XVI b
‘Apreciando a Paulo’
comentários em torno
das Epístolas de S. Paulo
por Ernani Cabral
Tipografia Kardec - 1958
O Nazareno, ainda aí, proclamou a
superioridade de seu Pai Celestial. Com efeito, o Criador, que é único, como
disse Paulo de Tarso é “sobre todos, e por todos e em todos”. (Efésios, 4:6)
Os teólogos católicos, porém,
procuram fazer uma distinção entre Jesus homem e Jesus Deus, distinção sutilíssima,
que a Bíblia não faz. Dizem que, como homem, Jesus era inferior a Deus, mas
que, em Espírito, é igual a Deus, como integrante da Santíssima Trindade. Mas
as declarações do Cristo, feitas a Madalena, depois da ressurreição, como se vê
em João, 20:17, e que acima transcrevemos, desmentem essa interpretação
sofística, porque aí Jesus era, como todos estão de acordo, somente Espírito, e
ainda chamava aos apóstolos “irmãos” e a Deus, “Pai” e “meu Deus”, frisando
bem: “eu subo para meu Pai e vosso Pai, meu Deus e vosso Deus”.
Portanto, em face de tão
peremptórias assertivas de Jesus, a Igreja não teve razão em criar o dogma do
Mistério da Santíssima Trindade, simples repetição da crença dos povos antigos
a que ela mesma chama pagãos, e que também admitiam, embora sob outros aspectos
e com outra aparência, essa Trindade Divina. Ela não podia desprezar o Velho
Testamento e nem se chocar com esses versículos do Novo, para basear-se só em
outros, pois que todos devem ser interpretados em harmonia.
É verdade que São João chamou Deus
ao Messias, mas isto, como veremos, não implica de forma alguma com a clara e
justa afirmação de Paulo, ao escrever este que Jesus “não teve por usurpação
ser igual a Deus”. E o que São Tiago disse, e que somente João registrou, foi
naturalmente num arroubo místico, ao ver o Cristo materializado (João, 20:28),
mas tal afirmativa, que não se encontra nos outros Evangelhos, chamados
sinóticos, não pode desfazer as palavras que brotaram dos próprios lábios de
Jesus e que acima transcrevemos. O Cordeiro de Deus jamais discordaria do Velho
Testamento, em ponto tão substancial, qual seja o
que manifesta a primeira Revelação, que é o Monoteísmo. E, realmente, Jesus
confirmou o Pentateuco nesta parte essencial, conforme provamos com suas
próprias palavras, secundadas ainda pelas de Paulo, o vulgarizador do
Cristianismo e seu vaso escolhido para levá-las “aos gentios, aos reis e aos filhos de Israel”. (Atos, 9:15.)
Um ilustre padre romano já disse,
confirmando, aliás, o pensamento de sua Igreja: “O Judaísmo era um ponto
luminoso na esfera negra do Paganismo. O tesouro nacional mais rico, guardado
por séculos, era o Monoteísmo.” Logo, por que a Igreja de Roma criou a
Trindade, contrariando o Velho Testamento e as palavras de Jesus?
Quanto àquela assertiva de João,
dizendo que “o Verbo era Deus” (João, 1:1), ninguém pode afirmar, em sã
consciência, como em seguida provaremos, que essa palavra “Deus”, usada por São
João, tenha sido escrita no texto original com letra maiúscula ou minúscula.
O Evangelho de João foi escrito em
Éfeso, cidade das mais cosmopolitas e cultas da Ásia Menor, onde aquele
apóstolo querido fora residir com Maria, a pedido do Rabi, que do alto da cruz
lha entregara a seus cuidados (João, 19:27). Foi grafado originariamente em grego,
língua internacional de seu tempo, lá pelo ano setenta da nossa era. Foi o
último dos quatro Evangelhos ditos “canônicos”, pois que os três sinóticos lhe
são anteriores. Alguns autores entendem mesmo que ele foi escrito no último
decênio do primeiro século.
Ora, a escrita antiga, usada pelos
copistas dos Evangelhos, era cursiva, 0].1 uncial, composta só de maiúsculas. A
partir do século IV, quando se generalizou o uso dos pergaminhos, passaram a
usar a escrita minúscula. E desde o século IX só se encontram manuscritos
com minúsculas. Quando usavam, antigamente, a escrita maiúscula, o manuscrito
era composto só de letras maiúsculas; e quando usavam a minúscula, só se
utilizavam de letras pequenas. Os escritos eram feitos seguidamente, pois os
escribas não separavam as palavras entre si e nem se utilizavam da pontuação,
mas grafavam os vocábulos como eram falados. Vale ainda, como curiosidade, o
seguinte: a divisão da Bíblia em capítulos foi feita,
pela primeira vez, por Estevão Langton, em 1214. E a divisão do Novo
Testamento, em versículos, data de 1555, quando Roberto Estêvão assim editou
sua Bíblia, corrigindo a de Sanctos Pagnini, de 1528, “cuja numeração
versicular ficou para o Antigo Testamento”. Todas estas particularidades estão
na obra do erudito jesuíta espanhol João
Leal - Os Evangelhos e a Critica Moderna (Porto, 1945).
Portanto, em face de os escribas só
usarem a letra maiúscula ou somente a minúscula, não se pode garantir que no
texto primitivo esteja “e o Verbo era Deus”, como hoje consta da Vulgata, ou se
estava escrito “e o verbo era deus”, o que é mais provável e lógico, pois
acreditamos que o apóstolo João, por mais entusiasmado que fosse por Jesus, não
o havia de querer igualar ao Pai Celestial, contrariando as lições de seu
Mestre, reiteradamente dadas. Mas vem a propósito lembrar que nós também somos
deuses (Salmos, 82:6; Isaías, 41 :23 e João, 10 :34) em formação e em evolução,
pois gozamos de imortalidade e, como Jesus, somos filhos de Deus (Deut., 14:1;
João, 1:12 e 11:52; Romanos, 8:16; I João, 3:1 e 2) Algum dia, quando
atingirmos a perfeição sideral, seremos consumados na unidade (João, 17:23) e,
embora sem perdermos a individualidade, seremos “um com o Pai”.
É neste sentido que podemos admitir
que Jesus é deus, pois Ele mesmo repetiu o que está escrito em Salmos, 82:6 e
Isaías, 41 :23, como se vê em João, 10 :33 a 36, o que pedimos ao leitor
conferir.
O Divino Mestre é o Espírito mais
puro que já baixou à Terra. É mesmo o protetor e o governador de nosso planeta,
tanto que “ninguém irá ao Pai senão por
seu intermédio”. Dele estamos
distanciados, possivelmente, por milhões de anos; é para nós, por assim dizer,
como que um Deus, pois que foi e é a expressão de Deus para a Terra; mas, apesar de tudo, é nosso Irmão
maior (como ele mesmo se confessou, referindo-se aos seus apóstolos), porque o
Pai Celestial, o Deus dos deuses, é só um. Ele está na congregação dos
poderosos e julga no meio dos deuses (Salmo, 82 :1).
As passagens que levaram os “doutores
em Teologia” a cometer aquele erro de interpretação, por tomá-las ao pé da
letra, extraindo do Novo Testamento uma Trindade Divina, semelhante a dos povos
antigos (a que eles mesmos chamam hereges), são além daquela
com que João inicia seu Evangelho, as seguintes:
“Eu e o Pai somos um.” (João,
10:30.)
“Quem me vê a mim, vê o Pai.” (João,
14:9.)
Mas não se devem entender tais
versículos isoladamente, porém em conjunto com os demais, para que não
contrariem aquelas outras afirmativas, que também brotaram dos lábios de Jesus.
O Divino Mestre esclarece que sua
unidade com Deus é através da palavra ou da doutrina, e termina assegurando que
os cristãos serão também consumados nessa unidade, que afinal consiste no amor.
“Não
crês tu que eu estou no Pai, e que o Pai está em mim? As palavras que vos digo,
não as digo de mim mesmo, mas o Pai que está em mim, é que faz as obras. “Crede-me
que estou no Pai e o Pai em mim; crede-me, ao menos, por causa das mesmas obras.”(João,
14:10 e 11)
Quem está com Deus tem o Pai no coração,
como Jesus, e manifestará em obras sua elevação espiritual, através do amor.
“Se
alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o amará, e viveremos para ele
e faremos nele morada.” (João, 14:23.)
Assim, o Pai e Jesus são um, porque este
já está consumado na Unidade Divina, pois é perfeito. Outros já estão ou serão
integrados nessa mesma unidade, quando atingirem essa perfeição sideral, mas
sem perderem a individualidade, porque estarão com Deus, sendo embora distintos
de Deus, que é um só. A integração na divindade não implica em desmembramento
da pessoa de Deus, que é sempre diversa e superior à sua obra ou aos deuses que
cria.
“E
não rogo somente por estes, mas também por aqueles que pela sua palavra hão de
crer em mim; Para que todos sejam um, como tu, ó Pai, o és em mim e eu em ti;
que também eles sejam um em nós, para que o mundo creia que tu me enviaste. E
eu lhes dei a glória que a mim me deste, para que sejam um, como nós somos um. Eu
neles e tu em mim, para que eles sejam perfeitos em unidade.” (João, 17:20
a 23).
Muitos outros tradutores da Bíblia,
como ainda recentemente monsenhor Vicente Zione, reitor do Seminário Central de
São Paulo (edição do Novo Testamento da “Pia Sociedade de São Paulo” - 1950),
usam as palavras “para que sejam CONSUMADOS NA UNIDADE”, in verbis: “Eu estou neles
e tu em mim, para que sejam consumados na unidade.” (João, 17:23)
A Unidade Divina, portanto, não é
fruto de uma Trindade, mas de todos os
cristãos sinceros que nela serão consumados, sem que o Pai deixe de ser UM,
em essência criadora e em personalidade, distinto de sua obra.
É a explicação desse ponto da
verdade, que distingue, substancialmente, o Cristianismo do Budismo. Este
afirma que cairemos afinal, como gotas de água, no grande oceano do Nirvana,
onde está a divindade, e ali nos confundiremos com ela. O Cristianismo, ora bem
esclarecido “em espírito e verdade” pelos Mensageiros do Senhor, diz que algum
dia atingiremos a unidade, porém sem perdermos a individualidade.
E essa Unidade Divina sintetiza-se
no amor e, destarte, “quem vê a Jesus vê
o Pai” e é nisto que ele é “um com o
Pai”, num amor eterno e infinito a todas as criaturas e a toda a Criação!
Mesmo porque “Deus é amor” (I João, 4:8). Mas o Criador é Espírito único,
embora seu amor se manifeste por toda a parte, pois toda a sua obra também é
amor. E este sentimento sublime nos deve unir e purificar, evolutivamente,
através dos séculos, até sermos
consumados na Unidade Divina, na grandeza desse amor universal, que é eterno,
fecundo, perfeito, infinito e auto suficiente.
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