Crônica
de Beatriz
escreve Dinah Silveira de Queiroz
Contarei hoje uma história que me podia servir como
ótimo material para um conto. Não procurarei analisá-la - não é esta a missão
da cronista.
Contarei simplesmente o que me foi narrado, aliás,
por uma pessoa de toda a confiança. Trata-se de uma visita a um
"médium", feita por uma jovem de vinte e dois anos. De acordo com a
descrição da pessoa que me contou a história, é ele um homem que não comparece
a sessões espíritas. Procura concentrar-se, cai em transe, como dizem os
espíritas, e vai descrevendo o que vê. A moça em questão tem duas
características: primeira - é linda, com uma lindeza acompanhada por outras
graças: simpatia, jovialidade, bom gênio. Segunda - nunca teve, nem conseguiu ter um namorado. E,
muito menos do que isso: não conseguiu sequer dançar normalmente nas festas em
que vai! Os rapazes a espiam de longe, misteriosos, e, como se ela possuísse
uma redoma de vidro, ficam perto, mas não chegam à decisão de um convite à
dança.
Descreveu-me o "médium" assim, quem
transmitiu a história à cronista:
- "É um moço magro, pálido; tem os braços
cobertos por uma vegetação de pelos que lhe dá um aspecto de homem das
cavernas. Antes de iniciar sua meditação estende os braços sob a torneira
aberta, e alisa vigorosamente aqueles pelos longuíssimos. Quando cai em transe
oferece um aspecto surpreendente: Eriça-se todo, como um porco-espinho. Os pelos
lentamente se põem de pé. Em relação à mocinha que o procurou, por padecer de
um mal muito triste - tomar chá de cadeira nas festas - esse vidente teceu o
comentário:
- "Os rapazes não se chegam perto, porque
"ela" não deixa!"
- "Ela quem?"
- "Beatriz, a moça vestida de noiva, que está
aí sempre junto de você. Contou-me que morreu no mesmo instante em que você
nasceu - e no mesmo hospital em que sua mãe deu à luz. Beatriz tivera uma
imensa desilusão com o noivo, que a seduzira, a maltratara brutalmente, e a
abandonara, em seguida. De tudo isso lhe viera a doença que a fizera morrer em
horror pelos homens. E ao morrer, como você então nascesse, sentiu pena e
atração por aquela pobre mulherzinha que viria ao mundo, talvez passar por
tristezas parecidas, Afeiçoou-se a você, e cuidando que lhe presta um grande
serviço, não deixa que nenhum rapaz se aproxime."
O médium parecia cansado Por fim, acrescentou:
- "Ela pede" - isto aconteceu em fins de
Outubro - "que você ponha um ramo de flores em seu túmulo, no dia de
Finados."
- "Mas como eu vou saber onde é o túmulo
dela?" - perguntou a moça, querendo e não querendo crer nas palavras do
"médium".
- "Ela está dizendo que você será
avisada."
Passaram-se vários dias. Chegou o dia de Finados. A
moça bonita, que afugentava os rapazes, pensava: "Conversei com um doido
varrido."
Mas na própria manhã do dia Dois de Novembro,
enquanto tomava o café, abriu o jornal e viu uma reportagem sobre o dia dos
mortos. Havia uma fotografia de uma pobre campa, lá no Cemitério de Inhaúma,
embaixo da qual fora escrita a legenda: Neste
túmulo não havia flores, mas em todos os túmulos vizinhos, desde ontem, as
sepulturas estavam floridas.
Foi com um baque no coração, que a moça leu: Beatriz.
Em baixo, uma -data - a do nascimento.
E logo em seguida a da morte: que era, exatamente, a do dia em que ela havia
nascido.
Nota de
"Reformador" - A crônica acima extraímo-la do "Jornal do
Commercio" de 12 de Dezembro findo. Publicamo-la, já por ser da autoria da
festejada escritora Dinah Silveira de Queiroz, recentemente premiada e elogiada
pela Academia Brasileira de Letras, já por se tratar de uma escritora insuspeita,
pois que todos sabemos, e ela própria o tem dito inúmeras vezes, ser ela católica,
apostólica e romana.
in Reformador (FEB) Fevereiro 1955
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