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domingo, 3 de junho de 2012

31b - "Doutrina e Prática do Espiritismo"




                                                                       31b           ***          

   

            O indivíduo, colocado em frente de um objeto, estende a mão para o apanhar. Por que a estende? Simplesmente por que quer? - Não; porque sem dúvida necessita do objeto, e é essa necessidade o motivo do gesto. Mas - diriam os defensores simplistas daquela teoria – ele pode deixar de o fazer, e nesse caso prova que é livre. - Certamente o pode, mas com que fim? Por que repentinamente lhe ocorrera que já não precisa do objeto? Para provar, com a abstenção do gesto, que é livre de o fazer ou não? No primeiro caso há um motivo: a ausência de necessidade de apanhar o objeto, e é por isso, e não unicamente porque quer, que não estende a mão e o não apanha; no segundo há ainda um motivo: a intenção de demonstrar que é livre, esquivando-se a fazer o gesto.

            Poder-se-iam multiplicar fastidiosa e indefinidamente exemplos semelhantes, e sempre se haveria de reconhecer a necessidade de encontrar uma causa ou razão determinante dos atos individuais, para cuja explicação não basta apelar para a vontade como fator Independente.

            Mas é precisamente isso - hão de alegar os familiares no assunto - o que se propõe demonstrar a teoria do determinismo.

            Sem dúvida, e se por nossa parte a não adotamos inteiramente, antes julgamos indispensável, com excelentes motivos, lhe opor algumas restrições, é porque os seus defensores, abstendo-se, do mesmo modo que os extremados partidários do livre arbítrio ilimitado, de aprofundar certos aspetos da psicologia individual, e por outro lado aplicando com excessivo rigor a lei de causalidade universal às ações humanas, oscilantes por sua natureza, vão ao extremo de lhes recusar de um modo absoluto a liberdade.

            É assim que, partindo de premissas verdadeiras, de simples evidência como estas: tudo o que existe no mundo tem uma razão determinante e se produz infalivelmente, dadas certas condições, deixando de se produzir no caso contrário; e no domínio da psicologia, em virtude da aplicação da lei de razão suficientes aos atos individuais, assegurando que no homem as resoluções se originam de motivos determinados, como em a natureza os fatos resultam de determinadas causas, chegam todavia a conclusões não diremos absurdas, pois que ao contrário se afiguram, nos termos em que é colocado o raciocínio, rigorosamente lógicas, às quais, porém, se podem contrapor vantajosos argumentos baseados na observação.

            Dizem, por exemplo - e é de resto em idêntico sentido que acabamos de argumentar: - "não basta que um ato tenha sua causa na vontade que o produz: precisa ter uma razão que explique a ação dessa mesma causa. Esta -  acrescentam - é o motivo e, a não ser que se admita a intervenção do acaso, um ato é sempre determinado por motivos. E concluem: "ora, os motivos não são livres, logo não o é também o ato."

            Mas o juiz dos motivos -cumpre fazer esta importante distinção - o é. Esse juiz é o próprio indivíduo - o espírito - que, segundo a definição que do livre arbítrio formulamos, examina em consciência os motivos, pondera as solicitações de várias ordens ou de oposta natureza, considera as sugestões que lhe ocorrem e afinal se decide por aquela que mais lhe agrada ou melhor se lhe afigura.

            Para essa escolha certamente concorrerá antes de tudo o primeiro dos fatores que indicávamos há pouco, isto é, o grau de capacidade moral atingido pelo indivíduo, podendo ainda concorrer alguma senão todas as outras influências indicadas, o que apenas servirá para atenuar a responsabilidade decorrente da resolução tomada. Essa responsabilidade, todavia, permanece, tanto mais irrefragável quão mais esclarecido e mais apto, portanto, o indivíduo  para aquilatar as consequências de seus atos. Se se enganou na escolha, - engano assaz comum para a fragilidade e ignorância humanas - se a deliberação tomada redunda em prejuízo, com que não contava, para os seus verdadeiros interesses morais, será disso advertido pelas desagradáveis consequências que experimentará do desacerto, e essa advertência lhe servirá para não reincidir no mesmo
erro.

            Ora, acontece frequentemente - e vem a ser essa uma demonstração positiva da função do livre arbítrio - que, longe de se contentar, para os benefícios da emenda, com uma dolorosa experiência, o indivíduo recalcitra, perseverando no mesmo proceder e assim provocando cada vez mais vivas reações da lei moral. Como é livre de afrontá-la, obstinando-se no erro, poderá ele reincidir tantas vezes quantas lhe agrade experimentar a sua própria resistência volitiva; mas chega sempre um momento em que, à força de multiplicar contra si as reações da lei - tanto vale dizer os sofrimentos - termina por compreender que há mais vantagem em lhe obedecer que em resistir. E por experiência pessoal será induzido a mudar de proceder.

            Dir-se-á que neste caso houve coerção? Mas não é por natureza coerciva a ação de toda lei, sabido que, na esfera moral, como no universo físico, o seu objeto é sempre a manutenção da ordem e da harmonia? Ou pretenderiam os impugnadores do livre arbítrio que, para se admitir a sua existência, devera ser ele absoluto? - Irrisória pretensão, que estaria em desacordo com a relatividade de todos os atributos e faculdades humanas.

            O homem não pode ter a liberdade absoluta, quando nem a sabedoria nem a bondade possui ou lhe será dado possuir em semelhante grau. Em todas as coisas há de padecer limitação. Que se contente, pois, com um livre arbítrio condicionado ao aperfeiçoamento que atingiu e cujo exercício, ao demais, sob a vigilância embora da lei divina destinada a lhe conter as demasias, se patenteia na própria exemplificação que acabamos de esboçar.

            E não teorizamos no ar - cumpre advertir - O Espiritismo, pela singular vantagem que apresenta de aproximar as duas humanidades, visível e invisível, com o fim de mutuamente se instruírem, é que faculta os meios de comprovar-se pelo testemunho de grande número de desencarnados a realidade do livre exercício da vontade nas obstinações do mal, até que os violentos sofrimentos por este provocados vêm afinal a induzir os seus autores a empregar com acerto a liberdade.

            Melhor, porém, que com testemunhos dificilmente verificáveis  para a maioria dos que por este assunto se interessem, atentas às obscuridades e incertezas em que ainda se envolvem as nossas relações com o invisível, o livre arbítrio se demonstra com os fatos da vida e as operações da consciência humana.

            Os que o negam, preferindo-lhe, o determinismo puro, invocam entre outras razões a possibilidade de prever os atos da vontade, fundando-se em que o conhecimento, medíocre que seja, do caráter de um homem e das circunstâncias em que se encontra basta para julgarmos que deliberação tomará ele, donde pretendem concluir que a ação em tal caso não é livre.

            Admissível em teoria, esse argumento há de, entretanto, ser na prática inúmeras vezes desmentido. Sem desconhecer quanto é difícil, pela extrema sutileza do assunto, manejar dados positivos para a demonstração da nossa tese, lembraremos contudo que, se em relação a peregrinas, e, por isso mesmo, raras personalidades, cuja elevação moral se tenha notoriamente revelado, é possível a indicada previsão da atitude que hão de, em dadas circunstâncias, assumir, para a generalidade dos humanos, sujeitos a flutuações pela própria instabilidade do caráter (1), semelhante previsão será mais vezes frustrante que acertada.

            (1) Um caráter firme e, por assim dizer, uniforme, é no homem qualidade extremamente rara.

            Se se trata, por exemplo, de um santo, isto é, de um espirito que, tendo deixado para trás repetidas, proveitosas e meritórias existências, se nos apresenta no apogeu de sólidas virtudes, que não são mais - acentuemos de passagem - que o fruto de seu perseverante e voluntário labor no caminho da perfeição, é possível sem duvida prever com segurança que, assediado mesmo de violentas provocações - para nós não demorarmos em analisar vulgares conjunturas, como a possibilidade de incorrer em desonestidade, na maledicência, na calúnia e semelhantes - não as repelirá no mesmo tom, antes lhes há de opor a mansidão, a firmeza, a inabalável serenidade em que se habituou a refugiar-se como numa atmosfera incorruptível .

            Com a mesma segurança - por mais que deva ser admitida a proximidade dos extremos - já se não poderão formular vaticínios a cerca de um bandido. Exemplos narra a história de rasgos generosos inopinadamente praticados por contumazes celerados, rasgos que desnorteariam as mais sagazes previsões e são outros tantos documentos da convergência, no homem, dessas duas forças que alternadamente nele preponderam - a do bem e a do mal- por cada uma das quais se decide o livre arbítrio, consoante as razões a que se inclina.

            É por isso que - dizemos - na generalidade dos humanos, considerados nos variadíssimos matizes de suas virtudes e imperfeições de toda ordem, sujeitos a constantes oscilações de consciência e de procedimento, se por um lado encontramos frequentemente reduzida a um mínimo apreciável a função do livre arbítrio, por outro é aí também que melhor poderemos reconhecer a sua intervenção



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