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É reduzida ao mínimo, no homem, a função
do livre arbítrio, tal como a entendemos e é, de resto, a única racionalmente
admissível e praticamente verificável pela observação, porque de uma análise,
por pouco demorada que seja, das ações individuais, a certeza que resulta é que
o homem, a não ser em graves emergências e isso mesmo conforme os seus hábitos
de ponderação, geralmente procede por impulso irrefletido, meramente examinando
os motivos, para se decidir pelo melhor. E é essa mesma irreflexão habitual que
à primeira vista parece dar razão aos partidários do determinismo, por assim
dizer, automatista.
Porque, na ignorância em que vive de suas
magníficas energias latentes e da capacidade de as submeter a uma fecunda e
rigorosa disciplina, assim abdique o homem quase sempre a sua liberdade moral, ou
livre arbítrio, não é lícito, entretanto, concluir pela inexistência deste. O
que se pode razoavelmente afirmar, porque é incontestável, é que, cedendo, sem os
examinar, à pressão dos vários fatores que nos seus atos intervêm e aos quais
fizemos alusão, renuncia voluntariamente o homem, em muito maior escala do que o
devera, ao exercício daquele preciosíssimo atributo.
Esses fatores - já o dissemos - começando
pela capacidade moral, que o é preponderante, para abranger em seguida a influência
do organismo e as sugestões do meio e culminar na ação dos seres invisíveis,
bem mais frequente e generalizada do que se o poderia suspeitar, atuam sem dúvida
por forma imperiosa nos atos individuais, restringindo a função do livre arbítrio,
mas - insistiremos - não logram suprimi-la. Exemplos não faltam, com efeito, de
indivíduos que, sobrepujando essas, para outros mais fracos, irresistíveis
influências, dão testemunho da independência, relativa que seja - e é quanto
basta para a demonstração da nossa tese - com que se afirmam capazes de
realizar os atos da vontade.
Examinemos separadamente esses fatores,
para a apreciação do primeiro dos quais - a capacidade moral - nos fornece o
Espiritismo, com a lei da pluralidade de existências, um valioso subsídio, de
que se têm mostrado desamparados os sistemas filosóficos empenhados na defesa como
na impugnação do livre arbítrio.
Que vem a ser a capacidade moral, senão o
expoente das aquisições dessa natureza realizadas pelo espirito no curso de
suas peregrinações terrestres? Lecionado pelas experiências penosamente
adquiridas, o indivíduo chega a um estado de consciência que o aconselha a
proceder sempre de um modo que não de outro. Tomemos, para objetivar o
raciocínio, uma qualidade vulgar: a honradez. O homem honrado, qualquer que
seja, de um lado, o seu estado de pobreza, e, do outro, a importância dos
valores confiados à
sua guarda, jamais se apossará do que lhe não pertence. Poderá, tais sejam os
prementes reclamos da necessidade, ser assaltado pela tentação de o fazer, mas
há de sempre repelir com energia o desonroso pensamento.
Dirão os deterministas que o sentimento de
honradez é em tal caso o motivo determinante do procedimento? - Não há dúvida; mas
esse sentimento não é uma força estranha imposta ao indivíduo, senão um estado
da alma adquirido mediante esforços pessoais através de proveitosas existências.
Objetarão que mesmo assim ele não é livre,
uma vez que obedece a uma tendência fatal, embora nobre, da sua natureza, não
gozando por conseguinte da faculdade de optar por um procedimento oposto?
Mas essa faculdade existe, e um só
exemplo, que nos ocorre, entre muitos que poderiam ser invocados, bastará para
demonstrar, com a variação do proceder de um homem honrado, em sentido contrário
às normas da honradez, a função do livre arbítrio, rigorosamente como o
definimos, ao mesmo tempo que servirá de advertência contra os exageros a que pode
conduzir o fanatismo, sempre funesto em qualquer de seus aspectos,
Reportamo-nos a um fato do domínio público,
ocorrido em Paris, nos primeiros tempos da propaganda espírita . O tesoureiro
de um estabelecimento bancário daquela capital - se nos não atraiçoa a memória
- convertido a nossa doutrina, a tal ponto se penetrou do sentimento de compaixão
pelos necessitados e do indeclinável dever em que se acreditou de os socorrer
que, não se limitando a distribuir por eles os seus recursos pessoais, como de
resto lhe era unicamente lícito, de acordo com o bom senso e com os mesmos
princípios da moral que acabara de adotar, foi ao extremo de lançar mão, para
aquele fim, dos recursos a sua guarda confiados, vindo, em consequência, a ser
processado criminalmente e assim comprometendo a
reputação
de honradez que levara a vida inteira legitimamente a adquirir.
Que se passara naquela alma? Evidentemente,
em face das misérias, das necessidades dos seus semelhantes, de um lado, e do
outro ponderando as suas responsabilidades de depositário de alheios bens,
entendeu - é verdade que por um transviado critério - que era preferível atraiçoar
estas a ser indiferente àquelas. Escolheu assim em sua consciência os motivos
que mais valiosos se lhe afiguravam, mas ninguém dirá que procedeu por coação,
nitidamente definida que aí vemos a intervenção do livre arbítrio,
pois que lhe seria lícito optar pelos ditames da honradez, em que, por uma tendência
natural, timbrara até então.
Menos clara, ou consideravelmente
reduzida, se apresentará essa intervenção, se, prosseguindo na apreciação dos
fatores que nas ações humanas intervém, nos demorarmos a considerar, não já em
casos particulares, senão na generalidade, a influência do organismo, poderosa
pela soma de exigências com que assedia o espírito, restringindo a expansão de
suas mais nobres faculdades. Mas ainda aí cumpre observar que, se o homem é em
geral escravo de seus apetites, exagerados pelo abuso, deve-o à indisciplina
a que abandona a sua natureza, Porque é sempre possível a todo aquele que se
propõe deliberadamente subjugar os instintos inferiores, reduzi-los ao limite
extremo que comporta a estrita satisfação das necessidades naturais. E neste
caso é a vontade esclarecida que se afirma, associada sempre ao livre arbítrio.
Sem precisarmos recorrer ao testemunho que
nos oferecem as crônicas religiosas do passado, relativamente aos grandes
vultos de ascetas que, transfigurados aos estímulos da fé, lograram suplantar os
hábitos de uma dissoluta mocidade, substituindo-os pelos rigores de uma austera
disciplina, vamos encontrar na história contemporânea das conversões ao
Espiritismo os mais expressivos exemplos do que pode, sobre as solicitações dos
apetites e as exigências do organismo, a força da vontade ao serviço de um
ideal de regeneração.
Qual é de fato o espírita que, penetrado
da magnitude dessa investidura de discípulo do Cristo, - pois que outra coisa
não representa, pela adoção da nova crença, o compromisso para ele de se
converter à lei cristã - qual é o espirita, dizemos, verdadeiramente digno deste
nome, que desde o momento de sua iniciação não entra a reformar os hábitos da
sua vida e não forceja dia a dia por se tornar sempre mais puro e mais fiel aos
ensinamentos do Evangelho? E que é essa repulsa aos desregramentos dos
sentidos, esse combate às imperfeições de toda ordem, num anseio de perfeição
moral, pela cópia do Divino Modelo,
senão a afirmação do livre arbítrio, que ora, ao menor descuido, sucumbe às
reincidências nos defeitos do passado, sempre vivazes enquanto aqui
permanecemos, ora pompeia vitorioso a cada vigilante esforço da vontade por
subjugar os maus instintos, sobretudo se pela prece invoca o crente a proteção
do Alto para resistir às tentações?
As criaturas vulgares ignoram sem dúvida
essas pelejas interiores travadas no campo silencioso da consciência, sem
outras testemunhas mais que o próprio espírito e, porventura, aqueles que do
invisível o observam, como desconhecem por igual o júbilo e a tristeza
resultantes de tais secretas vitórias e derrotas. Familiares, entretanto, aos
que seriamente se preocupam do progresso espiritual, essas mesmas alternativas,
que constituem demonstrações irrecusáveis, posto que intermitentes, da
intervenção do livre
arbítrio, não são de todo estranhas ao comum dos homens. A única diferença
consiste em que estes, para justificar os seus desacertos, coonestar os seus eclipses
morais, as violências e abusos em que não raro incidem, se desculpam com o “temperamento,” quando não
buscam no que lisonjeiramente chamam o brio, o amor próprio, a legitimação dos atos
condenáveis, ao passo que o crente, particularmente o espírita sabe, não
somente que é sempre possível, cultivando as energias da alma, resistir às solicitações
do mal em qualquer de suas formas, como lhe não é lícito sobretudo incorrer em faltas
graves. Por isso, quando falamos em alternativas no proceder dos adeptos do
Espiritismo, não se deve entender que possam eles atentar contra princípios de
moral comuns ou contra os bons costumes, senão que, iniciados na recomendação
das mais altas virtudes evangélicas, tais como a humildade, o amor ao próximo,
o desprendimento interior dos bens materiais, a simplicidade, a paciência, a
caridade, em suas mais sublimadas expressões, e finalmente o espirito de sacrifício
e de renúncia, toda vez que abertamente infringem qualquer desses preceitos,
consideram-se caídos moralmente, do mesmo modo que o menor abuso na satisfação
das necessidades naturais, suscetíveis sempre de tanto maior limitação quão mais
se eleva o crente na espiritualização de sua natureza, reveste aos seus olhos a
significação de idêntica falência.
No que se refere à retidão de consciência,
à pureza de costumes, à abstenção de vícios são esses os primeiros, elementares
predicados em que se firma todo aquele que no Espiritismo se inicia, o ponto de
partida de sua completa regeneração, que melhor diríamos transfiguração
espiritual. Exemplos? Mas seria preciso recordar cada um dos que, foragidos dos
arrastamentos, das misérias e tentações do mundo, na iminência de perder-se ou
desertar pelo alçapão do suicídio, vieram ter às regiões iluminadas da doutrina
espirita, ao contato de cujos ensinamentos sentiram-se renascer para uma vida
nova.
Dentre tantos exemplos, todavia, seja-nos
lícito escolher um só para documentar esta asserção, o qual, ao mesmo tempo que
servirá para demonstrar a função do livre arbítrio, apoiado em nobilitantes
estímulos, valerá por uma oportuna e salutar antítese do caso que: inda há pouco
mencionamos.
Era um moço inteligente esse de quem nos recordamos
oriundo de uma das mais conceituadas famílias desta capital, formado em
direito, mas que, não obstante a esmerada educação que recebera, não lograva subtrair-se
ao gosto das bebidas alcoólicas, ele que abusava, a tal ponto que, na própria
noite de seu casamento, com grande escândalo e desgosto para todos, tanto se
excedeu que terminou por ficar completamente embriagado.
O caso se repetiu frequentes vezes durante
os primeiros anos de vida conjugal, dando lugar a desatinos que eram o tormento
do infortunado lar, até que um dia, ao transviado moço veio o conhecimento do
Espiritismo e com ele uma tão profunda mudança de hábitos que, não somente ele
se tornou o modelo dos esposos e dos pais, de uma irrepreensível solidariedade
e brandura de sentimentos, vindo a conquistar
honrosa posição na carreira jurídica, como se fez um dos mais esforçados
propagandistas da doutrina a que devera a salvação moral, nesse posto desencarnando
serenamente há poucos anos.
Como se vê, o que não lograram preparo científico,
educação, naturalmente conselhos e exemplos, no sentido de coibir a desregrada
tendência viciosa, bastou o conhecimento dos elevados ideais do Espiritismo
para ajudar a suplantar. Mas esse resultado não teria sido a atingido, se para
o alcançar não interviesse uma vontade esclarecida e resoluta. E não será essa
precisamente a função do livre arbítrio?
Desde que adquiriu o conhecimento da doutrina
e com ele o das responsabilidades espirituais, o aludido confrade, compreendeu o
horror e as consequências de sua deplorável fraqueza e deliberou regenerar-se.
Ponderou de um lado o funesto prazer a cujas solicitações cedera até então, e
do outro o dever, que a todos indica o Espiritismo, de construir, por seus esforços
pessoais, na abstenção dos vícios e no cultivo das virtudes, o edifício de seu
próprio engrandecimento moral, e optou pelo dever.
Livremente? - Sem dúvida, pois que o livre
arbítrio - mais uma vez o lembraremos - consiste em ponderar motivos diferentes
e decidir pelo melhor, embora possa enganar-se muita vez a criatura e escolher
o mal, que lhe agrada, em vez do bem que não conhece. Mas nesse caso o remorso
- voz secreta da Providência na consciência humana - servirá de advertência.
Que significa esse vago ou profundo sentimento de pesar, conforme seja
ignorante ou esclarecido o indivíduo, que quer dizer o arrependimento, senão a
íntima certeza de que ele era livre de proceder diversamente?
É por essa voz interior da consciência,
ora espontânea, ora estimulada pelos preceitos da Moral que lhe seja dado
explicitamente conhecer, que vai sendo conduzido o espírito a fazer do livre arbítrio
um emprego cada vez mais refletido, assim para sobrepujar os desregrados
impulsos a que, particularmente na condição de encarnado, está sujeito, como
para lutar vitoriosamente contra a pressão, quando malévola, dos outros fatores
que inda nos resta analisar, a saber: a influência mesológica e as sugestões
dos seres invisíveis.
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