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Sem
querer antecipar o que, na conformidade do plano aqui traçado, já pertence à
segunda parte desta obra, recordaremos, todavia, que até ao aparecimento e atuação
de Allan Kardec no domínio e como missionário do moderno espiritualismo, um divórcio
profundo, largamente favorecido pelos trabalhos dos enciclopedistas do século XVIII, se havia pronunciado entre as
concepções religiosas, dogmaticamente impostas à revelia da razão, e as afirmações da ciência, que os testemunhos da
experimentação, cada vez mais aperfeiçoada em seus instrumentos de pesquisa,
não cessavam de prestigiar. De um lado as aspirações imortalistas e a tendência
religiosa fundamental da natureza humana, constrangidas à fé sem provas, renunciando a toda indagação; do outro a
ciência, por seus mais eminentes cultores, brandindo triunfalmente os seus métodos
positivos, empenhada na implacável demolição do edifício abstrato das
religiões.
Foi
a hora, crepuscular e angustiosa para quantos oscilavam entre a necessidade de
crer e o imperativo desejo de saber do efêmero triunfo, posto que ruidoso e
arrogante do materialismo. Só havia um meio de conciliar essas, na aparência,
antagônicas tendências: era transportar para o domínio religioso, no que se
refere pelo menos aos fundamentos em que devem repousar os ensinos dessa ordem,
os métodos científicos de observação. Foi também então que, de intermitentes e
dispersas que haviam sido em todos os tempos, as manifestações espíritas, obedecendo
a uma determinação oculta, adquiriram um cunho de multiplicidade e constância
que permitiu, não somente coligir numerosos e irrefutáveis testemunhos da
sobrevivência do homem e da existência do universo espiritual, como dilatar
para além das fronteiras do visível o conhecimento das forças invisíveis que
operam em toda a natureza e constituem o substrato de suas infinitas
manifestações.
Estavam
lançadas as bases da ciência espiritualista e traçado o rumo a que de então em
diante forçoso seria obedecerem todos os que, libertos de preconceitos e
dogmatismos, nenhuma ambição mais nobre e desinteressada nutrem que a de
explorar, no expressivo dizer de Newton em seu leito de morte, "o oceano
infinito da verdade." Nesse rumo se têm efetivamente, e com louvável perseverança,
aventurado representantes dos mais prestigiosos da ciência, alguns de cujos
testemunhos, quer a respeito dos fatos, quer como adesão aos ensinamentos da
doutrina, já tivemos ocasião de mencionar (1).
(1) Cap. III, págs.
65 a 70.
Mas
não é apenas como ciência, posto que seja inestimável o cabedal com que, nesse
domínio da observação, vem enriquecer os conhecimentos humanos, pelo estudo dos
fluidos e das forças naturais desconhecidas, que o Espiritismo se recomenda à
meditação dos pensadores. Partindo da verificação dos fatos e da classificação
dos fenômenos, precária seria a sua contribuição para a obra geral do progresso
e da felicidade humana, se ali se detivesse, não se utilizando desses opulentos
materiais senão para acrescentar um novo, magnífico embora e surpreendente, capitulo
à física e à psicologia, em lugar de penetrar, como realmente o faz, e o temos
visto até aqui na esfera das indagações filosóficas, desdobrando os
seus ensinamentos, pelo órgão das elevadas
entidades do invisível, que são os verdadeiros autores da filosofia espírita,
aos mais transcendentes problemas do universo, da vida e do destino dos seres.
Ainda não é tudo.
Ciência
de observação e filosofia racionalista, mutilado ficaria ainda assim o
Espiritismo, se a esses dois aspectos fundamentais se não viesse acrescentar,
como radiosa culminância, não apenas o aspecto moral, que toda filosofia
necessariamente inclui, mas o religioso, continuador que é - seja-nos lícito
insistir - do Cristianismo em sua missão regeneradora, sem formalismos e
exterioridades, na fase definitiva que é chamado a inaugurar no mundo.
E
de tal modo se integram no Espiritismo esses três aspectos - científico, filosófico
e religioso - constituindo um todo indissolúvel, que não pode ser qualquer
deles isoladamente abordado com proveito. Mesmo para os filhos do povo, para as
inteligências incultas que, alvoroçadas, de preferência acodem ao anúncio do
Evangelho, em cujas consoladoras promessas encontram o precioso estímulo de
resignação e de esperança, indispensável para lhes aligeirar o fardo da existência, não deixa
de representar o Espiritismo, tal como deve ser pregado nos círculos de
iniciação, de que oportunamente nos ocuparemos, uma larga fonte de
conhecimentos, por assim dizer, de ordem científica, nem de suas cogitações
podem ser excluídos, pelo menos em seus rudimentos gerais
expositivos, os problemas filosóficos relativos à existência de Deus e às leis
morais que regem a complexa fenomenalidade desta natureza, e que a palavra do
Evangelho confirma e sanciona.
Tendo,
pois, como base a observação dos fatos, particularmente no que se refere ao
mundo supra sensível ou oculto, e ampliando as suas indagações à esfera da filosofia,
em suas mais transcendentes generalizações, o Espiritismo vem a culminar, como
supremo objetivo a que irresistivelmente se encaminha, no mais perfeito ideal
religioso que pode ser oferecido aos homens e que se traduz na prática dos ensinamentos
evangélicos, em suas fecundas aplicações morais e sociais.
Essa
classificação, todavia, - não será inoportuno observar - esse desdobramento do
Espiritismo em três aspectos sucessivos, ou antes paralelos, unicamente
estabelecido em relação ao estado mental contemporâneo e para estar em harmonia
com os métodos de investigação adotados no Ocidente, pode e há de ser um dia
reduzido a um único aspecto, quando, pelo cultivo da intuição, que é a
faculdade peculiar do espírito, apenas latente no homem, e pelo simultâneo
desenvolvimento do sentido psíquico, for possível, prescindindo-se do
testemunho dos sentidos físicos, empreender a sondagem direta do mundo superior
e invisível, a exemplo do que têm praticado, há séculos, os grandes iniciados
do Oriente. Então o Espiritismo, que é a ciência do espírito, ou das coisas,
divinas e espirituais, em cujo círculo de investigação se integra
necessariamente a subalterna coexistência das coisas materiais e exteriores,
conduzirá os seus adeptos pela senda, não apenas da crença, mas do
Conhecimento, facultando a quantos reúnam as condições de pureza requeridas
para esse alto descortino a penetração do que Emmanuel Kant denominava o "nomeno",
isto é, o que se oculta por trás do "fenômeno" e é a sua
causa eficiente.
Até
lá, e unicamente enquanto o homem não adquire ou, como o dizemos, não tem
desenvolvida essa faculdade divina - a intuição - para o interior discernimento
da Verdade, o Espiritismo comportará o tríplice aspecto que indicamos,
importando contudo aos seus adeptos não se deter nas especulações, de certo
modo acessórias, de qualquer dos dois primeiros mas encaminhar-se resolutamente
ao seu objetivo capital, que é em última análise a conversão dos crentes em Discípulos, isto é, em
homens espirituais, íntima e profundamente identificados com a pureza e as
virtudes do Divino Mestre, a fim de poderem ser, no mundo, órgãos eficientes do
seu pensamento e dos seus poderes santificadores.
Se,
entretanto, por outro lado observamos as modalidades que vem assinalando a
marcha e desenvolvimento da Revelação espírita nos diferentes países a que meio
século de ativa propaganda tem levado o seu anúncio, verificaremos que, de um
modo geral, a consciência dos adeptos não parece haver ainda convenientemente
despertado para essa esclarecida e - porque não dize-lo? - também definitiva
orientação a que, no próprio interesse de sua exuberante frutificação, há de
por fim obedecer. É assim que, por exemplo, nos grandes centros intelectuais da
Europa, que ainda não passaram da fase inicial, as atenções se tem conservado,
entre incrédulas e hesitantes, adstritas à observação dos fenômenos, e mesmo
nos círculos dos crentes, regularmente organizados, as manifestações dos seres
do invisível constituem o principal objetivo das reuniões, preocupação um pouco
por toda parte generalizada, mesmo deste lado do Atlântico, sem que o estudo
integral e minucioso da doutrina, particularmente do Evangelho, acompanhado de
adequados exercícios para desenvolvimento do sentido espiritual, ocupe o preeminente
lugar que lhe compete. A propaganda é feita por meio de conferências e
discursos, e os frutos morais da doutrina, além das noções teóricas
sumariamente colhidas na leitura, não são procurados mais que nas advertências
resultantes das evocações dos espíritos, de várias categorias, que se
manifestam.
Na
América do Norte, consoante o feitio original e a índole eminentemente prática
dos seus habitantes, o trabalho de organização caminhou aceleradamente,
desdobrando-se em mais de quatrocentas sociedades, de que é núcleo central a
Associação Nacional dos Espiritualistas, contando-se por milhões o número dos
aderentes ou simpáticos à causa; mas esse mesmo espírito pratico, essa vertiginosa atividade que em todas as coisas
particulariza o americano, constituindo um embaraço para o silencioso
amadurecimento das ideias, veio a redundar no grave inconveniente de imprimir
ao Espiritismo o cunho de uma religião, que se não limita, como o conviria, à
substancia dos ensinos doutrinários, mas assimilou das existentes o que
representa o seu peso morto, como a instituição de cerimônias (batizados,
casamentos, encomendações de defuntos), e a "ordenação de ministro”
paralelamente à expedição de "certificados a médiuns,
licenciados e curadores," para o exercício do respectivo ministério, sendo
assim criada uma prematura hierarquia e uma, a nosso ver, inconveniente
oficialização do culto, que, para ser corretivo eficaz às exteriores
superfluidades das religiões positivas, devera se conservar puramente
espiritual, singelo e íntimo, expresso apenas nas obras de amor ao próximo, que
o são de adoração a Deus, tal como, para exemplificação a todos, o praticava o
meigo Nazareno. Em meio dessa indecisão geral no sentido de estabelecer o
definitivo consórcio entre o Espiritismo e o Evangelho, cujos ideais tem a
Revelação espírita por supremo objetivo difundir, promovendo a cristianização
do mundo, isto é, a conversão dos homens à lei de amor, ou
de fraternidade universal, que da parte de Deus lhes trouxe o Cristo, em meio
dessa indecisão - dizemos - nada de surpreender nos movimentos iniciais de uma
doutrina, em pouco mais de cinquenta anos, posta em contato com os hábitos e
tendências de povos de educação e índole diversas, há uma região do globo em
que aquela orientação espírita-cristã parece haver encontrado o ambiente propício
a expandir-se e produzir excelentes e sazonados frutos.
Falamos
do Brasil, deste querido e predestinado Brasil, tão negligentemente
incompreendido em sua missão e em seus destinos históricos pela quase totalidade
de seus dirigentes, e que, entretanto, um conjunto de
circunstâncias características e providenciais está claramente indicando que
tem um alto papel a desempenhar, assim no concerto geral da civilização, como
particularmente na obra de renovação espiritualista que se está elaborando e em
que lhe cumpre caminhar na dianteira.
Deste
modo nos exprimindo - será porventura necessário advertir? - não nos move
nenhuma exclusiva e, até certo ponto, mesquinha preocupação regionalista,
incompatível ao demais com a amplitude que ao conceito de pátria imprime o
Espiritismo. Se para o espírita, com efeito, a humanidade inteira constitui uma
só família, de que Jesus é o chefe, posto que ainda, para muitos, ignorado ou
repelido, as diferentes latitudes em que se aglomeram as humanas coletividades não representam aos seus
olhos mais que temporários acidentes na múltipla jornada, tanto vale dizer nas
sucessivas existências, que os espíritos, de que se compõe a mesma humanidade,
vêm realizando ora numa ora noutra das regiões do globo.
Mas
do mesmo modo que de indivíduo a indivíduo, ao lado da identidade fundamental
de natureza e origem, se observa a variedade de aptidões, resultante da
diversidade de graus de progresso efetuado assim também cada povo, que não é mais
que um agrupamento de espíritos vinculados por tendências, necessidades e
aspirações comuns, se caracteriza por predicados morais e capacidades intelectuais que
lhe imprimem um cunho de alguma sorte pessoal e o induzem a realizar, a estímulos
do amor pátrio, que é uma forma particularizada do amor universal, uma
determinada tarefa na obra coletiva da civilização e do progresso planetário.
Não é assim que uma, tem sido, na história, a missão dos povos latinos, outra,
por exemplo, a dos anglo-saxões, cada um patenteando gênio, índole e costumes diferentes,
a que não são estranhas as próprias condições geográficas e climatéricas?
Isto
posto, e abstendo-nos de entrar em desenvolvimentos que nos levariam demasiado
longe, bastando assinalar apenas, de passagem, a título elucidativo, que,
quando um espírito, ou um grupo de espíritos, necessita cultivar certas igualdades
e aptidões, adquirir experiência e méritos, ou combater certos preconceitos,
desenvolvendo ao mesmo tempo e fortalecendo os laços de fraternidade, é
induzido a encarnar no meio favorável à execução de tais desígnios (1), retomemos o fio das considerações interrompidas.
(1)
Essa migração de espíritos de uma a outra região do globo, dilatando, o círculo
de seus afetos pessoais e, simultaneamente, vinculando-os à história, tradição
e costumes dessas diferentes pátrias, em que se desdobram os sucessos de sua
peregrinação terrestre, é um dos meios de que se utiliza a Providência, não só
para encaminhar os homens ao sentimento prático de fraternidade ilimitada, como
para identifica-los com os destinos do próprio globo, em cuja evolução geral
são chamados a colaborar. Desse modo os, exclusivismos e exagero das
preocupações regionalistas vêm a diluir-se num sentimento amplo de simpatia a
todos os lugares, impregnados de recordações latentes, e a todos os povos,
cujos destinos foram partilhados em comum.
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