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domingo, 17 de fevereiro de 2013

84. 'Doutrina e Prática do Espiritismo'



84

            Sem querer antecipar o que, na conformidade do plano aqui traçado, já pertence à segunda parte desta obra, recordaremos, todavia, que até ao aparecimento e atuação de Allan Kardec no domínio e como missionário do moderno espiritualismo, um divórcio profundo, largamente favorecido pelos trabalhos dos enciclopedistas do século  XVIII, se havia pronunciado entre as concepções religiosas, dogmaticamente impostas à revelia da razão, e as afirmações da ciência, que os testemunhos da experimentação, cada vez mais aperfeiçoada em seus instrumentos de pesquisa, não cessavam de prestigiar. De um lado as aspirações imortalistas e a tendência religiosa fundamental da natureza humana, constrangidas à fé sem provas, renunciando a toda indagação; do outro a ciência, por seus mais eminentes cultores, brandindo triunfalmente os seus métodos positivos, empenhada na implacável demolição do edifício abstrato das religiões.

            Foi a hora, crepuscular e angustiosa para quantos oscilavam entre a necessidade de crer e o imperativo desejo de saber do efêmero triunfo, posto que ruidoso e arrogante do materialismo. Só havia um meio de conciliar essas, na aparência, antagônicas tendências: era transportar para o domínio religioso, no que se refere pelo menos aos fundamentos em que devem repousar os ensinos dessa ordem, os métodos científicos de observação. Foi também então que, de intermitentes e dispersas que haviam sido em todos os tempos, as manifestações espíritas, obedecendo a uma determinação oculta, adquiriram um cunho de multiplicidade e constância que permitiu, não somente coligir numerosos e irrefutáveis testemunhos da sobrevivência do homem e da existência do universo espiritual, como dilatar para além das fronteiras do visível o conhecimento das forças invisíveis que operam em toda a natureza e constituem o substrato de suas infinitas manifestações.

            Estavam lançadas as bases da ciência espiritualista e traçado o rumo a que de então em diante forçoso seria obedecerem todos os que, libertos de preconceitos e dogmatismos, nenhuma ambição mais nobre e desinteressada nutrem que a de explorar, no expressivo dizer de Newton em seu leito de morte, "o oceano infinito da verdade." Nesse rumo se têm efetivamente, e com louvável perseverança, aventurado representantes dos mais prestigiosos da ciência, alguns de cujos testemunhos, quer a respeito dos fatos, quer como adesão aos ensinamentos da doutrina, já tivemos ocasião de mencionar (1).

            (1) Cap. III, págs. 65 a 70.

            Mas não é apenas como ciência, posto que seja inestimável o cabedal com que, nesse domínio da observação, vem enriquecer os conhecimentos humanos, pelo estudo dos fluidos e das forças naturais desconhecidas, que o Espiritismo se recomenda à meditação dos pensadores. Partindo da verificação dos fatos e da classificação dos fenômenos, precária seria a sua contribuição para a obra geral do progresso e da felicidade humana, se ali se detivesse, não se utilizando desses opulentos materiais senão para acrescentar um novo, magnífico embora e surpreendente, capitulo à física e à psicologia, em lugar de penetrar, como realmente o faz, e o temos visto até aqui na esfera das indagações filosóficas, desdobrando os
seus ensinamentos, pelo órgão das elevadas entidades do invisível, que são os verdadeiros autores da filosofia espírita, aos mais transcendentes problemas do universo, da vida e do destino dos seres. Ainda não é tudo.

            Ciência de observação e filosofia racionalista, mutilado ficaria ainda assim o Espiritismo, se a esses dois aspectos fundamentais se não viesse acrescentar, como radiosa culminância, não apenas o aspecto moral, que toda filosofia necessariamente inclui, mas o religioso, continuador que é - seja-nos lícito insistir - do Cristianismo em sua missão regeneradora, sem formalismos e exterioridades, na fase definitiva que é chamado a inaugurar no mundo.

            E de tal modo se integram no Espiritismo esses três aspectos - científico, filosófico e religioso - constituindo um todo indissolúvel, que não pode ser qualquer deles isoladamente abordado com proveito. Mesmo para os filhos do povo, para as inteligências incultas que, alvoroçadas, de preferência acodem ao anúncio do Evangelho, em cujas consoladoras promessas encontram o precioso estímulo de resignação e de esperança, indispensável para lhes aligeirar o fardo da existência, não deixa de representar o Espiritismo, tal como deve ser pregado nos círculos de iniciação, de que oportunamente nos ocuparemos, uma larga fonte de conhecimentos, por assim dizer, de ordem científica, nem de suas cogitações podem ser excluídos, pelo menos em seus rudimentos gerais expositivos, os problemas filosóficos relativos à existência de Deus e às leis morais que regem a complexa fenomenalidade desta natureza, e que a palavra do Evangelho confirma e sanciona.

            Tendo, pois, como base a observação dos fatos, particularmente no que se refere ao mundo supra sensível ou oculto, e ampliando as suas indagações à esfera da filosofia, em suas mais transcendentes generalizações, o Espiritismo vem a culminar, como supremo objetivo a que irresistivelmente se encaminha, no mais perfeito ideal religioso que pode ser oferecido aos homens e que se traduz na prática dos ensinamentos evangélicos, em suas fecundas aplicações morais e sociais.

            Essa classificação, todavia, - não será inoportuno observar - esse desdobramento do Espiritismo em três aspectos sucessivos, ou antes paralelos, unicamente estabelecido em relação ao estado mental contemporâneo e para estar em harmonia com os métodos de investigação adotados no Ocidente, pode e há de ser um dia reduzido a um único aspecto, quando, pelo cultivo da intuição, que é a faculdade peculiar do espírito, apenas latente no homem, e pelo simultâneo desenvolvimento do sentido psíquico, for possível, prescindindo-se do testemunho dos sentidos físicos, empreender a sondagem direta do mundo superior e invisível, a exemplo do que têm praticado, há séculos, os grandes iniciados do Oriente. Então o Espiritismo, que é a ciência do espírito, ou das coisas, divinas e espirituais, em cujo círculo de investigação se integra necessariamente a subalterna coexistência das coisas materiais e exteriores, conduzirá os seus adeptos pela senda, não apenas da crença, mas do Conhecimento, facultando a quantos reúnam as condições de pureza requeridas para esse alto descortino a penetração do que Emmanuel Kant denominava o "nomeno", isto é, o que se oculta por trás do "fenômeno" e é a sua causa eficiente.

            Até lá, e unicamente enquanto o homem não adquire ou, como o dizemos, não tem desenvolvida essa faculdade divina - a intuição - para o interior discernimento da Verdade, o Espiritismo comportará o tríplice aspecto que indicamos, importando contudo aos seus adeptos não se deter nas especulações, de certo modo acessórias, de qualquer dos dois primeiros mas encaminhar-se resolutamente ao seu objetivo capital, que é em última análise a conversão dos crentes em Discípulos, isto é, em homens espirituais, íntima e profundamente identificados com a pureza e as virtudes do Divino Mestre, a fim de poderem ser, no mundo, órgãos eficientes do seu pensamento e dos seus poderes santificadores.

            Se, entretanto, por outro lado observamos as modalidades que vem assinalando a marcha e desenvolvimento da Revelação espírita nos diferentes países a que meio século de ativa propaganda tem levado o seu anúncio, verificaremos que, de um modo geral, a consciência dos adeptos não parece haver ainda convenientemente despertado para essa esclarecida e - porque não dize-lo? - também definitiva orientação a que, no próprio interesse de sua exuberante frutificação, há de por fim obedecer. É assim que, por exemplo, nos grandes centros intelectuais da Europa, que ainda não passaram da fase inicial, as atenções se tem conservado, entre incrédulas e hesitantes, adstritas à observação dos fenômenos, e mesmo nos círculos dos crentes, regularmente organizados, as manifestações dos seres do invisível constituem o principal objetivo das reuniões, preocupação um pouco por toda parte generalizada, mesmo deste lado do Atlântico, sem que o estudo integral e minucioso da doutrina, particularmente do Evangelho, acompanhado de adequados exercícios para desenvolvimento do sentido espiritual, ocupe o preeminente lugar que lhe compete. A propaganda é feita por meio de conferências e discursos, e os frutos morais da doutrina, além das noções teóricas sumariamente colhidas na leitura, não são procurados mais que nas advertências resultantes das evocações dos espíritos, de várias categorias, que se manifestam.

            Na América do Norte, consoante o feitio original e a índole eminentemente prática dos seus habitantes, o trabalho de organização caminhou aceleradamente, desdobrando-se em mais de quatrocentas sociedades, de que é núcleo central a Associação Nacional dos Espiritualistas, contando-se por milhões o número dos aderentes ou simpáticos à causa; mas esse mesmo espírito pratico, essa vertiginosa atividade que em todas as coisas particulariza o americano, constituindo um embaraço para o silencioso amadurecimento das ideias, veio a redundar no grave inconveniente de imprimir ao Espiritismo o cunho de uma religião, que se não limita, como o conviria, à substancia dos ensinos doutrinários, mas assimilou das existentes o que representa o seu peso morto, como a instituição de cerimônias (batizados, casamentos, encomendações de defuntos), e a "ordenação de ministro” paralelamente à expedição de "certificados a médiuns, licenciados e curadores," para o exercício do respectivo ministério, sendo assim criada uma prematura hierarquia e uma, a nosso ver, inconveniente oficialização do culto, que, para ser corretivo eficaz às exteriores superfluidades das religiões positivas, devera se conservar puramente espiritual, singelo e íntimo, expresso apenas nas obras de amor ao próximo, que o são de adoração a Deus, tal como, para exemplificação a todos, o praticava o meigo Nazareno. Em meio dessa indecisão geral no sentido de estabelecer o definitivo consórcio entre o Espiritismo e o Evangelho, cujos ideais tem a Revelação espírita por supremo objetivo difundir, promovendo a cristianização do mundo, isto é, a conversão dos homens à lei de amor, ou de fraternidade universal, que da parte de Deus lhes trouxe o Cristo, em meio dessa indecisão - dizemos - nada de surpreender nos movimentos iniciais de uma doutrina, em pouco mais de cinquenta anos, posta em contato com os hábitos e tendências de povos de educação e índole diversas, há uma região do globo em que aquela orientação espírita-cristã parece haver encontrado o ambiente propício a expandir-se e produzir excelentes e sazonados frutos.

            Falamos do Brasil, deste querido e predestinado Brasil, tão negligentemente incompreendido em sua missão e em seus destinos históricos pela quase totalidade de seus dirigentes, e que, entretanto, um conjunto de circunstâncias características e providenciais está claramente indicando que tem um alto papel a desempenhar, assim no concerto geral da civilização, como particularmente na obra de renovação espiritualista que se está elaborando e em que lhe cumpre caminhar na dianteira.

            Deste modo nos exprimindo - será porventura necessário advertir? - não nos move nenhuma exclusiva e, até certo ponto, mesquinha preocupação regionalista, incompatível ao demais com a amplitude que ao conceito de pátria imprime o Espiritismo. Se para o espírita, com efeito, a humanidade inteira constitui uma só família, de que Jesus é o chefe, posto que ainda, para muitos, ignorado ou repelido, as diferentes latitudes em que se aglomeram as humanas coletividades não representam aos seus olhos mais que temporários acidentes na múltipla jornada, tanto vale dizer nas sucessivas existências, que os espíritos, de que se compõe a mesma humanidade, vêm realizando ora numa ora noutra das regiões do globo.

            Mas do mesmo modo que de indivíduo a indivíduo, ao lado da identidade fundamental de natureza e origem, se observa a variedade de aptidões, resultante da diversidade de graus de progresso efetuado assim também cada povo, que não é mais que um agrupamento de espíritos vinculados por tendências, necessidades e aspirações comuns, se caracteriza por predicados morais e capacidades intelectuais que lhe imprimem um cunho de alguma sorte pessoal e o induzem a realizar, a estímulos do amor pátrio, que é uma forma particularizada do amor universal, uma determinada tarefa na obra coletiva da civilização e do progresso planetário. Não é assim que uma, tem sido, na história, a missão dos povos latinos, outra, por exemplo, a dos anglo-saxões, cada um patenteando gênio, índole e costumes diferentes, a que não são estranhas as próprias condições geográficas e climatéricas?

            Isto posto, e abstendo-nos de entrar em desenvolvimentos que nos levariam demasiado longe, bastando assinalar apenas, de passagem, a título elucidativo, que, quando um espírito, ou um grupo de espíritos, necessita cultivar certas igualdades e aptidões, adquirir experiência e méritos, ou combater certos preconceitos, desenvolvendo ao mesmo tempo e fortalecendo os laços de fraternidade, é induzido a encarnar no meio favorável à execução de tais desígnios (1), retomemos o fio das considerações interrompidas.

            (1) Essa migração de espíritos de uma a outra região do globo, dilatando, o círculo de seus afetos pessoais e, simultaneamente, vinculando-os à história, tradição e costumes dessas diferentes pátrias, em que se desdobram os sucessos de sua peregrinação terrestre, é um dos meios de que se utiliza a Providência, não só para encaminhar os homens ao sentimento prático de fraternidade ilimitada, como para identifica-los com os destinos do próprio globo, em cuja evolução geral são chamados a colaborar. Desse modo os, exclusivismos e exagero das preocupações regionalistas vêm a diluir-se num sentimento amplo de simpatia a todos os lugares, impregnados de recordações latentes, e a todos os povos, cujos destinos foram partilhados em comum.


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