As Seis Almas
adaptação de original de Leopoldo Machado
publicado no Reformador (FEB) em 01.02.1937
Seis almas, chegadas da Terra, foram conduzidas à presença do Supremo Juiz, cada qual julgando-se portadora de maiores credenciais, para a posse da Salvação. Credenciais decorrentes das religiões que professaram, porque foram seis religiosos de religiões diferentes, e daquelas mais professadas no mundo ocidental.
- Quem és e de onde chegas? - Indagou o Supremo Juiz à primeira chamada a julgamento.
- Sou judeu, Senhor, e venho da Europa. A maldade dos homens muito roubou aos judeus, inclusive nossa pátria. Por isso que nós, os judeus, fazemos de cada pátria alheia a nossa pátria. Roubou-nos, a maldade dos homens, mas não nos roubou a religião, a crença em vós, Senhor, tal nos ensinou Moisés. Fomos, no passado, o único povo monoteísta. E somos, no presente, aquele mais fiel às suas tradições. Nunca traí a lei de Moisés, sem desprezar, jamais, o Talmud, o Zohar.
Nunca faltei às reuniões das sinagogas e fui sempre muito fiel aos seus ritos. Fora do Pentateuco, nunca procurei a Salvação de que falou face a face, o Senhor, a Moisés, no Sinai. Assim, contava e conto, por certo, obtê-la.
- A Salvação, alma, não é privilégio de tal ou qual povo, de tal ou qual religião. A salvação se obtém pelo amor ao próximo, pela prática do bem, independente de castas, de crenças, de raças.
- Perdoa, Senhor. Eu não sabia!...
- É o que te vale, porque errar por ignorância não é errar. Volta à carne de novo e, na escola da vida, aprenderás a conquistar, por mérito próprio, a Salvação.
- Obrigado, Senhor! Ah! Se eu soubesse...
*
- Eu, Senhor, sou cristão, católico. E o catolicismo é a verdade, a doutrina do teu filho; é a Igreja que Jesus fundou na fé de Pedro. A salvação, mereço-a, porque aprendi que ‘fora da Igreja não há salvação’.
- Para que fosse completo o triunfo da Igreja, eu não medi sacrifícios, nem economizei forças. Espargi, como pude, a fé, achando justíssimo quanto se fez, ad majorem Dei gloriam, em nome da Igreja. Por isso, Senhor, que lamento o tal de Espiritismo, o tal de liberalismo, que se opõem à dominação da Igreja. E choro até, Senhor, o tempo da Idade Média, em que a Igreja triunfou e, no seu triunfo, soube esmagar a heresia com as Cruzadas, as guerras religiosas, a Inquisição, a Companhia de Jesus, a dominação absoluta do papado, do clero... Nunca faltei às missas, às novenas, às festas religiosas. Confessava e comungava amiúde. Tinha as minhas devoções e nunca dormi sem rezar meu terço. Sem uma oração, nunca despertei, Senhor. Tive, em minha casa, um oratório cheio de santos, aos quais adorava, acendendo-lhes velas e fazendo-lhes festas. E paguei sempre, generosamente, os sacramentos da Igreja! E concorri, sempre, com muito dinheiro para ela!
- E amaste ao teu próximo como a ti mesmo?
- Aos católicos, procurei amar, Senhor. E valeria a pena amar, porventura, a hereges, a infiéis: protestantes, judeus, espíritas e ateus?
- Está nos Evangelhos e o disse Jesus, que divinizou a tua Igreja: “Vai reconciliar-te primeiro com o teu inimigo, antes de fazeres a tua oferta ao Senhor. Ama aos teus inimigos”. Não há uma religião para a salvação. O céu será daquele que tenha sabido amar ao próximo como a si mesmo, independente de raças, de crenças, de castas...
- Senhor, eu não sabia! Na minha crença pura e sincera, fiei-me no ensino dos padres! Pensava que ninguém fora da Igreja Católica se salvaria. Eu contava, por isso, com a tua salvação. Perdoa, Senhor!
- Tua ignorância ser-te-á um atenuante. Voltarás à Terra e, na escola da vida, aprenderás a servir a Deus, amando ao teu próximo...
*
- E tu, de onde vens?
- Da Arábia, Senhor. Sou muçulmano, fidelíssimo servo de Maomé.
- Bem te conheço a ti. Aprendeste que não há Deus senão o teu Deus e que Maomé é o profeta desse Deus. Maomé, aquele que desceu à Terra para a iluminação de teu povo. E se Deus o fez descer entre os árabes é que este povo é o escolhido de Deus. Assim crês ter aprendido no Alcorão. E se, para servir a teu Deus se fizesse necessário perseguir, destruir, matar, vós teríeis perseguido, destruído e matado. Tanto mais sabendo que cada ato de perseguição, destruição e morte, seria entendido como um importante serviço ao Ismaelismo, que é a verdadeira religião de Maomé, que é a verdadeira religião, que é a tua religião.
Como te enganaste, alma! mal serve a Deus quem procura servi-Lo perseguindo, destruindo, matando. Serviste, quando muito, a lei morta da tua religião. Deus é amor e sabedoria. Só os sábios e os bons subirão a Deus, verão a Deus! Perdeste por teu culto, por tua fé, o teu tempo...
- Perdão, Senhor, eu não sabia...
- É o que te vale, alma, visto como não há justiça na condenação de criminosos e errados por ignorância. Voltarás à carne, para a escola da vida...
*
- Eu sou reformista, protestante. Era católico fanático, enquanto não conhecia os Evangelhos. Devo, pois, a Lutero a minha iluminação. Por isso, sei que estou salvo. A salvação ganhei-a pela minha fé pois ‘de graça sois salvos mediante a fé’ como está escrito nas Escrituras. As Escrituras não mentem nem minha fé mentiu.
- Mas, nas Escrituras, não se pode desprezar o espírito que vivifica pela letra que mata. E lê-se, também, nelas que, aquele que quiser ser o primeiro, se faça último pela modéstia, pela simplicidade; humilhe-se, perdoe; não se exalte e nem julgue aos semelhantes...
- Mas, Senhor...
- “A cada um será dado de acordo com as suas obras” lê-se, também, nas Escrituras em que tu, alma, cimentaste a tua fé. Se foi grande a tua fé, pequenas foram as tuas obras...
- Mas, Paulo, Senhor, assegura a salvação pela fé, somente.
- Sem embargo, assevera esse mesmo Paulo que, se tiver todos os outros dons e todas as virtudes e não se tiver a caridade, não se terá nada... E caridade sem obras...
- Perdoa, Senhor, que eu não interpretasse deste modo a tua justiça!...
- Volta de novo a Vida, a melhor escola para a prática das boas obras...
*
- Tu, quem és?
- Um desiludido, Senhor. Não cria na existência do espírito. Não acreditava em nada. Era positivista. Meu Deus era Augusto Comte, cuja doutrina me deslumbrou. Entretanto, sei que sou espírito e aqui estou para ser julgado. Uma coisa, porém, posso assegurar-te: procurei, o mais que pude, ser útil à humanidade simbolizada na mulher de minha adoração. ‘Viver para outrem’ era a minha divisa, Senhor. Se errei por não admitir a imortalidade, não acreditar em Deus, grande foi a minha renúncia, nas obras de caridade que realizei. Não as realizei visando a conquista do Céu, como os demais religiosos na Terra. Realizei-as pelo prazer exclusivo de realizá-las, se ser útil aos meus semelhantes. Não teve sentido para mim o ‘quem dá aos pobres empresta a Deus’, das religiões, porque não acreditava em Deus. Acaso não vale mais, porventura, do que a caridade egoísta, que se vai fazendo por aí, em nome das religiões que é, para mim, uma arma banal de conquistar o céu com benefícios materiais?
- Tens, de certo, razão. Onde não houve renúncia, onde não houve espontaneidade, onde não houve o sentimento de dar pelo prazer de dar somente, não houve, também, caridade. O prazer da recompensa só sente quem praticou a caridade.
Mas, houve orgulho na tua sabedoria, alma! Acreditaste demasiado na tua religião científica, obra dos homens. E, praticando-a, procuraste matar nos corações a centelha da fé, sem levar em conta que uma fé sincera é alimento para o espírito, o cibo dos corações famintos de amor, de justiça, de bondade! Tirar a fé a um coração, sem substituí-la por fé maior, mais confortadora e profunda é grave crime. E a tua sabedoria, como nenhuma sabedoria humana, saberá explicar o Universo e Natureza sem a idéia de um ente supremo, seu criador!...
- Ah! Senhor!...
- A sabedoria orgulhosa é uma exaltação. E é da lei: os que se exaltam serão humilhados...
- E as obras de caridade que realizei, Senhor?
- Serão levadas em conta. Voltarás à carne, a melhor escola, para o aprendizado do espírito, em melhor ambiente, em meio espiritualizado, com possibilidades maiores, para que, com a mesma renúncia e maior humildade e sem materialismo, ajustares à tua ciência e às tuas obras de caridade, ao sentido espiritual da vida.
- Obrigado, Senhor! Errei porque não sabia...
- Por isso que a tua pena foi atenuada!
*
- Professei, Senhor, o Espiritismo. Eu sou espírita. E, em nome de minha Doutrina, escalpelei os erros de muitas religiões, combati as mistificações do clero, fui um paladino da verdade. Pela pena e pela palavra, na tribuna, no livro e no jornal, fui um trabalhador extremado da Seara. Não espero ganhar o Céu, que não existe, bem o sei. Talvez faça juz a existência num planeta superior...
- Se as tuas obras o permitirem. Tu sabes que a melhor religião...
- É, Senhor, a que maior número de homens de bem produzir. Por isso que o Espiritismo não tem a pretensão de, só ele, salvar.
- E pregaste estas verdades com absoluta renúncia e desprendimento?
- Eu, Senhor... Confesso que, por vezes, as preguei por dever, não por abnegação; confesso que gostava do elogio dos confrades, das notícias laudatórias em torno de meu nome, dos jornais, sobre a minha ação doutrinária... Sacrificava, Senhor, ainda, este ou aquele serviço que podia prestar à Doutrina, por motivos fúteis: mau tempo, suposto cansaço, divertimentos sociais...
- E praticaste com os teus semelhantes as leis de fraternidade?
- Nem sempre, Senhor! Infelizmente, nem sempre! A divisa mesma do codificador ‘Trabalho, solidariedade e tolerância’ - não a realizei na sua inteireza doutrinária. Podia, Senhor, trabalhar mais; ser mais solidário com os meus confrades para as obras de caridade espiritual e material, conforme as exigências da Doutrina. Podia tolerar mais. Tolerei mais, por vezes, aos irmãos de outros credos, do que do próprio Espiritismo. Houve uma questão, Senhor, - a questão do corpo de Jesus - que me levou a discordar desfraternalmente dos confrades, a hostilizá-los, na crença de que meu ponto de vista era o verdadeiro...
- E, com quem está na Terra, a verdade absoluta?
- Ensinou-me a Doutrina que com ninguém, que com Doutrina alguma; que todas as Doutrinas e todos os que as estudam, possuem, a seu tanto, fragmentos da verdade absoluta, que é Deus...
- Logo, tua intolerância, tua falta de solidariedade e o teu labor incompleto... E fizeste o bem que pudeste?
- Nem sempre, Senhor. Podia ter feito mais. Tive, - foi uma fraqueza minha - mais apego do que devia, ao dinheiro. Dava dez, quando podia e devia dar cem...
- E a lei...
- Bem o sabia, Senhor, que é “Fora da Caridade não há Salvação”.
- E a lei é ‘a cada um segundo as suas obras’. Tu, alma, não podes alegar a teu favor a atenuante da ignorância. Tu sabias, tu conhecias a lei, tu ouviste muitas vezes as vozes do Alto, a conclamarem que ‘os espíritas são os cristãos modernos, a quem o Pai confiou a implantação do Cristianismo e a reforma da civilização e da humanidade.’ Ora, se tu não trabalhaste suficientemente; se não foste solidário e tolerante; se não viveste no mundo sem ser do mundo, como afirma o teu apego ao dinheiro; se tiveste vaidade na tua atuação doutrinária; se não colocaste a caridade acima de tudo...
- Mas, Senhor...
- “Mais será pedido a quem mais se houver dado.” É a lei. Dei-te alma, inteligência, forças físicas, recursos materiais, capacidade de ação. Porque não te aproveitaste de tanto, para o teu benefício? Erraste conscientemente. Voltarás à carne, a melhor escola para os espíritos rebeldes. Voltarás à carne, não na Terra, mas num mundo inferior à Terra, onde há mais choro e ranger de dentes e de onde não sairás sem que pagues até o último centil...
- Senhor, piedade para os espíritas, como eu, e nas mesmas condições que eu! que pena eu tenho deles!
- Eles tem o seu livre arbítrio e conhecem, ou devem conhecer, muito bem, a Doutrina. E tem, a par disso, os seus guias espirituais, e os seus amigos da Espiritualidade. Não podem, não devem, não lhes fica bem errar. Se errarem, porque suas responsabilidades são maiores, piores serão as conseqüências dos seus erros...
Meditemos, irmãos em Jesus, e companheiros de Doutrina, na lição do apólogo. E procuremos, cristãmente, espiritamente, conscientemente, despertar as nossas melhores energias para a realização de quanto nos cabe às responsabilidades. E, demasiado grandes são elas, as nossas responsabilidades! Atentai bem que o Espiritismo, a par de seu aspecto religioso-cristão é, também, ciência e filosofia. E sem estudo é impossível aprender uma filosofia e uma ciência... Atentai mais que o Espiritismo é - diz-no-lo o exame sereno e racional de sua doutrina - o único ismo, capaz de integrar a humanidade naquilo que todos nós aspiramos, para que todos nós vivemos: a Felicidade! Atentai ainda que ‘os espíritas são - proclamam urbi et orbi - as vozes autorizadas da Espiritualidade - os cristãos modernos’. ‘É justo, portanto que a nossa fé, os nossos atos, as nossas convicções, o nosso testemunho se paralelem aos dos cristãos primitivos, aqueles mesmos que avançavam para os dentes das feras, com os olhos iluminados de luz estranha, cheios de fé os corações, as almas voltadas para o Divino Mestre! E esse testemunho, e essas convicções de fé e aquela iluminação, só te-la-emos com a leitura dos Evangelhos de Jesus, interpretados à luz do Espiritismo. Leitura compreendida e assimilada; o que só realizar podemos em ambientes harmônicos e fraternos. E lidos, compreendidos e assimilados que sejam os Evangelhos, imprescinde-se-nos que os sintamos. Carecemos sentir a Doutrina na sua inteireza espiritual, para a prática de seus ensinamentos, de vez que a Lei é ‘a cada um segundo as suas obras’. E só então seremos espíritas integrais, cristãos modernos, capazes da reforma humana.
Deus é Sabedoria e é Bondade. E ‘somente os puros e sábios verão a Deus’.
Amigos, irmãos, companheiros de estudo dos Evangelhos: queiramos ver a Deus!
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