quarta-feira, 24 de abril de 2013

'Crônica de Beatriz'





Crônica de Beatriz


escreve      Dinah Silveira de Queiroz

Contarei hoje uma história que me podia servir como ótimo material para um conto. Não procurarei analisá-la - não é esta a missão da cronista.

Contarei simplesmente o que me foi narrado, aliás, por uma pessoa de toda a confiança. Trata-se de uma visita a um "médium", feita por uma jovem de vinte e dois anos. De acordo com a descrição da pessoa que me contou a história, é ele um homem que não comparece a sessões espíritas. Procura concentrar-se, cai em transe, como dizem os espíritas, e vai descrevendo o que vê. A moça em questão tem duas características: primeira - é linda, com uma lindeza acompanhada por outras graças: simpatia, jovialidade, bom gênio. Segunda  -  nunca teve, nem conseguiu ter um namorado. E, muito menos do que isso: não conseguiu sequer dançar normalmente nas festas em que vai! Os rapazes a espiam de longe, misteriosos, e, como se ela possuísse uma redoma de vidro, ficam perto, mas não chegam à decisão de um convite à dança.

Descreveu-me o "médium" assim, quem transmitiu a história à cronista:

- "É um moço magro, pálido; tem os braços cobertos por uma vegetação de pelos que lhe dá um aspecto de homem das cavernas. Antes de iniciar sua meditação estende os braços sob a torneira aberta, e alisa vigorosamente aqueles pelos longuíssimos. Quando cai em transe oferece um aspecto surpreendente: Eriça-se todo, como um porco-espinho. Os pelos lentamente se põem de pé. Em relação à mocinha que o procurou, por padecer de um mal muito triste - tomar chá de cadeira nas festas - esse vidente teceu o comentário:

- "Os rapazes não se chegam perto, porque "ela" não deixa!"

- "Ela quem?"

- "Beatriz, a moça vestida de noiva, que está aí sempre junto de você. Contou-me que morreu no mesmo instante em que você nasceu - e no mesmo hospital em que sua mãe deu à luz. Beatriz tivera uma imensa desilusão com o noivo, que a seduzira, a maltratara brutalmente, e a abandonara, em seguida. De tudo isso lhe viera a doença que a fizera morrer em horror pelos homens. E ao morrer, como você então nascesse, sentiu pena e atração por aquela pobre mulherzinha que viria ao mundo, talvez passar por tristezas parecidas, Afeiçoou-se a você, e cuidando que lhe presta um grande serviço, não deixa que nenhum rapaz se aproxime."

O médium parecia cansado Por fim, acrescentou:

- "Ela pede" - isto aconteceu em fins de Outubro - "que você ponha um ramo de flores em seu túmulo, no dia de Finados."

- "Mas como eu vou saber onde é o túmulo dela?" - perguntou a moça, querendo e não querendo crer nas palavras do "médium".

- "Ela está dizendo que você será avisada."

Passaram-se vários dias. Chegou o dia de Finados. A moça bonita, que afugentava os rapazes, pensava: "Conversei com um doido varrido."

Mas na própria manhã do dia Dois de Novembro, enquanto tomava o café, abriu o jornal e viu uma reportagem sobre o dia dos mortos. Havia uma fotografia de uma pobre campa, lá no Cemitério de Inhaúma, embaixo da qual fora escrita a legenda: Neste túmulo não havia flores, mas em todos os túmulos vizinhos, desde ontem, as sepulturas estavam floridas.

Foi com um baque no coração, que a moça leu: Beatriz. Em baixo, uma -data - a do nascimento.

E logo em seguida a da morte: que era, exatamente, a do dia em que ela havia nascido.

Nota de "Reformador" - A crônica acima extraímo-la do "Jornal do Commercio" de 12 de Dezembro findo. Publicamo-la, já por ser da autoria da festejada escritora Dinah Silveira de Queiroz, recentemente premiada e elogiada pela Academia Brasileira de Letras, já por se tratar de uma escritora insuspeita, pois que todos sabemos, e ela própria o tem dito inúmeras vezes, ser ela católica, apostólica e romana.

in Reformador (FEB) Fevereiro 1955


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