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domingo, 29 de setembro de 2013

XVI b. 'Apreciando a Paulo'


XVI b
‘Apreciando a Paulo’
      comentários em torno
    das Epístolas de S. Paulo
   por Ernani Cabral

Tipografia Kardec - 1958

            O Nazareno, ainda aí, proclamou a superioridade de seu Pai Celestial. Com efeito, o Criador, que é único, como disse Paulo de Tarso é “sobre todos, e por todos e em todos”. (Efésios, 4:6)

            Os teólogos católicos, porém, procuram fazer uma distinção entre Jesus homem e Jesus Deus, distinção sutilíssima, que a Bíblia não faz. Dizem que, como homem, Jesus era inferior a Deus, mas que, em Espírito, é igual a Deus, como integrante da Santíssima Trindade. Mas as declarações do Cristo, feitas a Madalena, depois da ressurreição, como se vê em João, 20:17, e que acima transcrevemos, desmentem essa interpretação sofística, porque aí Jesus era, como todos estão de acordo, somente Espírito, e ainda chamava aos apóstolos “irmãos” e a Deus, “Pai” e “meu Deus”, frisando bem: “eu subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus”.

            Portanto, em face de tão peremptórias assertivas de Jesus, a Igreja não teve razão em criar o dogma do Mistério da Santíssima Trindade, simples repetição da crença dos povos antigos a que ela mesma chama pagãos, e que também admitiam, embora sob outros aspectos e com outra aparência, essa Trindade Divina. Ela não podia desprezar o Velho Testamento e nem se chocar com esses versículos do Novo, para basear-se só em outros, pois que todos devem ser interpretados em harmonia.

            É verdade que São João chamou Deus ao Messias, mas isto, como veremos, não implica de forma alguma com a clara e justa afirmação de Paulo, ao escrever este que Jesus “não teve por usurpação ser igual a Deus”. E o que São Tiago disse, e que somente João registrou, foi naturalmente num arroubo místico, ao ver o Cristo materializado (João, 20:28), mas tal afirmativa, que não se encontra nos outros Evangelhos, chamados sinóticos, não pode desfazer as palavras que brotaram dos próprios lábios de Jesus e que acima transcrevemos. O Cordeiro de Deus jamais discordaria do Velho Testamento, em ponto tão substancial, qual seja o que manifesta a primeira Revelação, que é o Monoteísmo. E, realmente, Jesus confirmou o Pentateuco nesta parte essencial, conforme provamos com suas próprias palavras, secundadas ainda pelas de Paulo, o vulgarizador do Cristianismo e seu vaso escolhido para levá-las “aos gentios, aos reis e aos filhos de Israel”. (Atos, 9:15.)

            Um ilustre padre romano já disse, confirmando, aliás, o pensamento de sua Igreja: “O Judaísmo era um ponto luminoso na esfera negra do Paganismo. O tesouro nacional mais rico, guardado por séculos, era o Monoteísmo.” Logo, por que a Igreja de Roma criou a Trindade, contrariando o Velho Testamento e as palavras de Jesus?

            Quanto àquela assertiva de João, dizendo que “o Verbo era Deus” (João, 1:1), ninguém pode afirmar, em sã consciência, como em seguida provaremos, que essa palavra “Deus”, usada por São João, tenha sido escrita no texto original com letra maiúscula ou minúscula.

            O Evangelho de João foi escrito em Éfeso, cidade das mais cosmopolitas e cultas da Ásia Menor, onde aquele apóstolo querido fora residir com Maria, a pedido do Rabi, que do alto da cruz lha entregara a seus cuidados (João, 19:27). Foi grafado originariamente em grego, língua internacional de seu tempo, lá pelo ano setenta da nossa era. Foi o último dos quatro Evangelhos ditos “canônicos”, pois que os três sinóticos lhe são anteriores. Alguns autores entendem mesmo que ele foi escrito no último decênio do primeiro século.

            Ora, a escrita antiga, usada pelos copistas dos Evangelhos, era cursiva, 0].1 uncial, composta só de maiúsculas. A partir do século IV, quando se generalizou o uso dos pergaminhos, passaram a usar a escrita minúscula. E desde o século IX só se encontram manuscritos com minúsculas. Quando usavam, antigamente, a escrita maiúscula, o manuscrito era composto só de letras maiúsculas; e quando usavam a minúscula, só se utilizavam de letras pequenas. Os escritos eram feitos seguidamente, pois os escribas não separavam as palavras entre si e nem se utilizavam da pontuação, mas grafavam os vocábulos como eram falados. Vale ainda, como curiosidade, o seguinte: a divisão da Bíblia em capítulos foi feita, pela primeira vez, por Estevão Langton, em 1214. E a divisão do Novo Testamento, em versículos, data de 1555, quando Roberto Estêvão assim editou sua Bíblia, corrigindo a de Sanctos Pagnini, de 1528, “cuja numeração versicular ficou para o Antigo Testamento”. Todas estas particularidades estão na obra do erudito jesuíta espanhol João Leal - Os Evangelhos e a Critica Moderna (Porto, 1945).

            Portanto, em face de os escribas só usarem a letra maiúscula ou somente a minúscula, não se pode garantir que no texto primitivo esteja “e o Verbo era Deus”, como hoje consta da Vulgata, ou se estava escrito “e o verbo era deus”, o que é mais provável e lógico, pois acreditamos que o apóstolo João, por mais entusiasmado que fosse por Jesus, não o havia de querer igualar ao Pai Celestial, contrariando as lições de seu Mestre, reiteradamente dadas. Mas vem a propósito lembrar que nós também somos deuses (Salmos, 82:6; Isaías, 41 :23 e João, 10 :34) em formação e em evolução, pois gozamos de imortalidade e, como Jesus, somos filhos de Deus (Deut., 14:1; João, 1:12 e 11:52; Romanos, 8:16; I João, 3:1 e 2) Algum dia, quando atingirmos a perfeição sideral, seremos consumados na unidade (João, 17:23) e, embora sem perdermos a individualidade, seremos “um com o Pai”.

            É neste sentido que podemos admitir que Jesus é deus, pois Ele mesmo repetiu o que está escrito em Salmos, 82:6 e Isaías, 41 :23, como se vê em João, 10 :33 a 36, o que pedimos ao leitor conferir.

            O Divino Mestre é o Espírito mais puro que já baixou à Terra. É mesmo o protetor e o governador de nosso planeta, tanto que “ninguém irá ao Pai senão por seu intermédio”. Dele estamos distanciados, possivelmente, por milhões de anos; é para nós, por assim dizer, como que um Deus, pois que foi e é a expressão de Deus para a Terra; mas, apesar de tudo, é nosso Irmão maior (como ele mesmo se confessou, referindo-se aos seus apóstolos), porque o Pai Celestial, o Deus dos deuses, é só um. Ele está na congregação dos poderosos e julga no meio dos deuses (Salmo, 82 :1).

            As passagens que levaram os “doutores em Teologia” a cometer aquele erro de interpretação, por tomá-las ao pé da letra, extraindo do Novo Testamento uma Trindade Divina, semelhante a dos povos antigos (a que eles mesmos chamam hereges), são além daquela com que João inicia seu Evangelho, as seguintes:

            “Eu e o Pai somos um.” (João, 10:30.)
            “Quem me vê a mim, vê o Pai.” (João, 14:9.)

            Mas não se devem entender tais versículos isoladamente, porém em conjunto com os demais, para que não contrariem aquelas outras afirmativas, que também brotaram dos lábios de Jesus.

            O Divino Mestre esclarece que sua unidade com Deus é através da palavra ou da doutrina, e termina assegurando que os cristãos serão também consumados nessa unidade, que afinal consiste no amor.

            “Não crês tu que eu estou no Pai, e que o Pai está em mim? As palavras que vos digo, não as digo de mim mesmo, mas o Pai que está em mim, é que faz as obras. “Crede-me que estou no Pai e o Pai em mim; crede-me, ao menos, por causa das mesmas obras.”(João, 14:10 e 11)

            Quem está com Deus tem o Pai no coração, como Jesus, e manifestará em obras sua elevação espiritual, através do amor.

            “Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o amará, e viveremos para ele e faremos nele morada.” (João, 14:23.)

            Assim, o Pai e Jesus são um, porque este já está consumado na Unidade Divina, pois é perfeito. Outros já estão ou serão integrados nessa mesma unidade, quando atingirem essa perfeição sideral, mas sem perderem a individualidade, porque estarão com Deus, sendo embora distintos de Deus, que é um só. A integração na divindade não implica em desmembramento da pessoa de Deus, que é sempre diversa e superior à sua obra ou aos deuses que cria.

            “E não rogo somente por estes, mas também por aqueles que pela sua palavra hão de crer em mim; Para que todos sejam um, como tu, ó Pai, o és em mim e eu em ti; que também eles sejam um em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste. E eu lhes dei a glória que a mim me deste, para que sejam um, como nós somos um. Eu neles e tu em mim, para que eles sejam perfeitos em unidade.” (João, 17:20 a 23).

            Muitos outros tradutores da Bíblia, como ainda recentemente monsenhor Vicente Zione, reitor do Seminário Central de São Paulo (edição do Novo Testamento da “Pia Sociedade de São Paulo” - 1950), usam as palavras “para que sejam CONSUMADOS NA UNIDADE”, in verbis: “Eu estou neles e tu em mim, para que sejam consumados na unidade.” (João, 17:23)

            A Unidade Divina, portanto, não é fruto de uma Trindade, mas de todos os cristãos sinceros que nela serão consumados, sem que o Pai deixe de ser UM, em essência criadora e em personalidade, distinto de sua obra.

            É a explicação desse ponto da verdade, que distingue, substancialmente, o Cristianismo do Budismo. Este afirma que cairemos afinal, como gotas de água, no grande oceano do Nirvana, onde está a divindade, e ali nos confundiremos com ela. O Cristianismo, ora bem esclarecido “em espírito e verdade” pelos Mensageiros do Senhor, diz que algum dia atingiremos a unidade, porém sem perdermos a individualidade.

            E essa Unidade Divina sintetiza-se no amor e, destarte, “quem vê a Jesus vê o Pai” e é nisto que ele é “um com o Pai”, num amor eterno e infinito a todas as criaturas e a toda a Criação! Mesmo porque “Deus é amor” (I João, 4:8). Mas o Criador é Espírito único, embora seu amor se manifeste por toda a parte, pois toda a sua obra também é amor. E este sentimento sublime nos deve unir e purificar, evolutivamente, através dos séculos, até sermos consumados na Unidade Divina, na grandeza desse amor universal, que é eterno, fecundo, perfeito, infinito e auto suficiente. 

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