Olho por Olho
João Marcus
Reformador (FEB) pág. 273 Setembro 1974
Em quatro passagens diferentes a Bíblia reproduz a expressão “olho por olho”: três no Antigo Testamento e uma no Novo. A primeira é em Êxodo, 21:23-25. O legislador trata de regulamentar, com a conhecida rigidez, o relacionamento difícil e precário daquela massa amorfa de gente que procura amalgamar num povo disciplinado e ordeiro. O texto consta do “Código da Aliança”, que consiste num desdobramento ou detalhamento do Decálogo, explicitando normas para as questões civis e criminais. Começa com as leis sobre o altar, prossegue com a legislação atinente aos escravos, passa pelo homicídio e aborda, a seguir, o problema dos golpes e ferimentos. Chegado ao ponto indicado, diz:
“Se alguém, no curso de uma disputa, dar golpe em mulher grávida e provocar o parto sem outro dano, o culpado será multado, conforme o impuser o marido e mediante arbítrio. Mas, se recusar dano, dará vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé. queimadura por queimadura, ferimento por ferimento, machucado por machucado.”
Mais tarde, no Levítico, capítulo 24, versículos 19 e seguintes, volta a lei, ainda implacável, com as “prescrições complementares”, insistindo na pena de talião, donde vem, obviamente, a palavra retaliação, que significa revide, ou seja, pagar uma ofensa com outra equivalente ou maior. Dizem estes versículos:
“Se alguém causa uma lesão, como ele faz assim se fará com ele: fratura por fratura, olho por olho, dente por dente; será feita nele a mesma lesão que haja causado a outrem.”
Em Deuteronômio, 19:21, encontramos novamente a expressão, quando a legislação antiga regulamenta o testemunho na corte, perante os juízes. Se o testemunho for falso, a lei manda aplicar a pena de talião e recomenda:
“Não terás piedade dele, vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé.”
A prática da retaliação estava, pois, profundamente enraizada na psicologia do povo. Era não apenas permitida, mas prescrita claramente, recomendada, incentivada. Era um direito que cabia ao ofendido: o do revide na mesma proporção da ofensa.
Conhecendo hoje, na perspectiva do tempo, as razões dessas duras prescrições, nem assim podemos aceitá-las sem ressalvas bastante sérias, porque elas muito contribuíram para implantar, através dos tempos, sob o manto protetor da lei, o princípio da vingança, em oposição à lei do perdão. A vingança prende o ofendido ao ofensor e reabre o ciclo que se alarga através dos tempos, pelo mecanismo da reencarnação. Aquele que se vinga ao pé da letra diante da agressão física ou moral assume simultaneamente o compromisso de resgatar sua nova falta mais adiante, no tempo. Quando recebemos, em nossas sessões de desobsessão, o Espírito que cobra uma falta praticada contra ele, é comum ouvi-lo citar a lei mosaica. Esquece-se ele, porém, ou o ignora, que é exatamente por causa dessa lei que ele não deve acionar o dispositivo da vingança. O ciclo da ofensa não é fechado. Se lhe foi possível funcionar como ofendido, prejudicado, imolado à calúnia, à agressão, ao falso testemunho, ao crime, afinal, é porque ele próprio foi objeto da mesma pena, pois no passado, ele também ofendeu, prejudicou, caluniou, agrediu, praticou crimes semelhantes e, voltando a praticá-los na vingança, predispõe-se fatalmente a nova cobrança de alguém, alhures.
É certo que a prescrição de Moisés, reproduzida pelos que se lhe seguiram ao longo dos séculos, tinha em vista preservar um mínimo de respeito à vida e à integridade física e moral do semelhante, mas o Cristo extrairia do ensinamento uma conotação inteiramente oposta, ao dizer, segundo Mateus, 5:38-40:
“Ouvistes dizer: Olho por olho e dente por dente. Pois eu vos digo que não resistais ao mal; antes, ao que vos bata na face direita, oferecei-lhe também a outra, ao que desejar disputar-vos a túnica, dai-lhe também o manto, ao que se vos obrigue a andar una milha, ide com ele duas milhas.”
Que estranha filosofia é essa que tão fundamente contraria a lei antiga? Como pode aquele que recebe uma bofetada na face direita apresentar a esquerda ao agressor? Por que tão estranho comando de conformismo e renúncia?
Muitos dos chamados “espíritos fortes”, interpretando essas palavras ao pé da letra, acusaram a doutrina do Cristo de ser uma escola de covardes, porque sempre foi de bom padrão ético entre os homens a vingança pronta, radical, definitiva, arrasadora. A honra se lava com sangue. O duelo era, até há pouco, no século passado, o recurso doloroso da reparação e por ele muitas encarnações promissoras e redentoras chegaram a trágico fim, muitos lares se cobriram de luto e em muitos rostos rolaram lágrimas. Onde está, porém, a covardia? Naquele que deu a outra face à bofetada e corajosamente enfrentou o ridículo, a vergonha ou a humilhação necessária, ou naquele que, assustado diante da vergonha, acovardado ante a humilhação, matou ou se deixou matar para fugir à aflição do resgate ou da provação?
Não resistais ao mal, dizia o Mestre. Isto não quer dizer, é claro, que tenhamos de cruzar os braços diante do mal, o que seria pactuar com ele, mas não devolver o mal com o mal, porque então, sim, passamos à condição de participes dele e somos apanhados pelas suas implacáveis engrenagens.
Não resistais ao mal, ensina o Cristo em Mateus e completa seu pensamento, ainda em Mateus, no capítulo 26. Aproximava-se a hora extrema. Jesus conversava com os seus no Jardim de Getsamani, quando chegou Judas acompanhado daqueles que deveriam prendê-lo. Houve reação da parte dos que o ouviam.
“Nisto - escreve Mateus -, um dos que estavam com Jesus levou a mão à espada, sacou-a e, ferindo o servo do Sumo Sacerdote, cortou-lhe a orelha. Disse-lhe então Jesus: Devolve a espada a sua bainha, porque todos os que empunham a espada pela espada hão de perecer.”
João repetiria idéia semelhante no Apocalipse, capítulo 13, versículo 10:
“Aquele que levar alguém para o cárcere, para o cárcere há de ir; o que faz morrer pela espada, pela espada há de morrer.”
Essa é a chave: a da responsabilidade pessoal pelos atos que praticamos, a certeza inexorável de que esses atos voltam sobre nós, tanto os bons como os outros. Esse conceito evangélico, O Espiritismo conhece sob o nome de lei de ação e reação. Não há mais dúvida para aqueles que estudaram a Doutrina dos Espíritos; que cada um de nós constrói seu próprio destino inteiramente livre na ação, mas irrevogavelmente preso à reação. Nosso livre arbítrio nos permite fazer hoje o que entendermos da nossa vida, sujeitos apenas à condicionante das ações passadas que nos inibem algumas escolhas, certos, porém, de que as nossas decisões de hoje condicionarão, por sua vez, as escolhas futuras. É nesse delicado e preciso mecanismo que se resolve o velho e disputado problema do livre arbítrio em choque com o determinismo. Somos livres, sim, de agir agora. Podemos escolher o bem ou o mal, o comodismo ou a renúncia, o trabalho ou a ociosidade. Amanhã, porém, quando a ação passada nos obrigar a aceitar a reação inevitável, não poderemos queixar-nos dos rigores da lei, nem deblaterar contra a “injustiça” de Deus que faz sofrer o “inocente”. O que fez parecer pela espada pela espada há de perecer. O que privou o irmão do dom sublime da visão há de viver nas trevas. O que enlanguesceu na opulência ociosa mal terá o que comer e o que vestir. Se além dessas dificuldades não tiver fé, não será nem daqueles a quem dizia o Cristo que fossem como as aves do céu ou os lírios do campo que não colhiam nem teciam e, no entanto, nem Salomão se vestira como eles, com tão rica plumagem ou tão delicada e perfumada beleza. As lições do Cristo estão aí mesmo, repetidas insistentemente ao longo de muitos séculos. Nós, que vivemos esses séculos, aqui ou no espaço, muitas vezes lemos e ouvimos esses mesmos ensinamentos proclamados em toda parte, em todos os tempos, a toda gente. O que estamos esperando para colocá-los em prática? Mais um punhado de séculos?
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