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Antes
de prosseguir, convém nos fixarmos sobre a significação desta palavra. Sacrifício,
na tecnologia religiosa, consoante mesmo a origem morfológica do termo (sacra facere) significa fazer uma coisa
sagrada. É por isso que os povos bárbaros, concebendo a Divindade pelo prisma
de suas próprias violentas paixões, acreditavam lisonjeá-la e assim praticar um
ato "sagrado," oferecendo-lhe sangrentos holocaustos, entre visitas
propiciatórias figuravam animais, quando não, como entre as mais ferozes tribos,
criaturas humanas. À medida que, com a elevação do nível moral, a civilização se
afirma e os costumes se aperfeiçoam e suavizam, o objeto e a natureza do sacrifício
se transforma e chega pouco a pouco a espiritualizar-se, mas a ideia, como prática
religiosa, permanece. Não é assim que, sucedendo aos cruentos holocaustos dos
hebreus, vemos na igreja católica os sacerdotes celebrarem nos altares
(reminiscência das antigas aras) o "santo sacrifício" da missa? - Já
no EVANGELHO SEGUNDO o ESPlRITISMO se encontra, em harmonia com um estado mais
elevado do sentimento e da mentalidade humana, a noção do "sacrifício mais
agradável a Deus," que não consiste oblatas materiais nem sequer simbólicas,
representadas em aparatos litúrgicos, mas na imolação constante, sem formalismos
nem exterioridades, de todo sentimento contrário ao espírito de fraternidade e
de concórdia .
É
lutando, com efeito, contra os pendores de sua imperfeita natureza e, por
conseguinte, - impondo-se um constrangimento, que o homem realiza o sacrifício
mais útil para si e mais digno da aprovação divina,
até que, inteiramente purificado, venha a ser uma hóstia viva, constantemente
oferecida Àquele que é Espírito e só "em espírito e verdade" é que
deve ser adorado pelos verdadeiros e fieis adora dores (1).
(1)
João, IV, 23-24.
Então,
já não tendo sentimentos impuros que imolar, estará, como o Cristo, apto a oferecer-se
a si próprio em holocausto, isto é, a impor-se todo constrangimento,
simultaneamente, agradável a Deus e favorável aos homens seus irmãos.
E
vem a propósito assinalar que o sacrifício de Jesus não consistiu unicamente na
crucificação, nem ainda no conjunto de inconcebíveis sofrimentos, sobretudo
morais, com que a fereza humana em desvario flagelou o seu amantíssimo
espírito, desde a traição de Judas e os tumultuários sucessos no Jardim das
Oliveiras até o supremo brado no cimo do Calvário. Esses padecimentos, com intrépida
resolução por ele previamente anunciados, como
vimos, e com tão amorosa conformidade aceitos que os buscou justificar
nesta outra sentença em que perpassa um sopro de infinita submissão e indulgência:
"se o grão de trigo que cai na terra não morrer, fica ele só; mas, se
morrer, produz muito fruto (1), "esses
padecimentos - dizemos - deviam ser, num mundo como o nosso, o coroamento,
mais que inevitável, necessário de sua missão eminentemente exemplificadora, a fim
de que na humilde, quase diríamos, na jubilosa resignação com que os arrostou
aprendessem os homens a obediência à divina lei do sacrifício por amor.
(1) João, XII, 24-25.
E
intencionalmente particularizamos "num mundo como o nosso," porque
nas esferas superiores, habitadas por humanidades mais adiantadas, as missões
dos Cristos que as visitam, para dar frutos de edificação, não necessitam
certamente de tormentosos desenlaces, mas hão de tranquilamente se exercer,
como é lógico supor, entre festivas aclamações dos corações reconhecidos. Não
deixam contudo, mesmo assim, de representar um sacrifício; porque para espíritos puros, como os de tal
categoria, a simples incorporação a uma forma objetiva, por menos densa ou material
que porventura seja, constitui sempre uma constrangedora limitação de sua natureza e,
conseguintemente, um sofrimento. Eis porque o de Jesus - vínhamos dizendo - não
consistiu unicamente nas dolorosas cenas da Paixão: começou com a sua descida -
senão antes - das celestes regiões em que irradia o seu espírito puríssimo,
para se prolongar por todo o tempo que se impôs o contato molesto e imediato
com um ambiente saturado dos eflúvios de grosseiras paixões como o da Terra.
Mesmo,
pois, que em diversas, inteiramente favoráveis condições, no que se refere ao
seu desfecho, tivesse podido consumar-se, à missão do Cristo permaneceria como
um sacrifício em sua dupla acepção religiosa, -de
ato sagrado e de mortificação, de todo modo agradável a Deus, no primeiro caso
por ele responder à execução de seus desígnios relativamente às criaturas,
objeto de sua paternal solicitude e, como tal, necessitando ser de sua parte
instruídas pelo Divino Mandatário nas lições de vida eterna que lhes trouxe, e
no segundo, por se identificar com um dos aspectos sob que se manifesta ,a
onipotência criadora. E aqui retomamos o fio da demonstração, que nos propomos,
no sentido de ser a criação um ato de amor e também de sacrifício.
Não
nos move – apressamo-nos, todavia, a advertir- a temerária, que seria estulta,
pretensão de devassar por mera curiosidade os celestes arcanos, senão apenas o
singelo desejo de, apresentando o fruto de nossas meditações sobre o assunto,
contribuir com um modesto subsidio para a elucidação deste problema, que não
interessa apenas, como tema especulativo, aos estudiosos das coisas divinas,
mas como fato de consciência e de experiência pessoal a quantos palmilhamos a via crucis deste mundo: o sofrimento.
Objeto
de instintiva repulsa para o homem, que mais assim não faz que o exacerbar e
perverter, quão diferente lhe aparecerá, se apreendido em suas transcendentes, dignificadoras expressões! Despojado da
significação expiatória, que sem duvida reveste em sua modalidade, por assim
dizer, inferior, quando incidindo sobre espíritos recalcitrantes e culpados, em
lugar da lei de banimento, cujos caracteres pareceria, posto que erroneamente,
revestir, um inusitado prestígio o virá em tal caso aureolar, convertendo-o,
espiritualizado, num motivo de similitude, ou de aproximação com Aquele que,
provando por mil variadas formas a nossa obediência e fidelidade aos seus
sapientíssimos ditames, assim não somente nos quer tornar perfeitos, mas
participantes, por uma remota iniciação preparatória, no recôndito mistério em
virtude -do qual, para comunicar a vida ao mundo, não se limitou a votar, em mística
imolação, o seu dileto Filho (1), mas a si próprio em primeiro lugar - que
dizemos nós? de toda a eternidade - se tem imposto a mesma excelsa e singular
prerrogativa.
(1) O iluminado
vidente de Palmos faz, no APOCALÍPSE (XII, 8), uma alusão aparentemente
enigmática, ao "livro da vida do
Cordeiro, que imolado desde o princípio do mundo," o que, em seu
sentido esotérico, quererá significar que o sacrifício de Jesus remonta mais
longe mesmo do que o acabamos de indicar, isto é, ao período de formação da
nossa Terra, a que desde então se associou, presidindo-lhe as fases, o seu
espírito puríssimo.
De
toda a eternidade, sim, pois que, desenvolvendo-se embora em sucessivos e
incessantes ciclos a criação universal; jamais esteve nem poderia; ter estado
inativo o Criador. E a cada um desses ciclos, que o Amor
perfeito e infinito vai eternamente desatando, corresponde uma voluntária
divina imolação.
Ousaremos,
com a penúria de nossas faculdades, perscruta-lo? Preferiríamos decerto, com
Francisco de Salles, exclamar num estase de comovida piedade: "Oh! Quão incompreensível sois, meu Deus, e quanto me
alegro de o serdes! Não, eu não quisera poder compreender-vos; pois vós seríeis
pequeno, se uma capacidade mesquinha vos compreendesse."
Como,
porém, não é tão alto que pretendemos, nem pretenderíamos desavisadamente nos
aventurar, nem se trata - já o dissemos - de devassar os celestes arcanos,
senão de invocar um novo titulo de excelsitude com que à nossa obediência
filial, tanto como aos transportes do nosso amor, da nossa ilimitada adoração
se impõe Aquele a quem devemos tudo - existência, dons, destinos imortais - e
que nada exige de seus filhos, como sinal de perfeição, que primeiro e em
infinito grau lhes não exemplifique, tentemos a demonstração.
Uma
simples análise no-lo fará compreender. Aludimos a pouco à situação dos Cristos, como
o nosso, prepostos a direção das outras, inumeráveis esferas planetárias disseminadas
no infinito, para os quais a incorporação a uma forma objetiva constitui um
constrangimento, uma limitação de sua natureza, talvez de seus poderes (1) e, assim, um sacrifício, que, todavia, de tempos a tempos, voluntaria
e jubilosamente aceitam, com o fim de lecionar visivelmente as humanidades à
sua amorosa tutela confiadas. Constrangimento semelhante, guardadas com tudo as proporções relativas à diversidade
dos graus que ocupam na hierarquia dos seres, é o que, ao demais, padece todo
espirito, ao ser transferido do estado de liberdade, em que gravita no seu meio
normal, ao encarceramento na matéria, com a diferença de que obedece à
necessidade fatal da própria evolução, ao passo que nos Messias, ou Cristos de
Deus, a incorporação se opera por espírito de abnegação e altruísmo. De todo
modo o aprisionamento numa forma, de composição fluídica mais ou menos
condensada para espíritos puros, material para os de subalternos graus evolutivos,
adstritos a planetas dessa ordem, constitui uma obscurecedora mortificação.
(1) Aos
apóstolos e discípulos prometia Jesus: "Em verdade, em verdade vos digo
que aquele que Crê em mim, esse fará também as obras que eu faço e fará outras
ainda maiores, porque eu vou para o Pai (Joâo, XIV, 12). Com isso não quereria dizer
o Divino Mestre que, uma vez restituído à pátria espiritual, ao esplendor da
luz eterna, o seu poder e, portanto, a sua invisível assistência aos fieis
continuadores da sua obra aumentariam de intensidade e extensão?
Pois
bem. Transportemo-nos ,agora pelo pensamento acima das exterioridades ilusórias,
façamos, por um momento, abstração de todo o universo visível, se tão alto pode
ascender o nosso arrojo, antes de toda criação material, e consideremos que, na
infinita expansão de sua insondável natureza, Aquele que é o Espírito eterno e
incriado, o Absoluto, o Perfeito, a suprema, senão única realidade necessária,
imanente e essencial, de nada necessita que o complete, porque de si mesmo
vive, a si mesmo e a sua própria glória, basta, e nada a pode acrescentar nem
reduzir. E se podemos, para nos cingir á analogia, - único método, nesta indagação, acessível ao nosso entendimento
- admitir que o espírito, que "é o que vivifica," segundo a palavra
de Jesus, independe de toda forma e vive, e viverá, com as suas intrínsecas
capacidades abstratas, mesmo que toda a matéria não exista, ou imaginando, por hipótese,
que viesse a dissipar-se absorvida, transmudada na essência espiritual que é a
sua fonte, não é difícil igualmente admitirmos, sequer como possibilidade, a
existência do Espírito Divino, exclusivo, absoluto e só. Que
necessidade para Ele havia, pois, de nos criar, simultaneamente criando, como o
tentamos esboçar a propósito da gênese espiritual e planetária (1), os mundos materiais em que, acompanhando o duplo processo, involutivo
e evolutivo, os princípios ou germens espirituais se elaboram e individualizam
através os deficientes reinos que os compõem?
(1) Capitulo IX.
E
cabe aqui reproduzir, para lhe buscar a solução, a primeira das interrogações
que formulamos no capítulo inicial deste trabalho: Porque vivemos?
Porque
Deus é bom - não pode haver outra resposta - e porque, na infinita, na
sempiterna expansão do seu amor, centelhas do seu pensamento irradiadas, nos
quis, transferindo do não-ser à consciência
individualizada, ao fim de numerosos ciclos evolutivos, fazer participar da plenitude
e esplendor de sua mesma vida, tivesse que para isso embora, segundo as leis de
sua inescrutável sapiência, mediante a formação dos mundos e dos sois, impor-se
o que inelutavelmente nos aparece como uma redução, uma limitação, não importa
que sucessiva, parcial e transitória, de sua própria essência.
Inefável
e perturbador mistério, diante do qual se prosterna o nosso pensamento, num hosana!
de reconhecimento adorativo a esse Pai Celeste que, para nos dar a vida - ato
de puro amor- assim por amor se imola em toda a criação!
Dir-se-á
que a glória do Criador consiste precisamente na manifestação do seu poder, e
que o universo visível, com a sua deslumbradora magnificência, de tal modo se
nos apresenta como o testemunho vivo, necessário e inseparável de sua onipotência
que não podemos conceber um sem o outro? Tal é, com efeito, a contingência
humana, incapaz dos remontados surtos de pura abstração e, assim, de alçar-se à
concepção do espírito em si mesmo, quanto mais do Espírito Divino. Isso, porém, não
invalida nem de leve afeta a nossa argumentação, tendente a exalçar o que se
nos afigura o aspecto comovedor desse mistério da criação, de que beneficiamos
- e foi o que pretendemos demonstrar - como dádiva de amor e sacrifício.
Quão
grande, ilimitada, não deve ser, por isso, a nossa obediência e fidelidade às injunções
desse mesmo amor, que jamais cansa nem se exaure, sobretudo agora que, por uma nova dispensação universalizada - entendemos
falar da Revelação espírita -nos induz a remontar à natureza divina de que
procedemos e em que importa nos integrarmos quanto antes, numa consciente, indissolúvel
e glorificadora comunhão!
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