alguma sorte, estranhos.

            Se o homem fosse, invariavelmente e sempre, a soma ou resultante dos animais que o precederam na escala evolutiva, nele deveriam patentear-se as qualidades predominantes, senão em todos, num grande número, pelo menos, desses animais, desde, por exemplo, a inteligência imitativa do macaco, a fidelidade e obediência do cão, a altivez do cavalo, a astúcia da serpente e da raposa, a bravura do leão, a ferocidade do tigre, a habilidade construtora do castor, a simplicidade da pomba, a mansidão do cordeiro até o heroísmo altruístico do pelicano e a previdência laboriosa da formiga, e assim por diante, abrangendo as mais variadas e não raro antagônicas modalidades psíquicas de toda a escala zoológica. Mas o que, de fato se observa é que, se as principais dessas qualidades e defeitos parece algumas vezes se encontrarem reunidas em certos indivíduos, a disparatada associação não abrange mais que um ou alguns grupos psicológicos, jamais se apresentando com um caráter de integridade, que deveria revestir, se o homem fosse realmente a síntese completa e  ininterrupta dos demais seres seus predecessores na ordem natural.

            Uma das razões, entre outras, invocada pelos que afirmam a passagem do espírito, sem interrupção, dos últimos elos da animalidade para a espécie humana, depois de haver percorrido todos os anteriores graus da evolução, baseia-se no testemunho fornecido pela embriologia, no sentido de que o óvulo humano fecundado reproduz, nas primeiras semanas da gestação e numa rápida criação evolutiva; os caracteres morfológicos “de todos os seres pelos quais passou a raça”,  isto é, célula a princípio e, em seguida, molusco, peixe, réptil, quadrúpede, para revestir finalmente a forma humana. E como pretendem que no perispírito é que se fixaram todas essas formas, concluem, a nosso ver equivocadamente, que está nisso a prova da transição que, sem descontinuidade, o princípio espiritual efetua da animalidade para a nossa espécie, em que se torna propriamente espírito. 

            Equivocadamente, dizemos, porque, não no perispírito, que é o revestimento natural e permanente do espírito, mas no envoltório astral que, esse sim, constitui o duplo etéreo, o modelo primordial, inseparável de todas as criações materiais - distinção em que insistiremos e que já no capitulo IV procuramos justificar- é que reside o desenho ideal do ser, nada repugnando admitir que aquela "abreviada história da raça" por um misterioso processo peculiar à divina Sapiência tenha sido gravada em caracteres microscópicos, de uns a outros transmitidos, na imensa cadeia dos aludidos corpos etéreos, de cujas derradeiras linhas estruturais o corpo físico não é mais que a condensação, ou fiel reprodução, em nosso plano. Associando-se, ou melhor, se adaptando sucessivamente a cada uma dessas formas astrais, conforme vai de vida em vida peregrinando e evoluindo o princípio espiritual, delas sem dúvida conservará temporariamente as impressões o perispírito, pelo menos no intervalo, ou nos, primeiros tempos do intervalo de uma a outra existência, tendendo, contudo, a eliminá-las para adquirir a forma típica de que falamos (1), compatível com o modo de ser peculiar ao espírito (ou ao princípio espiritual, se nos reportamos à fase anterior a essa condição) e à constituição dos planos superiores do invisível.

            (1) Vide cap. IV, pag. 85.

            A não se admitir essa coexistência do plano astral com o mundo físico, o primeiro constituindo o imenso reservatório de todas as formas que neste vêm a ter a sua objetivação, como se poderá explicar a passagem, a transição do princípio espiritual de uma forma a outra mais complexa e aperfeiçoada como, por exemplo, do cão ao macaco -supondo que seja essa, ao menos por hipótese, a gradação evolutiva? - Foi o perispírito que se transformou e adquiriu, antes da encarnação, a forma do macaco? Mas não será preferível acreditar que, existindo esta no plano astral, no momento em que se objectivava,  para dar nascimento, na Terra, aos primeiros seres dessa espécie, a ela se adaptaram, com o perispírito, os princípios espirituais destinados a animá-los?

            De todo modo, a não ser que se atribua à matéria uma capacidade sui generis de iniciativa e de transformação, o que é evidente, para os que do visível buscam remontar ao invisível, é que um imenso trabalho preparatório se veio nesse plano efetuando e - porque não também acrescentar? - se efetua, sempre no sentido de suscitar na Terra, desde os seus primórdios, o aparecimento dos seres, dos mais rudimentares aos mais complexos, assim no que respeita às formas como à própria essência que as anima.

            É aí, nesse plano invisível, com efeito, que, tendo de passar de uma a outra forma, o ser espiritual demora o tempo necessário a ser iniciado nos misteres que em cada existência objetiva terá que realizar, consoante - já o assinalamos - as facilidades que lhe proporcione o veículo a que se vem adaptar. E é - no-lo diz a Revelação - sob a vigilância e direção dos espíritos prepostos a todas as manifestações da vida e a todas as ordens da criação que esse aprendizado se efetua, assim nos aparecendo o plano invisível como um vasto laboratório de energias e um infinito campo de atividade de que o nosso mundo físico não é mais que o desdobramento, o ou o reflexo.  

            Não é tudo ainda. Se do protozoário ao último elo ascensional na escala zoológica, não é difícil conceber que o princípio espiritual caminhou lenta e gradualmente em seu processo de individualização e aprendizado; para se poder explicar a rapidez dos progressos introduzidos no meio, terrestre desde o aparecimento da nossa espécie, forçoso é admitir - e aqui retomamos o fio de nossa argumentação interrompida - que o princípio espiritual sofreu, no plano invisível, transposto o elo superior da animalidade uma transformação que lhe conferiu as nobres e inconfundíveis prerrogativas de espírito, propriamente dito, livre, consciente e responsável .

            Basta, efetivamente, considerarmos que, enquanto nos 100 milhões de anos transcorridos da formação do nosso globo, 52 dos quais correspondentes à época primária. 34 à secundária e 14 finalmente à terciária, a vida propriamente intelectual se manteve estacionária, não consistindo o progresso dos seres senão, de um lado, no aperfeiçoamento das formas - essas mesmas não devidas a sua iniciativa, mas ao Poder organizador que as elabora e distribui - e do outro, nas manifestações da Inteligência exclusivamente aplicada  à satisfação das necessidades naturais, sob o duplo estímulo da lei de conservação da espécie e do indivíduo, enquanto essa lentidão - dizemos - se observava no progresso dos seres, foram suficientes cem mil anos, ou seja a milésima parte daquele prazo para que, com o aparecimento do homem, fosse profundamente revolucionada a face do planeta e começasse a ter curso e propriedade de objeto a palavra civilização, rudimentar, sem dúvida, ao começo, mas cada vez mais brilhante e acentuada; basta considerarmos tudo isso - repetimos - para compreender que algo se teria passado no plano espiritual que justifique tais inusitados e rápidos progressos.

            Assim, do homem primitivo e do seu tempo, isto é, da idade da pedra à do bronze e à da indústria dos metais, do troglodita hirsuto ao europeu civilizado e das habitações lacustres aos suntuosos monumentos e às maravilhas da arte e da ciência com que o novo hóspede da terra vem aformoseando o seu habitat, tão longe ainda, todavia - assinalemos de passagem - do empório de bem-estar social e de verdadeira felicidade, em que os progressos morais que lhe falta realizar o hão de converter, que intensas, consideráveis e maravilhosas transformações!

            E que bastou para isso? Que de quadrúmano se transformasse em bípede o último elo da animalidade? Teria sido assim tão decisiva a transição da forma, e um simples aumento de peso e de volume na massa encefálica seria capaz de produzir e motivar, com as qualidades de iniciativa própria, que nenhum outro animal revela possuir, os aprimorados dons de originalidade e de invenção, a capacidade de abstração e, por último, o sentimento adorativo, isto é, a faculdade de se elevar acima de si próprio e remontar a uma Causa oculta, que constitui, mais que quaisquer outros dons, o apanágio singular da nossa espécie e o seu  excelso título de dignificação? Incidiríamos assim no clássico erro dos materialistas?

            Não. Abramos antes o livro da Revelação e vejamos se a outra modalidade em que se bifurca o ensino dos espíritos, constituindo a variante a que páginas atrás nos referimos, repousa sobre melhores fundamentos, no que se refere à transformação do princípio ou gérmen espiritual em espírito, ou, por outros termos, à sua integração na plenitude da consciência, na capacidade, portanto, de introspecção e, assim, no conhecimento de si mesmo, de suas faculdades e do valor e consequências dos seus atos.


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