domingo, 17 de fevereiro de 2013

9. 'Fenômenos de Materialização'





9
Fenômenos de Materialização
autor: Manoel Quintão
 Livraria Editora da Federação Espírita Brasileira
 1942



            Ainda para esse trabalho não se extinguiu, apenas se graduou a luz da sala, cujas portas permaneciam fechadas. Dentro em pouco, sem vermos qualquer sombra ou fantasma, ouvimos o marulhar da água, como se alguém a agitasse no balde. Depois, pediram-nos que estendêssemos a mão e recebemos, emocionado, esta flor delicadíssima, ainda quente, e em cujas pétalas podereis distinguir as impressões digitais do manipulador.

            O fato de nos ser entregue ainda quente (e bem quente) é um desmentido a quantos, mesmo no Pará, dizem que tais artefatos são adrede preparados e artificiosamente conduzidos ao recinto das experiências. Entretanto, estávamos todos nos entrevendo e fiscalizando ali. Ninguém se moveu dos seus lugares. E como se aqueceria aquela prenda, tão frágil, antes que se não quebrasse nas vicissitudes de um suposto esconderijo?

            Da probidade, da idoneidade moral dos circunstantes não falaremos. Não falaremos da estultícia dessa presunção de que pessoas de critério reconhecido, sem interesse material qualquer e com sacrifício mesmo de tempo e comodidades se reúnam pelo só prazer de se mistificarem, mistificando os seus semelhantes. São valores de apreciação com os quais não contamos nesta tese, tanto sabemos que, para certa classe de gente, a integridade alheia só pode coexistir com a sua forma de ver as coisas. Compreendemos, de sobejo, aquela zona lúcida de que nos fala o Dr. Gibier (1), fora da qual o indivíduo nada vê, nada sente, nada sabe. Acusando-se fatigado o médium, levantamos a sessão.

            (1) Analyse des choses

            Emprazado para a segunda prova, a de materialização propriamente dita, a ela comparecemos disposto, mais que nunca, à observação quanto possível rigorosa. Assim, novo exame na sala, na mesma sala; minuciosa investigação da gaiola de ferro, da câmara escura, da disposição das cadeiras, da lâmpada elétrica, das portas, de tudo enfim.

            A assistência variou de algumas pessoas, cresceu de número, mas lá estavam as de maior destaque, que haviam assistido à primeira sessão.

            Pedem-nos que examinemos a gaiola na qual fica encerrado o médium. Essa gaiola é um quadrado de ferro, cujos varões tocamos um a um, experimentando lhes a firmeza do conjunto e a integridade singular. As colunas angulares, sejam os quatro pés da gaiola, assentam sobre um estrado de madeira inteiriço, ao qual, por dispositivo especial, ficam solidamente parafusados, pelo sistema de rosca. Perguntaram-nos se queríamos lacrar as porcas. Dispensamos essa precaução inútil, uma vez que a sessão se faria com luz graduada  e nós mesmo manejaríamos a chave inglesa. Externamente, qualquer tentativa para desparafusar a gaiola seria de todos percebida. Internamente, o "médium" jamais poderia manejar a chave inglesa. E que o pudesse, para sair houvera de suspender a gaiola e o biombo dentro do qual ia ficar.

            Não foi, confessamos, sem certa mágoa que vimos aquela senhora respeitável, de fisionomia austera quão benevolente, trajando um costume azul escuro, entrar para aquela prisão, na qual havia uma cadeira, em que ela se assentou, meio de lado e debruçando-se no respaldo, tal como se vê nesta fotografia (1).

            (1) Esta e outras fotografias, bem como as luvas e flores de parafina, acham-se na sala da Federação, para os que quiserem examiná-las.

            Sobre a gaiola, conduzida a um canto da sala (2), colocamos o biombo - uma barraca de pano escuro, tendo na parte frontal uma cortina.

            (2) Veja-se o desenho já citado.

            O "médium" ficou, destarte, duplamente enclausurado e, sala fechada, mal concebíamos como suportava aquela temperatura, só compensada por um ventilador fronteiro à câmara-escura.

            Preparado o gabinete, assentámo-nos em semicírculo e começou o fenômeno do transe mediúnico, tal como o descrevem Crookes, Gibier, Aksakoff, Geley e tantos outros. O "médium" ora gemia em surdina, ora respirava alto, e todos ouvíamos esses haustos e gemidos, até que serenou.

            Aqui, releva ponderar que a hipnose não é espontânea. Ela se opera por magnetização do Espírito desencarnado que superintende os fenômenos - neste caso, "João", que foi tio carnal da "médium" nesta sua existência terrena. "João",  portanto, o fantasma, adormeceu o médium, que caiu em transe, como em linguagem técnica se diz. Entrementes, parecia haver-se estabelecido certa afinidade psíquica entre nós e o "médium", como que os nossos pensamentos e sentimentos mais recônditos eram por ele devassados. Assim, advertia: "é preciso ter menos impaciência"; "- mais atenção da esquerda". "João diz que devem moderar a rotação do ventilador, etc." Depois, a cortina do biombo foi suspensa. Houve, por conseguinte, ação mecânica.

            Mas, é preciso dize-lo, tudo isso se dá com luz atenuada, luz cujo dispositivo é este: ao fundo da sala, uma lâmpada elétrica pendente do teto, interceptada por um pano verde. Assim, velada a parte da sala em que transcorrem os fenômenos, a luz da lâmpada se esbate do outro lado, na parede e, correndo por ela de alto a baixo, reflete-se no ambiente, tanto quanto necessário para que todos se divulguem. Dir-se-ia, para vos dar uma ideia, uma penumbra de cinema, suficiente para se divisarem fisionomias, objetos, movimentos quaisquer.

            A ansiedade do auditório era grande, profundo o silêncio, quando alguém exclamou: - Ei-lo, o fantasma, a desenhar-se no canto da câmara escura, á direita. Não o vê? Não víamos... Olhe agora, ali, no outro canto, junto à parede.




                Fotografia obtida no dia 30 de janeiro às  9 horas da manhã. Reconhece-se francamente a fisionomia do espírito de “João”, confrontando-se já com o seu próprio retrato reproduzido na página 17, Grav. 3) já com a do fantasma (pag 17, Grav.4).

            De fato, no ponto indicado, à nossa frente, oscilava como que um lençol, esbranquiçada massa branca que se foi condensando e resvalando cosida à parede - não havia três metros de distância da câmara ao lugar em que me encontrava chegando ao ponto em que estavam os dois baldes já de nós conhecidos e mais uma garrafa com aguarás, destinada a temperar a cera para a manipulação dos moldes e flores.

            O fantasma, sempre mais nítido, insinua-se bem perto, estaca defronte do balde. Fixamo-lo à vontade: era um homem moreno, orçando pelos seus 40 anos, trazendo à cabeça um capacete branco. Pelas mangas largas do amplo roupão, também branco, saíram-lhe as mãos trigueiras e grandes. Os pés não os divisamos. (*)

            (*) Clichê do fantasma (Gravura 2).

            Chegou, cortejou, apalpou os baldes, ergueu com a mão direita o que continha a cera quente e com a esquerda, elevando a garrafa de aguarás  à altura do rosto, como que dosou o ingrediente. Depois, arriando o balde, como para confirmar o seu feito, arrastou-o no chão, produzindo o ruído característico, natural. Os seus gestos e movimentos eram perfeitos, naturais, humaníssimos, como se ali estivesse criatura humana. Isso posto, afastou-se e conservou-se a um canto da câmara escura, enquanto do outro canto surgia uma menina de seus treze anos, que dá o nome de Anita.

            Assim, tivemos uma dupla manifestação. Visíveis ao mesmo tempo, "João" - um homem e "Anita" - uma quase criança, enquanto ouvíamos intervaladamente o médium suspirar na câmara escura! E note-se, na assistência ninguém havia que pudesse fingir de criança...

            Anita caminhou graciosa para o balde e em breve nos entregou esta delicada flor, (mostrando) que tem o caule virado. Regressando "Anita" à câmara, pelo mesmo trajeto, antes que se esvaecesse, "João" diz como para o médium - "Vou operar". E aproxima-se e opera. Vemo-lo abaixar-se e alternativamente mergulhar a mão num e noutro balde. O que não vimos - e isto dizemos para que considerem que não fantasiamos nem exageramos - foi o desmaterializar da mão para sacar a luva, pois neste comenos João voltou-se para a parede e o processo foi rapidíssimo, quase instantâneo. O "médium", lá do gabinete, mandou que estendêssemos a outra mão (na direita conservávamos a flor e ... aqui está o molde da mão de "João". (*)

            (*) Molde da mão (Gravuras 3 e 4)




            Certo, já compreendestes, Senhores, a correlação intencional do fenómeno; "Anita" veio, manipulou e nos entregou esta flor; "João", em seguida, modela a sua mão desta forma, isto é, juntando o polegar ao indicador, como a significar que é dele a oferta da dita flor! Agora, é caso de perguntar a todos os físicos e químicos: como é possível tirar a mão de um molde assim talhado, sem o quebrar? Ah! senhores, já houve sabincha imaginoso, um cérebro fecundo na sua caturrice de "espírito forte", que aventou a hipótese de umas luvas de borracha cheias de agua fria. Então, esvaziada a luva... Somente o genial contraditor se esqueceu de que a borracha não só não resistiria à temperatura da cera, como, principalmente, que estes moldes cheios de gesso dão um órgão anatômico perfeito, a ponto de apresentarem sinais ou defeitos, que os defuntos tinham em carne e osso.





            Molde da mão, (Gravuras 3 e 4)"

            Não nos detenhamos, contudo, em refutar puerilidades. Aqui tendes a prova documentaI do fenômeno e vamos resumir porque a hora vai célere e adiantada.

            Em seguida, do gabinete, diz o "médium" que procurássemos reconhecer a entidade que ia materializar-se. "E para logo toma vulto uma linda criatura. Era uma moça esbelta, loura cabeleira solta, trazendo a tiracolo, sobre as vestes alvas, uma faixa azulada. (Note-se que o "médium" é moreno, tipo acentuadamente nortista, de cabelos pretos e, por sinal, rigorosamente penteados.) Caminhou até bem perto de nós, que lhe vimos os traços fisionômicos bem nítidos, o brilho da linda e basta cabeleira. 

            Depois de nos encarar e cumprimentar a assistência, em graciosa curvatura, afastou-se até ao centro da sala, parecendo indecisa... Aí ouvimos todos, não o "médium", mas "João" dizer: - abram alas. Interessante, senhores, a voz do além tumulo: a articulação das sílabas é perfeita, mas falta-lhe o timbre nasal, pastoso, da voz humana. É um som metálico, por dar uma ideia aproximada, visto que não encontro nada que lhe corresponda exatamente.

            Ao "abram alas", de "João", rompeu-se o círculo de cadeiras em dado ponto e foi quando novamente ouvimos a ordem de "João", incisa e rápida  "- Vá por minha conta."

            E logo a visão, que antes parecia pouco segura do seu corpo, caminhou resoluta até ficar sob a lâmpada, percorrendo a sala em todo o seu comprimento. Um assistente (1) que, por dispositivo da colocação primitiva, lhe ficara mais próximo nessa surtida, disse-nos depois: "Eu vi até os cabelos dos braços e as veias da pele, quando "ela" estacionou sob a lâmpada." Ao regressar, vimos o seu andar naturalíssimo, o passo cadenciado e, por curto o vestido, as botas de atacar, de cano alto e cor marrom claro.

            (1) Adalberto Macedo, funcionário do British Bank, em Recife.

            Esta circunstancia é digna de nota especial, pois que, em regra, as descrições e observações clássicas dizem que os fantasmas deslizam e dificilmente se lhes distinguem as extremidades inferiores. Nós vimos os sapatos e até os cordões dos mesmos!

            O que, seja dito, não conseguimos ver nitidamente, nos fantasmas, foram os olhos, que eles -- ao que parece -- procuram resguardar. A propósito, disse-nos o Sr. Eurípedes Prado que "João" chegara mesmo a solicitar que desistissem de o fixar com insistência, sem, contudo, arrazoar o motivo de tal solicitação. Será que o fluido magnético humano, focalizado e projetado em feixes, exerça ação dissolvente, como a luz artificial, sobre o perispírito condensado do manifestante? É uma pergunta que não ficará sem resposta oportuna e ninguém se admire desta ou de outras obscuridades, em se tratando de leis que mal começamos a entrever e estudar.

            "João" ainda veio a nós e apertou-nos a mão, tendo antes recomendado, pela voz do médium,  que não fizéssemos qualquer pressão, para que ele médium não se magoasse. Disto, não há concluir que o fantasma seja o duplo mediúnico, porém que a ele está substancialmente ligado, vivendo, por assim dizer, da vida orgânica do "médium."

            Em seguida a essa materialização, tivemos a de um sacerdote encanecido e de fisionomia austera. Caminhou vagaroso ao centro da sala e ai esteve parado, Imóvel, cerca de cinco minutos. Devido ao hábito negro, apenas lhe pudemos divisar o rosto, as mãos, a cabeça encanecida, coroa aberta. Com o mesmo passo lento e grave recuou e, inclinando a fronte como em respeitoso cumprimento, desapareceu na câmara.

            Ato contínuo, diz o médium: "João está pedindo que toquem piano." O maestro Bosio dá suas ordens para cima e em breve ouvimos as harmonias de uma valsa lenta. E "João" cadencia os passos, dança graciosamente e canta em surdina, acompanhando o piano dolente. Maravilhoso!

            Terminada a valsa, ainda falou, na sua voz metálica: - Olhe o Dubois. Depois, alegando fadiga do médium, iniciou as despedidas a todos, cortejando e acenando com as mãos, graciosa, naturalmente. Por fim genufletindo, solene, ergueu os braços ao alto, no gesto expressivo de quem dá graças a Deus. E, rápido desmaterializou-se, deixando-nos na alma embevecida uma dulcíssima impressão de reconhecimento e saudade.

            Ainda ouvimos a impressão dos seus dedos a estalidarem delicadamente na face do médium, por despertá-lo. A' voz de "pronto", aclarado intensamente o ambiente, puxamos. do relógio. A sessão durara 2,5 horas.

            O "médium", retirado o biombo, patenteava-se exausto, mas calmo, acusando apenas entorpecimento das pernas. Desparafusada a gaiola, acercando-se solicito o venerando Dr. Bacelar, ousamos perguntar-lhe se verificava qualquer anormalidade fisiológica, ao que ele nos respondeu: - Nada, apenas uma ligeira depressão do pulso.

            De fato, dentro de dez minutos a Exma. D. Ana Prado gesticulava e conversava naturalmente. Devo ainda confessar que, em nenhum dos assistentes notei impressão de alarme ou constrangimento; -bem ao contrário, todos se manifestavam prazerosos, como se houvessem assistido a uma das cenas consuetudinárias da vida de relação.

            Tudo natural, naturalíssimo.



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