Religiões Irmanadas
Irmão
X
por Chico Xavier
Reformador
(FEB) Maio 1959
Comentávamos
a conveniência de se irmanarem as religiões, em favor da concórdia no mundo,
quando meu amigo Tertuliano da Cunha, desencarnado no Pará, falou entre
brejeiro e sentencioso:
-
Gente, é necessário pensar nisso com precaução. Ideia religiosa é degrau da
verdade e o discernimento varia de cabeça para cabeça. Exaltam vocês a
excelência de larga iniciativa, em que os múltiplos templos sejam convocados à
integração num plano único de atividade, entretanto, não será muito cedo para
semelhante cometimento?
Porque
a pergunta vagueasse no ar, o experiente sertanista piscou os olhos, sorriu
malicioso e aduziu:
-
Isso me faz lembrar curiosa fábula que me foi relatada por velho índio, numa de
minhas excursões no Xingu.
E
contou:
-
Reza uma lenda amazônica que, certa feita, a onça, muito bem posta, surgiu na
selva, imensamente transformada. Ela, que estimava a astúcia e a violência, nas
correrias contra animais indefesos, escondia as garras tintas de sangue e dizia
acalentar o propósito de reunir todos os bichos no caminho da paz. Declarava haver
entendido, enfim, que Deus é o Pai de todas as criaturas e que seria
aconselhável que todas o adorassem num só verbo de amor. Confessava os próprios
erros. Reconhecia haver abusado da inteligência e da força. Despertara o terror
e a desconfiança de todos os companheiros, quando era seu justo desejo
granjear-lhes a simpatia e a veneração. Convertera-se, porém, a princípios mais elevados. Queria reverenciar o Supremo
Senhor, que acendera o Sol, distribuíra a água e criara o arvoredo, animada de intenções
diferentes. Para isso, convidava os irmãos à unidade. Poderiam, agora, viver
todos em perpétua harmonia, porquanto, arrependida dos crimes que cometera,
aspirava somente a prestigiar a fé única. Renunciaria ao programa de guerra e
dominação. Não mais perseguiria ou injuriaria a quem quer que fosse. Pretendia
simplesmente estabelecer na floresta uma nova ordem, que a todos levasse a se
prosternarem perante Deus, honrando a fraternidade. Solenizando o
acontecimento, congraçar-se-ia a família do labirinto verde em grande furna,
para manifestações de louvor à Providência Divina. Macacos e cervos, lebres e
pacas, tucanos e garças, patos e rãs, que oravam, em liberdade, a seu modo, escutaram o
nobre apelo, mas duvidaram da sinceridade de tão alto discurso. Todavia,
apareceram serpentes e raposas, aranhas e abutres, amigos incondicionais do
ardiloso felídeo, aderindo-lhe ao brilhante projeto. E tamanhos foram os
argumentos, que a bicharada mais humilde se comoveu, assentando, por fim, que
era justo aceitar-se a proposta feita em nome do Pai Altíssimo. Marcado o dia
para a importante assembleia, todos se dirigiram para a loca escolhida,
repentinamente transfigurada em santuário de flores. Quando a cerimônia ia a
meio caminho, com as raposas servindo de locutoras para entreter os
ouvintes, as serpentes deitaram silvos estranhos sobre os crentes pacatos, as
aranhas teceram escura teia nos orifícios do antro, embaçando o ambiente, os
abutres entupiram a porta de saída, e a onça, cruel, avançou sobre as presas
desprevenidas, transformando a reunião em pavoroso repasto... E os bichos que
sobraram foram escravizados na sombra, para banquete oportuno...
Nosso
amigo fez longa pausa e ajuntou:
-
A união de todos os credos é meta divina para o divino futuro, mas, por enquanto,
a Terra ainda está fascinada pelo critério da maioria. Como vemos, é possível
trabalhar pela conciliação dos religiosos de todas as procedências, no entanto,
segundo anotamos, será preciso enfrentar a onça e os amigos da onça... Onde o
melhor caminho para a melhor solução?..
Sorrimos
todos, desapontados, mas não houve quem quisesse continuar o exame do assunto,
após a palavra do engraçado e judicioso comentarista.
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