Barudi, o cão obsidiado
José
Brígido
(Indalício Mendes)
Reformador
(FEB) Abril 1954
Yamed Bahra estava contente com Allah.
Vivia alegre, satisfeito da vida, cantarolando.
Mal deixava as tarefas diuturnas, corria
para a casa humilde, onde era recebido com vivas manifestações de contentamento
pelo cãozinho Barudi. Na despreocupação dos seus vinte anos Yamed semelhava um
menino de doze, quando se punha a correr pelos campos, brincando com Barudi,
que o compreendia à maravilha.
Cão inteligente, aprendera a andar sobre as
patas traseiras e estava quase treinado em fazê-lo apenas sobre as dianteiras,
o que era bem mais difícil. Barudi assimilava com incrível facilidade as lições
que Yamed Bahra lhe dava com o maior dos carinhos. Os vizinhos admiravam o
talento do cão e a paciência de seu dono. Nas horas de folga, reuniam-se numa
pequena praça, não longe da mesquita, e ali se demoravam, aplaudindo as habilidades
de Barudi, que saltava, dançava, latia de modos diversos, buscando interpretar
os anelos de Yamed. Até contar o cãozinho sabia. Yamed riscava no chão os
sinais aritméticos e Barudi batia com uma das patinhas, tantas vezes quantas correspondessem
ao sinal traçado.
Propostas vantajosas havia recebido o
rapaz, para se desfazer de Barudi. Vários pelotiqueiros lhe haviam oferecido
bolsas tentadoras, mas ele não se dispunha a vender o pequeno e valioso amigo.
Convidaram-no a se filiar a grupos de saltimbancos, para exibir-se nas feiras
públicas. Yamed permaneceu surdo a todas as solicitações. Era pobre, mas feliz,
porque não se contaminara das ambições que quase sempre multiplicam as aflições
do homem. Bastava-lhe o pouco que ganhava para viver modesta, mas decentemente,
e cuidar de Barudi, sempre limpo e bem alimentado.
*
Numa tarde quente, Yamed Bahra saiu a
passear com Barudi pelos arredores. Conhecido e estimado como era, de todos
recebia saudações alegres. Barudi saltava de um para outro lado, como que
desejando também agradecer os afagos que lhe faziam. Achava-se na vila um mago
vindo da Palestina. Sisudo, não participara do tom despreocupado das palavras
trocadas até então. Chegava mesmo a ser sombrio. Deixou que Yamed Bahra se
afastasse, quando, então, o chamou, dizendo-lhe:
- Allah esteja contigo, meu irmão! Todas as
alegrias que desfrutaste foram bem empregadas. Todavia, no céu da tua
existência há nuvens que ensombrecem o horizonte ...
- Que mal posso temer, se Allah me protege?
- respondeu Yamed.
- Mas ainda não foste submetido a provas
duras, a fim de demonstrares que, realmente, tens fé no poder do Altíssimo ...
Allah é todo amor e todo misericórdia. Mas as leis que estabeleceu têm de ser
cumpridas, ainda que não compreendamos seus altos e sábios desígnios. Já
ouviste falar que cada ser humano vive muitas vidas? Não?! Hoje, és feliz,
glorificas o santo nome de Allah, fazes as orações habituais, cumpres
religiosamente teus deveres humanos. Entretanto, todos temos deveres espirituais
a satisfazer, Yamed.
És estranho... Como sabes meu nome'?
- Acabo de ouvi-lo... Um ente espiritual
que não podes ver, mas que percebo nitidamente a meu lado, repetiu-mo: Yamed Bahra...
- Um djinn? - indagou Yamed, sobressaltado.
- Não. Um amigo ...
- És bruxo?!
- Enganas-te. Mas quis Allah que eu pudesse
ver e ouvir certas coisas, principalmente para
estimular o bem e evitar o mal ..
- Pensas que acredito nisso?
- Deves crer no que te digo. Se queres
viver tranquilamente os dias do futuro, não descures de tuas obrigações
espirituais. Pensas muito no teu cãozinho. És capaz de todos os sacrifícios
por ele. Farás o mesmo com um teu semelhante, necessitado de atenção e
caridade? Se Allah te tem favorecido com a paz e a alegria, não o decepciones,
Yamed. Mostra-Lhe tua gratidão, dividindo com irmãos sofredores os carinhos que
reservas exclusivamente para Barudi... Talvez assim consigas resistir aos
problemas que te aguardam. Minha mensagem está dada. -
"Astafiru'lah!" (Que Deus me perdoe!)...
Perplexo e intrigado, Yamed Bahra viu
afastar-se o desconhecido e muito depressa. dele se esqueceu, devotado ao
trabalho de ensinar novas artes a Barudi.
Muitos dias se passaram, após esse
encontro. Yamed continuara sua vida de todos os dias. Mal chegava do trabalho, corria para o cãozinho amado. Tudo ia bem,
maravilhosamente bem. Yamed nunca mais se lembrara do desconhecido, nem mesmo
quando, certa manhã, percebeu que Barudi estava quieto e tristonho. Agachou-se
junto a ele, fez-lhe festas, amimou-o. Tudo em vão. O animal parecia anestesiado,
tal a indiferença que apresentava... Isso não era normal. Sempre ele se
alegrara com a presença de Yamed. Agora, não. Estava apático e frio. Seus olhos
ora estavam baços, ora excessivamente brilhantes. Mas não havia vivacidade
alguma neles. O rapaz tomou-o nos braços, beijou-o, acariciou-o, chamou-o
ternamente pelo nome. O cão permaneceu ensimesmado. Decidiu-se Yamed a procurar
um veterinário. Barudi ficou sozinho, num recanto escuro, a cabeça pesando
sobre as patas inertes.
Mal chegado que foi, o "béitar"
(veterinário) balançou a cabeça, desesperançado:
- Que Allah me perdoe mas este cão está
começando a ficar raivoso... Tens que livrar-te dele, Yamed. Será melhor que o
mates, antes que seja tarde. Mate-o (que Allah dele se apiade), porque é única
solução para o caso, Yamed.
O rapaz não sabia o que dizer nem fazer.
Custava-lhe crer em semelhante tragédia. Perder o seu querido Barudi, era-lhe
provação pesada. Depois que o "béitar" se retirou, voltou para junto
do cão, na esperança de lhe poder ser útil. O animal, no entanto, ergueu-se,
colérico, arrepiando-se e mostrando-lhe os dentes, como se pretendesse atacá-lo.
Instintivamente, Yamed recuou gritando:
- Que é isso, Barudi! Sou eu, Yamed! Yamed!
Quieto, Barudi! Vamos, quieto! Quieto! O
cão avançava para ele vagarosamente, como que preparando um bote perigoso.
Yamed continuava
a gritar, sem resultado, Quanto mais barulho fazia, mais furioso se mostrava o
cão. Temeroso, Yamed procurou alcançar a porta, rugindo, depois de fechá-la
após si. Em poucos instantes, a vila inteira sabia do sucedido. E os murmúrios
se multiplicavam:
- Yamed está com o cão raivoso! Que Allah o
proteja!
- Tinha que acabar assim, por excesso de mimos.
Allah que me perdoe, mas isso estava ficando mesmo muito exagerado...
Um amigo de Yamed não acreditou. Correu
para a casa e adentrou-a. Foi atacado por Barudi, que o deixou semi-morto.
Retirarem-no cuidadosamente depois de afugentarem o pobre Barudi com longa e
pontiaguda vara. Ninguém mais se atreveu a invadir o lugar em que se ocultara o
animal. Nisto, Yamed reaparece. Fora buscar outro ''béítar'. Este não se
encorajou. Antes, deu-se pressa a fugir, receoso de que o vitimasse o cão
enfermo. Yamed chorava, a esta altura, desesperado. Tentou aproximar--se. Mas
Barudi, os olhos em fogo, uma babugem viscosa a escorrer-lhe da boca, avançou
contra ele, rosnando lugubremente, e forçando-lhe o recuo, Alguém,
audaciosamente, lançou um mastim agressivo e valente contra Barudi. Travou-se uma
luta tremenda. O pequenino cão de Yamed se agigantava na disputa. De um salto,
abocanhara o pescoço do rival, bem mais poderoso fisicamente, e ali se deteve,
enquanto o sangue borbotava abundante, dando um tom ainda mais trágico àquele
ambiente já tão conturbado.
Ninguém ousava acercar-se dos dois animais
para apartá-los. De nada valeria a tentativa. Quando o mastim perdeu as forças
e caiu exangue, Barudi, rosnando e mostrando a boca ruborizada ao vivo; se
afastou vagarosamente para o seu refúgio, deixando o rival inanimado, morto,
ante os olhos atônitos dos espectadores alarmados!
*
Finalmente, a noite chegou. Barudi se
encontrava prisioneiro no aposento em que refugiara. Longas horas Yamed chorou
sua desventura. Alguma coisa lhe dizia que não perdesse a esperança. Opôs-se
terminantemente a que matassem o cão. Agora, porém, crescera o medo de que o
animal se soltasse e fizesse vítimas.
*
Alastrava-se o pânico e todos os argumentos
de Yamed caíam por terra, quando Jamal Ben Odama, pessoa respeitável e acatada do
lugar, lhe fez estas ponderações:
- "Allah akbar!" (louvado seja
Deus!) Já pensaste, meu bom Yamed, nas consequências que terás de enfrentar, se
esse cão raivoso ataca, polui e mata alguém? Mais vale a vida de ser humano do
que a de um cão doente. É preferível sacrificar um animal que constituí perigo,
do que poupá-lo, com o risco de ver sacrificado algum dos nossos semelhantes.
Portanto, já não mais podemos esperar. Darei ordem para que o eliminem. Por
Allah, a solução é cruel mas necessária.
Jamal Ben Odama tomara as providências que
o caso reclamava e, quando iam as mesmas ser postas em prática, alguém que ali
chegara, sem ser pressentido, exclamou:
- Alahomma!" (Deus meu!) Aqui chego na
hora em que devia chegar. Que a benção de Allah cubra todos os meus irmãos!
Discordo - "Astafiru'iah!" (Que Deus me perdoe!) - da sentença
a que condenaram esse pobre cão! A vida sempre é preciosa e, se pudermos poupá-la,
deixaremos de assumir pesado compromisso diante de Allah. Podemos tentar salvar
o animal sem permitir que ele ameace nossos semelhantes. Se o respeitável Jamal
Ben Odama - que Allah glorifique seu nome! - me conceder a indispensável
autorização, iniciarei hoje mesmo o tratamento do cão. Se tudo resultar
infrutífero, serei o primeiro a confessar a inutilidade de meus esforços.
Todos
se voltaram e Yamed não pôde conter o espanto:
- O Bruxo!
Dirigindo-se a ele, o rapaz, fora de si,
pôs-se a gritar:
- Foi ele quem enfeitiçou Barudi!
Lembro--me do que ele me disse, certa vez. Depois do nosso encontro - ó Allah,
Allah! - Barudi teve curta felicidade!
O desconhecido olhou firmemente para Yamed,
fazendo-o estremecer. Em seguida, com a maior tranquilidade, lhe deu esta
resposta:
- Está no Alcorão: "Pedi perdão a
Allah pelos males que haveis cometido, pois Allah é misericordioso."
Estás enganado, Yamed. Meu coração está limpo da culpa de que o acusas. Apenas
alertei teu espirito para deveres negligenciados. Não sou bruxo. Já to disse
uma vez. Entretanto,
Allah, como tem feito a tanto, me concedeu dons que me compelem a trabalhos
santos. Nada faço por mim, porque minha graça está na graça daqueles a quem eu
puder servir. Aprendi os segredos do Livro de lsa (Jesus) e busco exemplificar,
na medida das minhas possibilidades, as lições aprendidas. Teu cão não está
hidrófobo.É vítima de uma obsidiação muito séria. Um espírito sem corpo de
carne, que vive na erratiicidade, dispôs-se a apoquentá-lo. Ele o vê e o teme.
Eu também o vejo, Yamed. A luta será estrênua., Esse obsessor foi perseguido
por ti em outra vida e hoje, compreendendo o bem que queres a Barudi, aflige-o,
para que sofras. Se não me ajudares com a tua confiança, pouco poderei fazer. AlIah
que te esclareça o entendimento!
A pequena multidão se mostrava perplexa. Quando
o desconhecido passou, todos se afastaram respeitosamente. Ninguém sabia
porque, mas aquele homem possuía qualquer coisa de majestoso. Sem se perturbar
com os presentes, encaminhou-se ele para o refúgio de Barudi. Um
"oh!" de espanto se fez ouvir. Ninguém, no entanto, pensou em impedir-Ihe
a caminhada. O desconhecido abriu a porta, ajoelhou-se, ergueu os braços e
proferiu esta prece:
"Alahomma! Faze que entre eu e meu
sustento não haja outro intermediário senão Tu; se meu pão está no céu, dá-me
asas para alcançá-lo, e se está aqui, na terra, inspira-me o amor ao trabalho
para ganhá-lo. Livra-me - Ala homma! - da vida preguiçosa, falaz e
concupiscente. Faze-me o mais afortunado em Teu amor e o mais pobre e
necessitado de Tua graça. Livra-me - Alahomma! - do castigo de pedir perdão por
um mal ou um erro que eu não haja cometido. Ensina-me a não esbanjar minhas
economias senão em Teu caminho, a não comer meu pão sem a alegria do trabalho e
com o suor de minha fronte. Inspira-me a repartir com equidade, entre meus irmãos,
os necessitados, o bem que me deres. Não quero uma riqueza que me desvie de Teu
amor, nem saúde que me conduza pelos declives dos prazeres impuros, nem pobreza
que me faça esquecer que És o único concessor e benfeitor. Livra-me - AIahomma!
- da ira, da avareza, e da imagem das fúrias, do triunfo da inveja e da derrota
das virtudes e das boas obras. Domina-me para viver probo, obediente à Tua
vontade, a ser compassivo e compreensivo; ajuda-me a governar com equidade e
consciência os meus irmãos menores e a cumprir as determinações dos meus irmãos
maiores. Em Ti me refúgio para livrar-me dos erros de minha língua, da
ofuscação de minha mente, da má reputação, das baixezas e da companhia dos
malvados, e de todo ato que não seja de Teu agrado.
Alahomma! - Ajuda-me a vencer a meu próprio
inimigo, que vive dentro de mim. Dá--me
mais vida para resgatar meus débitos contigo. Devo-Te a vida, a qual não soube
encher de
alegria, nem de amor, nem de compreensão. Dá-me saúde para poder continuar a
purificar-me -me no fogo da dor e do sofrimento, na prática do bem e na luta
contra o mal.
Alahomma! - Quero salvar minha alma, porque
é Tua e para Ti; quero proteger meus filhos,
porque são a continuação de Tua obra; quero a glória da humanidade, para que
manifeste em si Tua glória maior!"
*
Concluída a prece, o desconhecido ergueu-se
e resolutamente penetrou na habitação. Ouvia--se, cá de fora, o rosnar feroz de
Barudi. O homem se aproximou corajosamente do animal, apondo-lhe as mãos
espalmadas. Recuado, em atitude defensiva, o cão rosnava cada vez mais
fortemente e parecia disposto a. atacar o intruso. Seu
poder era grande e o cão, encolhido e apavorado, buscava furtar-se à sua influência.
Senhor da situação, o desconhecido falou:
- Vejo-te, pobre irmão, na tarefa desonrosa
de desatinar o pobre cão. Sei porque o fazes. Todavia, não é justo o teu procedimento.
- Comigo é assim: olho por olho, dente por
dente. Seu dono me destruiu a felicidade em outros tempos e agora aqui estou
para descontar o débito. Tenho sofrido muito, Até hoje, não encontrei
tranquilidade em parte alguma e só me sinto feliz exercendo a vingança.
Era assustador o aspecto da entidade
espiritual que a vidência do desconhecido descobrira junto ao desditoso Barudi.
Cercado de manchas negras, o obsessor vivia envolto em trevas, espicaçado por
outros Espíritos perdidos no mal. Estes açulavam o cão, atormentavam-no, dia e
noite, desesperando-o. Obedeciam cegamente ao obsessor e este gargalhava
sinistramente, todas as vezes em que lograva martirizar o infeliz cãozinho. Seu
olhar torvo se dirigia, então, para o lugar em que se encontrasse Yamed Bahra,
cujo sofrimento lhe infundia inusitado prazer. Diante do desconhecido,
começaram a desfilar figuras
arrepiantes, uma falange de obsessores se fazia acompanhar de cães negros e
ferozes. Todos cercavam Barudi, que tremia de pavor. Não o deixavam quieto. E
ele via também aquele quadro aterrador. Cães de olhos fosforescente latiam
surdamente, despejando coruscantes faíscas através das fauces terríveis.
Após longo silêncio, o desconhecido começou
estafante trabalho de doutrinação. O resultado foi exacerbarem-se as entidades
maldosas. Os molossos de olhos de fogo investiram Barudi e este, como louco, se
atirou sobre o homem que ali estava para salvá-lo. Todos os Espíritos trevosos
se movimentaram. Deles escorria uma matéria espessa, de um cinzento opaco,
tendendo para negro. Era uma pasta viscosa e repugnante, a qual às vezes
borbulhava, como, que em ebulição. Para os ouvidos do médium experimentado, os
ruídos eram francamente percebidos. Gritos roucos, imprecações, ameaças, linguagem
sórdida, que atestavam a procedência inferior de tão deplorável grupo. Horas e
horas, O homem lá esteve. Quando saiu, alta madrugada, apenas deparou Yamed
Bahra, que ali ficara, fielmente, na esperança de presenciar o que supunha um
milagre. Ao se lhe deparar, porém, a fisionomia fechada do desconhecido,
compreendeu que nada fora conseguido, Este apenas lhe disse:
- Confia e espera. Nada se faz sem a
vontade de Allah e tudo quanto acontece, Yamed, tem sua razão de ser, Ajuda-me,
sentindo a prece que proferires. De nada adiantarão tuas palavras. Não é o
recitar o Alcorão que salva a criatura, mas fazer o que Allah deseja se faça.
Chamo-me Labnir. É um nome como outro qualquer. Preciso de ti, se é que
pretendes mesmo a salvação de Barudí.
Dizendo isto, Labnir explicou pacientemente
a Yamed o que ocorria. O cão estava obsidiado. Um magote de Espíritos trevosos
o perseguiam e poderiam levá-lo à morte, se todos os recursos resultassem
nulos. Era mister confiar em Allah. Confiança é fé. Confiar e trabalhar, porque
também os Espíritos de luz estavam em atividade e, de acordo com as leis
divinas, o mal não triunfa do bem. Se, às vezes, fica essa impressão é porque
aos humanos se torna difícil, na generalidade, desvendar os arcanos do passado
e avançar antecipadamente para o futuro. Isso somente é dado a alguns eleitos
de Allah, que é Todo Poderoso. Muito cru em tais assuntos, Yamed voltou a
perguntar:
- Labnir: são os djinns?
- Sim, Yamed, podem ser os djinns... - respondeu
o homem. Entretanto, não te assustes. Todos os seres humanos possuem um
Espírito-guia, que o acompanha, buscando auxilíá-lo, sem, contudo, interferir
diretamente em seu livre-arbítrio. Entre os árabes, esses seres são chamados.
"djinns". Os ocidentais dão-lhes outra denominação:
"Espíritos-guias", “anjos de
guarda", etc. Vistos tal como são, não guardam diferença dos seres
humanos, cuja forma conservam. Entretanto, Yamed, é crença dos árabes que eles
possuem um olho perpendicular e geralmente invisíveis, podem tomar formas
impalpáveis e vaporosas, assim como assumir aspectos humanos e de animais e
monstros, "Djinns" ou não, Yamed, necessitamos agir com presteza se
pretendemos fazer alguma coisa em favor de Barudi. O principal, no entanto,
terá de partir de ti, porque és a causa primordial de tudo quanto
se
passa.
Yamed ouviu tudo muito atentamente e,
demonstrando louvável humildade, se curvou à vontade de Labnir. Todas as
noites, o mago se dirigia ao recanto em que se entocara Barudi, que estava
definhando hora a hora, recusando-se a comer. Seis dias depois, Yamed
confidenciou a Labnir o "sonho" que tivera. Defrontara um homem que fora
seu amigo em pretérita existência, ao tempo do calífa Omar Ben Abd AI Aziz. Ouviu-lhe
as queixas, suportando-lhe os assomos de cólera. Reconhecia haver procedido mal
e solicitava perdão. O ex-amigo, porém, não lhe reconhecia nenhum direito a
essa graça. Mostrou-lhe, em rápidos lanços, as vicissitudes a que fora
arrastado por sua culpa. Yamed chorava, arrependido. Arrojou-se aos pés de sua vítima,
beijando-os humildemente.
- Perdoa-me. Acredita-me, Khalil: jamais
supus causar-te tão grande dano. Nada tenho, porque vivo uma vida simples e
trabalhosa. Minha única alegria era Barudi, de quem te vingas, Poupa-o.
peço-te, e descarregues sobre mim a tua justa revolta. Que Allah te perdoe o
mal que tens feitos, como suplico me perdoe também os erros que cometi. Dita-me
tuas ordens e as cumprirei, contanto que deixes em paz o pobre Barudi. Allah te
concederá a paz de que necessitas e te iluminará o caminho com as luzes da
misericórdia!
Mal pronunciou essa frase, Yamed viu o
inesperado: Khalil também chorava, exclamando:
- Estou vendo o espelho mágico da verdade.
Nele surgem escritas as palavras do Alcorão: “A Verdade vem de Allah. Não sejas nunca dos que dela duvidam."
Que cenas horríveis! Terei sido tão perverso assim? Não posso ver essas coisas?
Não? Não posso? Mas meus olhos estão presos ao espelho mágico! Em outra existência,
Yamed, eu te persegui, te tornei alucinado, destruí teu lar, te conduzi ao
desterro e acabaste teus dias num hospital de insanos! Não! Não quero mais ver
estas coisas! Ai! sofro muito! No afã de vingar-me de ti, semeei espinhos em
minha estrada. Excedi-me, Yamed, e agora compreendo que avancei demais na senda
da vingança. Allah se compadeça de mim!
- Mais uma vez, Khalil, peço-te perdão.
Sejamos bons amigos, outra vez. Sofri muito, sofreste
muito. Eu te perdoo, mesmo que não me queiras perdoar. Se tuas faltas são
muitas, eu não posso envaidecer-me do que fiz. Que Allah te conforte o coração
e te ilumine a estrada, de hoje por diante!
Aí, Yamed silenciou. Labnir, abraçando-o,
confortou-o:
- Demos um grande passo, Yamed. Não tiveste
um sonho, mas um ajuste de contas, O Espírito
que persegue Barudi não é um "djinn". Agora o sabes, Em consequência
de seu ódio contra ti, permaneceu na erraticidade todo esse tempo. E sofre
muito. Hoje, irei revê-lo e espero de sua parte uma atitude mais conciliatória.
Enquanto eu estiver no refúgio de Barudi, ora. Eleva tua alma a Allah, porque
quem ora está resguardado do mal. A prece é uma defesa e uma mensagem de
harmonia, Disse Maomé que "Para o
crente, Allah é o melhor testemunho e a maior das garantias".
*
Quando, mais tarde, Labnir penetrou no
aposento interditado a Yamed, a atitude do cãozinho não se modificara, pelo
menos aparentemente. Graças à sua vidência, pode o homem ver que Barudi estava
cercado de maus Espíritos e dos terríveis cães negros, de olhos fosforescentes.
Fez sua prece e em sua volta surgiram círculos de bela luminosidade. Labnir
avistou, então, retraído e acossado por outros Espíritos, o Infeliz Khalil.
Recusava-se ele a participar das torturas a que era submetido o cão. Por isto,
voltavam-se os Espíritos trevosos, irritados, sem compreender que estavam
prestes a perder o companheiro. Diante de sua obstinação, agarraram-no
violentamente e agrediram-no. Khalil procurou resistir, lutando, mas seus
esforços de nada valiam. Os cães negros, então, deixaram Barudi e o atacaram.
Seu pavor foi tão grande que ele soltou um grito estridente:
- Valha-me Allah!
E pareceu desmaiar. As entidades inferiores
forcejavam por atormentá-lo, mas sentiam que estranho torpor as dormentavam,
tornando inúteis seus intentos, Yamed, sentindo-se livre, movimentou-se,
lentamente a princípio, mais rapidamente depois, erguendo-se, como se estivesse
amparado por alguém. Os Espíritos inferiores manifestavam incoercível ódio
contra ele, xingando-o:
- Covarde! Traidor! Não te abandonaremos
jamais, hás de ver!
Açulando os molossos contra Khalil,
avançaram também, em bloco, mas não puderam tocar no ex-companheiro. Uma tênue
faixa de luz defendia Khalil, que, finalmente, compreendera que o mal não pode
triunfar sobre o bem, Perturbado ainda, balbuciava o santo nome de Allah,
sofrendo, mas cultivando a esperança de que poderia livrar-se dos inimigos do
espaço, se escudado na fé.
Labnir tudo vira e ouvira em silêncio,
comungando pela prece no trabalho que se processava no mundo invisível. E o que
viu foi surpreendente: os cães negros, de olhos fosforescentes, inchavam
desmesuradamente, tornando-se como globos escuros, compactos, que em seguida se
desfaziam numa fumaça cor de chumbo. Desta ía surgindo o perfil de um homem de
catadura feroz... Um a um, todos os obsessores abandonaram a figura de cães e
se uniram aos que apostrofavam Khalil de longe, porque contidos pela faixa de
luz.
Labnir deu por concluída sua tarefa nessa
noite. Voltou-se para o cãozinho, que perdera o aspecto desagradável que vinha
mantendo há longos dias. Afagou-o. Barudi procurou levantar-se, Estava muito
fraco. Mesmo assim, seus olhos meigos pareciam expedir tocante mensagem de
gratidão. Estava contente, de novo. No abanar da cauda se traduzia o
contentamento que nele renascera. O mago levantou-o ao colo e levou-o para fora
do aposento. Era grande o número de pessoas que lá se encontrava. Muitos se
afastaram, medrosos, mas Labnir, sorrindo docemente, tranquilizou-os:
- Tudo está passado, meus irmãos! Não há
mais perigo. Barudi teve um pesadelo, mas está bom.
Dirigindo-se a Yamed Bahra, que
humildemente aguardara que o chamasse, Labnir entregou-lhe Barudi:
- Toma teu amigo. Está salvo. Alimenta-o
bem, porque necessita nutrir-se. Agora, Yamed, quero recordar-te o que te disse
quando nos encontramos pela primeira vez: Não descures de tuas obrigações
espirituais. Pensa um pouco naqueles que não são felizes como tu. Acarinha teu
cão, mas não deixes de ter uma palavra e um ato de caridade para os teus
semelhantes em provas ásperas na terra. Mostra tua gratidão a Allah, exemplificando
a bondade, fazendo que tuas ações sejam tão belas quanto as páginas do Alcorão.
Cresceu teu débito para com a misericórdia de AlIah. Terminamos uma tarefa.
Outra, porém, bem mais importante nos aguarda. Tu, principalmente, terás que
trabalhar muito. Khalil evoluiu, mas continua em perigo no mundo invisível.
Auxiliemo-lo com as nossas preces e o convoquemos às boas ações, porque, mesmo
no plano invisível, todos podem trabalhar pela difusão do bem.
*
Quando Labnir partiu, o câozinho Barudi o
acompanhou por mais de um quilômetro, latindo alegremente e saltitando. Yamed o
acompanhava, contente. Chegaram os três a uma encruzilhada. Foram feitas as
últimas despedidas. Se era natural que os olhos de Yamed mergulhassem em
pranto, era menos comum que os olhos vivos de Barudi também flutuassem num lago
de lágrimas...
E ao ver Labnir sumir-se no fim da estrada,
Yamed, sem o sentir, repetiu em voz alta este axioma árabe:
- "Recordar
a obra de um benfeitor é o melhor reconhecimento por uma obra de bem."
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