31b ***
O indivíduo, colocado em frente de um
objeto, estende a mão para o apanhar. Por que a estende? Simplesmente por que
quer? - Não; porque sem dúvida necessita do objeto, e é essa necessidade o
motivo do gesto.
Mas - diriam os defensores simplistas daquela teoria – ele pode deixar de o
fazer, e nesse caso prova que é
livre. - Certamente o pode, mas com que fim? Por que repentinamente lhe ocorrera
que já não precisa do objeto? Para provar, com a abstenção do gesto, que é
livre de o fazer ou não? No primeiro caso há um motivo: a ausência de
necessidade de apanhar o objeto, e é por isso, e não unicamente porque quer,
que não estende a mão e o não apanha; no segundo há ainda um motivo: a intenção
de demonstrar que é livre, esquivando-se a fazer o gesto.
Poder-se-iam multiplicar fastidiosa
e indefinidamente exemplos semelhantes, e sempre se haveria de reconhecer a
necessidade de encontrar uma causa ou razão determinante dos atos individuais,
para cuja explicação não basta apelar para a vontade como fator Independente.
Mas é precisamente isso - hão de alegar
os familiares no assunto - o que se propõe demonstrar a teoria do determinismo.
Sem dúvida, e se por nossa parte a
não adotamos inteiramente, antes julgamos indispensável, com excelentes motivos,
lhe opor algumas restrições, é porque os seus defensores, abstendo-se, do mesmo
modo que os extremados partidários do livre arbítrio ilimitado, de aprofundar
certos aspetos da psicologia individual, e por outro lado aplicando com
excessivo rigor a lei de causalidade universal às ações humanas, oscilantes por
sua natureza, vão ao extremo de lhes recusar de um modo absoluto a liberdade.
É assim que, partindo de premissas
verdadeiras, de simples evidência como estas: tudo o que existe no mundo tem
uma razão determinante e se produz infalivelmente, dadas certas condições,
deixando de se produzir no caso contrário; e no domínio da psicologia, em
virtude da aplicação da lei de razão suficientes aos atos individuais, assegurando
que no homem as resoluções se originam de motivos determinados, como em a
natureza os fatos resultam de determinadas causas, chegam todavia a conclusões não
diremos absurdas, pois que ao contrário se afiguram, nos termos em que é colocado
o raciocínio, rigorosamente lógicas, às quais, porém, se podem contrapor vantajosos
argumentos baseados na observação.
Dizem, por exemplo - e é de resto em
idêntico sentido que acabamos de argumentar: - "não basta que um ato tenha
sua causa na vontade que o produz: precisa ter uma razão que explique a ação dessa
mesma causa. Esta - acrescentam - é o
motivo e, a não ser que se admita a intervenção do acaso, um ato é sempre
determinado por motivos. E concluem: "ora, os motivos não são livres,
logo não o é também o ato."
Mas o juiz dos motivos -cumpre fazer
esta importante distinção - o é. Esse juiz é o próprio indivíduo - o espírito -
que, segundo a definição que do livre arbítrio formulamos, examina em consciência
os motivos, pondera as solicitações de várias ordens ou de oposta natureza,
considera as sugestões que lhe ocorrem e afinal se decide por aquela que mais
lhe agrada ou melhor se lhe afigura.
Para essa escolha certamente
concorrerá antes de tudo o primeiro dos fatores que indicávamos há pouco, isto
é, o grau de capacidade moral atingido pelo indivíduo, podendo ainda concorrer
alguma senão todas as outras influências indicadas, o que apenas servirá para atenuar
a responsabilidade decorrente da resolução tomada. Essa responsabilidade,
todavia, permanece, tanto mais irrefragável quão mais esclarecido e mais apto,
portanto, o indivíduo para aquilatar as
consequências de seus atos. Se se enganou na escolha, - engano assaz comum para
a fragilidade e ignorância humanas - se a deliberação tomada redunda em
prejuízo, com que não contava, para os seus verdadeiros interesses morais, será
disso advertido pelas desagradáveis consequências que experimentará do desacerto,
e essa advertência lhe servirá para não reincidir no mesmo
erro.
Ora, acontece frequentemente - e vem
a ser essa uma demonstração positiva da função do livre arbítrio - que, longe
de se contentar, para os benefícios da emenda, com uma dolorosa experiência, o
indivíduo recalcitra, perseverando no mesmo proceder e assim provocando cada
vez mais vivas reações da lei moral. Como é livre de afrontá-la, obstinando-se
no erro, poderá ele reincidir tantas vezes quantas lhe agrade experimentar a
sua própria resistência volitiva; mas chega sempre um momento em que, à força
de multiplicar contra si as reações da lei - tanto vale dizer os sofrimentos -
termina por compreender que há mais vantagem em lhe obedecer que em resistir. E
por experiência pessoal será induzido a mudar de proceder.
Dir-se-á que neste caso houve
coerção? Mas não é por natureza coerciva a ação de toda lei, sabido que, na esfera
moral, como no universo físico, o seu objeto é sempre a manutenção da ordem e
da harmonia? Ou pretenderiam os impugnadores do livre arbítrio que, para se
admitir a sua existência, devera ser ele absoluto? - Irrisória pretensão, que
estaria em desacordo com a relatividade de todos os atributos e faculdades
humanas.
O homem não pode ter a liberdade absoluta,
quando nem a sabedoria nem a bondade possui ou lhe será dado possuir em semelhante
grau. Em todas as coisas há de padecer limitação. Que se contente, pois, com um
livre arbítrio condicionado ao aperfeiçoamento que atingiu e cujo exercício, ao
demais, sob a vigilância embora da lei divina destinada a lhe conter as
demasias, se patenteia na própria exemplificação
que acabamos de esboçar.
E não teorizamos no ar - cumpre
advertir - O Espiritismo, pela singular vantagem que apresenta de aproximar as
duas humanidades, visível e invisível, com o fim de mutuamente se instruírem, é
que faculta os meios de comprovar-se pelo testemunho de grande número de desencarnados
a realidade do livre exercício da vontade nas obstinações do mal, até que os
violentos sofrimentos por este provocados vêm afinal a induzir os seus autores
a empregar com acerto a liberdade.
Melhor, porém, que com testemunhos
dificilmente verificáveis para a maioria
dos que por este assunto se interessem, atentas às obscuridades e incertezas em
que ainda se envolvem as nossas relações com o invisível, o livre arbítrio se
demonstra com os fatos da vida e as operações da consciência humana.
Os que o negam, preferindo-lhe, o
determinismo puro, invocam entre outras razões a possibilidade de prever os atos
da vontade, fundando-se em que o conhecimento, medíocre que seja, do caráter de
um homem e das circunstâncias em que se encontra basta para julgarmos que deliberação
tomará ele, donde pretendem concluir que a ação em tal caso não é livre.
Admissível em teoria, esse argumento
há de, entretanto, ser na prática inúmeras vezes desmentido. Sem desconhecer
quanto é difícil, pela extrema sutileza do assunto, manejar dados positivos para
a demonstração da nossa tese, lembraremos contudo que, se em relação a peregrinas,
e, por isso mesmo, raras personalidades, cuja elevação moral se tenha
notoriamente revelado, é possível a indicada previsão da atitude que hão de, em
dadas circunstâncias, assumir, para a generalidade dos humanos, sujeitos a flutuações
pela própria instabilidade do caráter (1), semelhante previsão será mais vezes
frustrante que acertada.
(1) Um caráter firme e, por assim dizer,
uniforme, é no homem qualidade extremamente rara.
Se se trata, por exemplo, de um santo,
isto é, de um espirito que, tendo deixado para trás repetidas, proveitosas e
meritórias existências, se nos apresenta no apogeu de sólidas virtudes, que não
são mais - acentuemos de passagem - que o fruto de seu perseverante e voluntário
labor no caminho da perfeição, é possível sem duvida prever com segurança que,
assediado mesmo de violentas provocações - para nós não demorarmos em analisar
vulgares conjunturas, como a possibilidade de incorrer em desonestidade, na
maledicência, na calúnia e semelhantes - não as repelirá no mesmo tom, antes lhes
há de opor a mansidão, a firmeza,
a inabalável serenidade em que se habituou a refugiar-se como numa atmosfera
incorruptível .
Com a mesma segurança - por mais que
deva ser admitida a proximidade dos extremos - já se não poderão formular vaticínios
a cerca de um bandido. Exemplos narra a história de rasgos generosos inopinadamente
praticados por contumazes celerados, rasgos que desnorteariam as mais sagazes
previsões e são outros tantos documentos da convergência, no homem, dessas duas
forças que alternadamente nele preponderam - a do bem e a do mal- por cada uma
das quais se decide o livre arbítrio, consoante as razões a que se inclina.
É por isso que - dizemos - na
generalidade dos humanos, considerados nos variadíssimos matizes de suas virtudes
e imperfeições de toda ordem, sujeitos a constantes oscilações de consciência e
de procedimento, se por um lado encontramos frequentemente reduzida a um mínimo
apreciável a função do livre arbítrio, por outro é aí também que melhor
poderemos reconhecer a sua intervenção
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