domingo, 3 de dezembro de 2017

Barudi, o cão obsidiado


Barudi, o cão obsidiado
José Brígido (Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Abril 1954

Yamed Bahra estava contente com Allah. Vivia alegre, satisfeito da vida, cantarolando.

Mal deixava as tarefas diuturnas, corria para a casa humilde, onde era recebido com vivas manifestações de contentamento pelo cãozinho Barudi. Na despreocupação dos seus vinte anos Yamed semelhava um menino de doze, quando se punha a correr pelos campos, brincando com Barudi, que o compreendia à maravilha.

Cão inteligente, aprendera a andar sobre as patas traseiras e estava quase treinado em fazê-lo apenas sobre as dianteiras, o que era bem mais difícil. Barudi assimilava com incrível facilidade as lições que Yamed Bahra lhe dava com o maior dos carinhos. Os vizinhos admiravam o talento do cão e a paciência de seu dono. Nas horas de folga, reuniam-se numa pequena praça, não longe da mesquita, e ali se demoravam, aplaudindo as habilidades de Barudi, que saltava, dançava, latia de modos diversos, buscando interpretar os anelos de Yamed. Até contar o cãozinho sabia. Yamed riscava no chão os sinais aritméticos e Barudi batia com uma das patinhas, tantas vezes quantas correspondessem ao sinal traçado.

Propostas vantajosas havia recebido o rapaz, para se desfazer de Barudi. Vários pelotiqueiros lhe haviam oferecido bolsas tentadoras, mas ele não se dispunha a vender o pequeno e valioso amigo. Convidaram-no a se filiar a grupos de saltimbancos, para exibir-se nas feiras públicas. Yamed permaneceu surdo a todas as solicitações. Era pobre, mas feliz, porque não se contaminara das ambições que quase sempre multiplicam as aflições do homem. Bastava-lhe o pouco que ganhava para viver modesta, mas decentemente, e cuidar de Barudi, sempre limpo e bem alimentado.

*

Numa tarde quente, Yamed Bahra saiu a passear com Barudi pelos arredores. Conhecido e estimado como era, de todos recebia saudações alegres. Barudi saltava de um para outro lado, como que desejando também agradecer os afagos que lhe faziam. Achava-se na vila um mago vindo da Palestina. Sisudo, não participara do tom despreocupado das palavras trocadas até então. Chegava mesmo a ser sombrio. Deixou que Yamed Bahra se afastasse, quando, então, o chamou, dizendo-lhe:

- Allah esteja contigo, meu irmão! Todas as alegrias que desfrutaste foram bem empregadas. Todavia, no céu da tua existência há nuvens que ensombrecem o horizonte ...
           
- Que mal posso temer, se Allah me protege? - respondeu Yamed.

- Mas ainda não foste submetido a provas duras, a fim de demonstrares que, realmente, tens fé no poder do Altíssimo ... Allah é todo amor e todo misericórdia. Mas as leis que estabeleceu têm de ser cumpridas, ainda que não compreendamos seus altos e sábios desígnios. Já ouviste falar que cada ser humano vive muitas vidas? Não?! Hoje, és feliz, glorificas o santo nome de Allah, fazes as orações habituais, cumpres religiosamente teus deveres humanos. Entretanto, todos temos deveres espirituais a satisfazer, Yamed.

És estranho... Como sabes meu nome'?

- Acabo de ouvi-lo... Um ente espiritual que não podes ver, mas que percebo nitidamente a meu lado, repetiu-mo: Yamed Bahra...

- Um djinn? - indagou Yamed, sobressaltado.

- Não. Um amigo ...

- És bruxo?!

- Enganas-te. Mas quis Allah que eu pudesse ver e ouvir certas coisas, principalmente para estimular o bem e evitar o mal ..

- Pensas que acredito nisso?

- Deves crer no que te digo. Se queres viver tranquilamente os dias do futuro, não descures de tuas obrigações espirituais. Pensas muito no teu cãozinho. És capaz de todos os sacrifícios por ele. Farás o mesmo com um teu semelhante, necessitado de atenção e caridade? Se Allah te tem favorecido com a paz e a alegria, não o decepciones, Yamed. Mostra-Lhe tua gratidão, dividindo com irmãos sofredores os carinhos que reservas exclusivamente para Barudi... Talvez assim consigas resistir aos problemas que te aguardam. Minha mensagem está dada. - "Astafiru'lah!" (Que Deus me perdoe!)...

Perplexo e intrigado, Yamed Bahra viu afastar-se o desconhecido e muito depressa. dele se esqueceu, devotado ao trabalho de ensinar novas artes a Barudi.

Muitos dias se passaram, após esse encontro. Yamed continuara sua vida de todos os dias. Mal chegava do trabalho, corria para o cãozinho amado. Tudo ia bem, maravilhosamente bem. Yamed nunca mais se lembrara do desconhecido, nem mesmo quando, certa manhã, percebeu que Barudi estava quieto e tristonho. Agachou-se junto a ele, fez-lhe festas, amimou-o. Tudo em vão. O animal parecia anestesiado, tal a indiferença que apresentava... Isso não era normal. Sempre ele se alegrara com a presença de Yamed. Agora, não. Estava apático e frio. Seus olhos ora estavam baços, ora excessivamente brilhantes. Mas não havia vivacidade alguma neles. O rapaz tomou-o nos braços, beijou-o, acariciou-o, chamou-o ternamente pelo nome. O cão permaneceu ensimesmado. Decidiu-se Yamed a procurar um veterinário. Barudi ficou sozinho, num recanto escuro, a cabeça pesando sobre as patas inertes.

Mal chegado que foi, o "béitar" (veterinário) balançou a cabeça, desesperançado:

- Que Allah me perdoe mas este cão está começando a ficar raivoso... Tens que livrar-te dele, Yamed. Será melhor que o mates, antes que seja tarde. Mate-o (que Allah dele se apiade), porque é única solução para o caso, Yamed.

O rapaz não sabia o que dizer nem fazer. Custava-lhe crer em semelhante tragédia. Perder o seu querido Barudi, era-lhe provação pesada. Depois que o "béitar" se retirou, voltou para junto do cão, na esperança de lhe poder ser útil. O animal, no entanto, ergueu-se, colérico, arrepiando-se e mostrando-lhe os dentes, como se pretendesse atacá-lo. Instintivamente, Yamed recuou gritando:

- Que é isso, Barudi! Sou eu, Yamed! Yamed! Quieto, Barudi! Vamos, quieto! Quieto! O cão avançava para ele vagarosamente, como que preparando um bote perigoso. Yamed continuava a gritar, sem resultado, Quanto mais barulho fazia, mais furioso se mostrava o cão. Temeroso, Yamed procurou alcançar a porta, rugindo, depois de fechá-la após si. Em poucos instantes, a vila inteira sabia do sucedido. E os murmúrios se multiplicavam:

- Yamed está com o cão raivoso! Que Allah o proteja!

- Tinha que acabar assim, por excesso de mimos. Allah que me perdoe, mas isso estava ficando mesmo muito exagerado...

Um amigo de Yamed não acreditou. Correu para a casa e adentrou-a. Foi atacado por Barudi, que o deixou semi-morto. Retirarem-no cuidadosamente depois de afugentarem o pobre Barudi com longa e pontiaguda vara. Ninguém mais se atreveu a invadir o lugar em que se ocultara o animal. Nisto, Yamed reaparece. Fora buscar outro ''béítar'. Este não se encorajou. Antes, deu-se pressa a fugir, receoso de que o vitimasse o cão enfermo. Yamed chorava, a esta altura, desesperado. Tentou aproximar--se. Mas Barudi, os olhos em fogo, uma babugem viscosa a escorrer-lhe da boca, avançou contra ele, rosnando lugubremente, e forçando-lhe o recuo, Alguém, audaciosamente, lançou um mastim agressivo e valente contra Barudi. Travou-se uma luta tremenda. O pequenino cão de Yamed se agigantava na disputa. De um salto, abocanhara o pescoço do rival, bem mais poderoso fisicamente, e ali se deteve, enquanto o sangue borbotava abundante, dando um tom ainda mais trágico àquele ambiente já tão conturbado.

Ninguém ousava acercar-se dos dois animais para apartá-los. De nada valeria a tentativa. Quando o mastim perdeu as forças e caiu exangue, Barudi, rosnando e mostrando a boca ruborizada ao vivo; se afastou vagarosamente para o seu refúgio, deixando o rival inanimado, morto, ante os olhos atônitos dos espectadores alarmados!

*

Finalmente, a noite chegou. Barudi se encontrava prisioneiro no aposento em que refugiara. Longas horas Yamed chorou sua desventura. Alguma coisa lhe dizia que não perdesse a esperança. Opôs-se terminantemente a que matassem o cão. Agora, porém, crescera o medo de que o animal se soltasse e fizesse vítimas.

*

Alastrava-se o pânico e todos os argumentos de Yamed caíam por terra, quando Jamal Ben Odama, pessoa respeitável e acatada do lugar, lhe fez estas ponderações:

- "Allah akbar!" (louvado seja Deus!) Já pensaste, meu bom Yamed, nas consequências que terás de enfrentar, se esse cão raivoso ataca, polui e mata alguém? Mais vale a vida de ser humano do que a de um cão doente. É preferível sacrificar um animal que constituí perigo, do que poupá-lo, com o risco de ver sacrificado algum dos nossos semelhantes. Portanto, já não mais podemos esperar. Darei ordem para que o eliminem. Por Allah, a solução é cruel mas necessária.

Jamal Ben Odama tomara as providências que o caso reclamava e, quando iam as mesmas ser postas em prática, alguém que ali chegara, sem ser pressentido, exclamou:

- Alahomma!" (Deus meu!) Aqui chego na hora em que devia chegar. Que a benção de Allah cubra todos os meus irmãos! Discordo - "Astafiru'iah!" (Que Deus me perdoe!) - da sentença a que condenaram esse pobre cão! A vida sempre é preciosa e, se pudermos poupá-la, deixaremos de assumir pesado compromisso diante de Allah. Podemos tentar salvar o animal sem permitir que ele ameace nossos semelhantes. Se o respeitável Jamal Ben Odama - que Allah glorifique seu nome! - me conceder a indispensável autorização, iniciarei hoje mesmo o tratamento do cão. Se tudo resultar infrutífero, serei o primeiro a confessar a inutilidade de meus esforços.

            Todos se voltaram e Yamed não pôde conter o espanto:

- O Bruxo!

Dirigindo-se a ele, o rapaz, fora de si, pôs-se a gritar:

- Foi ele quem enfeitiçou Barudi! Lembro--me do que ele me disse, certa vez. Depois do nosso encontro - ó Allah, Allah! - Barudi teve curta felicidade!

O desconhecido olhou firmemente para Yamed, fazendo-o estremecer. Em seguida, com a maior tranquilidade, lhe deu esta resposta:

- Está no Alcorão: "Pedi perdão a Allah pelos males que haveis cometido, pois Allah é misericordioso." Estás enganado, Yamed. Meu coração está limpo da culpa de que o acusas. Apenas alertei teu espirito para deveres negligenciados. Não sou bruxo. Já to disse uma vez. Entretanto, Allah, como tem feito a tanto, me concedeu dons que me compelem a trabalhos santos. Nada faço por mim, porque minha graça está na graça daqueles a quem eu puder servir. Aprendi os segredos do Livro de lsa (Jesus) e busco exemplificar, na medida das minhas possibilidades, as lições aprendidas. Teu cão não está hidrófobo.É vítima de uma obsidiação muito séria. Um espírito sem corpo de carne, que vive na erratiicidade, dispôs-se a apoquentá-lo. Ele o vê e o teme. Eu também o vejo, Yamed. A luta será estrênua., Esse obsessor foi perseguido por ti em outra vida e hoje, compreendendo o bem que queres a Barudi, aflige-o, para que sofras. Se não me ajudares com a tua confiança, pouco poderei fazer. AlIah que te esclareça o entendimento!

A pequena multidão se mostrava perplexa. Quando o desconhecido passou, todos se afastaram respeitosamente. Ninguém sabia porque, mas aquele homem possuía qualquer coisa de majestoso. Sem se perturbar com os presentes, encaminhou-se ele para o refúgio de Barudi. Um "oh!" de espanto se fez ouvir. Ninguém, no entanto, pensou em impedir-Ihe a caminhada. O desconhecido abriu a porta, ajoelhou-se, ergueu os braços e proferiu esta prece:

"Alahomma! Faze que entre eu e meu sustento não haja outro intermediário senão Tu; se meu pão está no céu, dá-me asas para alcançá-lo, e se está aqui, na terra, inspira-me o amor ao trabalho para ganhá-lo. Livra-me - Ala homma! - da vida preguiçosa, falaz e concupiscente. Faze-me o mais afortunado em Teu amor e o mais pobre e necessitado de Tua graça. Livra-me - Alahomma! - do castigo de pedir perdão por um mal ou um erro que eu não haja cometido. Ensina-me a não esbanjar minhas economias senão em Teu caminho, a não comer meu pão sem a alegria do trabalho e com o suor de minha fronte. Inspira-me a repartir com equidade, entre meus irmãos, os necessitados, o bem que me deres. Não quero uma riqueza que me desvie de Teu amor, nem saúde que me conduza pelos declives dos prazeres impuros, nem pobreza que me faça esquecer que És o único concessor e benfeitor. Livra-me - AIahomma! - da ira, da avareza, e da imagem das fúrias, do triunfo da inveja e da derrota das virtudes e das boas obras. Domina-me para viver probo, obediente à Tua vontade, a ser compassivo e compreensivo; ajuda-me a governar com equidade e consciência os meus irmãos menores e a cumprir as determinações dos meus irmãos maiores. Em Ti me refúgio para livrar-me dos erros de minha língua, da ofuscação de minha mente, da má reputação, das baixezas e da companhia dos malvados, e de todo ato que não seja de Teu agrado.

Alahomma! - Ajuda-me a vencer a meu próprio inimigo, que vive dentro de mim. Dá--me mais vida para resgatar meus débitos contigo. Devo-Te a vida, a qual não soube encher de alegria, nem de amor, nem de compreensão. Dá-me saúde para poder continuar a purificar-me -me no fogo da dor e do sofrimento, na prática do bem e na luta contra o mal.

Alahomma! - Quero salvar minha alma, porque é Tua e para Ti; quero proteger meus filhos, porque são a continuação de Tua obra; quero a glória da humanidade, para que manifeste em si Tua glória maior!"

*
Concluída a prece, o desconhecido ergueu-se e resolutamente penetrou na habitação. Ouvia--se, cá de fora, o rosnar feroz de Barudi. O homem se aproximou corajosamente do animal, apondo-lhe as mãos espalmadas. Recuado, em atitude defensiva, o cão rosnava cada vez mais fortemente e parecia disposto a. atacar o intruso. Seu poder era grande e o cão, encolhido e apavorado, buscava furtar-se à sua influência. Senhor da situação, o desconhecido falou:

- Vejo-te, pobre irmão, na tarefa desonrosa de desatinar o pobre cão. Sei porque o fazes. Todavia, não é justo o teu procedimento.

- Comigo é assim: olho por olho, dente por dente. Seu dono me destruiu a felicidade em outros tempos e agora aqui estou para descontar o débito. Tenho sofrido muito, Até hoje, não encontrei tranquilidade em parte alguma e só me sinto feliz exercendo a vingança.

Era assustador o aspecto da entidade espiritual que a vidência do desconhecido descobrira junto ao desditoso Barudi. Cercado de manchas negras, o obsessor vivia envolto em trevas, espicaçado por outros Espíritos perdidos no mal. Estes açulavam o cão, atormentavam-no, dia e noite, desesperando-o. Obedeciam cegamente ao obsessor e este gargalhava sinistramente, todas as vezes em que lograva martirizar o infeliz cãozinho. Seu olhar torvo se dirigia, então, para o lugar em que se encontrasse Yamed Bahra, cujo sofrimento lhe infundia inusitado prazer. Diante do desconhecido, começaram a desfilar figuras arrepiantes, uma falange de obsessores se fazia acompanhar de cães negros e ferozes. Todos cercavam Barudi, que tremia de pavor. Não o deixavam quieto. E ele via também aquele quadro aterrador. Cães de olhos fosforescente latiam surdamente, despejando coruscantes faíscas através das fauces terríveis.

Após longo silêncio, o desconhecido começou estafante trabalho de doutrinação. O resultado foi exacerbarem-se as entidades maldosas. Os molossos de olhos de fogo investiram Barudi e este, como louco, se atirou sobre o homem que ali estava para salvá-lo. Todos os Espíritos trevosos se movimentaram. Deles escorria uma matéria espessa, de um cinzento opaco, tendendo para negro. Era uma pasta viscosa e repugnante, a qual às vezes borbulhava, como, que em ebulição. Para os ouvidos do médium experimentado, os ruídos eram francamente percebidos. Gritos roucos, imprecações, ameaças, linguagem sórdida, que atestavam a procedência inferior de tão deplorável grupo. Horas e horas, O homem lá esteve. Quando saiu, alta madrugada, apenas deparou Yamed Bahra, que ali ficara, fielmente, na esperança de presenciar o que supunha um milagre. Ao se lhe deparar, porém, a fisionomia fechada do desconhecido, compreendeu que nada fora conseguido, Este apenas lhe disse:

- Confia e espera. Nada se faz sem a vontade de Allah e tudo quanto acontece, Yamed, tem sua razão de ser, Ajuda-me, sentindo a prece que proferires. De nada adiantarão tuas palavras. Não é o recitar o Alcorão que salva a criatura, mas fazer o que Allah deseja se faça. Chamo-me Labnir. É um nome como outro qualquer. Preciso de ti, se é que pretendes mesmo a salvação de Barudí.

Dizendo isto, Labnir explicou pacientemente a Yamed o que ocorria. O cão estava obsidiado. Um magote de Espíritos trevosos o perseguiam e poderiam levá-lo à morte, se todos os recursos resultassem nulos. Era mister confiar em Allah. Confiança é fé. Confiar e trabalhar, porque também os Espíritos de luz estavam em atividade e, de acordo com as leis divinas, o mal não triunfa do bem. Se, às vezes, fica essa impressão é porque aos humanos se torna difícil, na generalidade, desvendar os arcanos do passado e avançar antecipadamente para o futuro. Isso somente é dado a alguns eleitos de Allah, que é Todo Poderoso. Muito cru em tais assuntos, Yamed voltou a perguntar:

- Labnir: são os djinns?

- Sim, Yamed, podem ser os djinns... - respondeu o homem. Entretanto, não te assustes. Todos os seres humanos possuem um Espírito-guia, que o acompanha, buscando auxilíá-lo, sem, contudo, interferir diretamente em seu livre-arbítrio. Entre os árabes, esses seres são chamados. "djinns". Os ocidentais dão-lhes outra denominação: "Espíritos-guias",  “anjos de guarda", etc. Vistos tal como são, não guardam diferença dos seres humanos, cuja forma conservam. Entretanto, Yamed, é crença dos árabes que eles possuem um olho perpendicular e geralmente invisíveis, podem tomar formas impalpáveis e vaporosas, assim como assumir aspectos humanos e de animais e monstros, "Djinns" ou não, Yamed, necessitamos agir com presteza se pretendemos fazer alguma coisa em favor de Barudi. O principal, no entanto, terá de partir de ti, porque és a causa primordial de tudo quanto
se passa.

Yamed ouviu tudo muito atentamente e, demonstrando louvável humildade, se curvou à vontade de Labnir. Todas as noites, o mago se dirigia ao recanto em que se entocara Barudi, que estava definhando hora a hora, recusando-se a comer. Seis dias depois, Yamed confidenciou a Labnir o "sonho" que tivera. Defrontara um homem que fora seu amigo em pretérita existência, ao tempo do calífa Omar Ben Abd AI Aziz. Ouviu-lhe as queixas, suportando-lhe os assomos de cólera. Reconhecia haver procedido mal e solicitava perdão. O ex-amigo, porém, não lhe reconhecia nenhum direito a essa graça. Mostrou-lhe, em rápidos lanços, as vicissitudes a que fora arrastado por sua culpa. Yamed chorava, arrependido. Arrojou-se aos pés de sua vítima, beijando-os humildemente.

- Perdoa-me. Acredita-me, Khalil: jamais supus causar-te tão grande dano. Nada tenho, porque vivo uma vida simples e trabalhosa. Minha única alegria era Barudi, de quem te vingas, Poupa-o. peço-te, e descarregues sobre mim a tua justa revolta. Que Allah te perdoe o mal que tens feitos, como suplico me perdoe também os erros que cometi. Dita-me tuas ordens e as cumprirei, contanto que deixes em paz o pobre Barudi. Allah te concederá a paz de que necessitas e te iluminará o caminho com as luzes da misericórdia!

Mal pronunciou essa frase, Yamed viu o inesperado: Khalil também chorava, exclamando:

- Estou vendo o espelho mágico da verdade. Nele surgem escritas as palavras do Alcorão: “A Verdade vem de Allah. Não sejas nunca dos que dela duvidam." Que cenas horríveis! Terei sido tão perverso assim? Não posso ver essas coisas? Não? Não posso? Mas meus olhos estão presos ao espelho mágico! Em outra existência, Yamed, eu te persegui, te tornei alucinado, destruí teu lar, te conduzi ao desterro e acabaste teus dias num hospital de insanos! Não! Não quero mais ver estas coisas! Ai! sofro muito! No afã de vingar-me de ti, semeei espinhos em minha estrada. Excedi-me, Yamed, e agora compreendo que avancei demais na senda da vingança. Allah se compadeça de mim!

- Mais uma vez, Khalil, peço-te perdão. Sejamos bons amigos, outra vez. Sofri muito, sofreste muito. Eu te perdoo, mesmo que não me queiras perdoar. Se tuas faltas são muitas, eu não posso envaidecer-me do que fiz. Que Allah te conforte o coração e te ilumine a estrada, de hoje por diante!     

Aí, Yamed silenciou. Labnir, abraçando-o, confortou-o:

- Demos um grande passo, Yamed. Não tiveste um sonho, mas um ajuste de contas, O Espírito que persegue Barudi não é um "djinn". Agora o sabes, Em consequência de seu ódio contra ti, permaneceu na erraticidade todo esse tempo. E sofre muito. Hoje, irei revê-lo e espero de sua parte uma atitude mais conciliatória. Enquanto eu estiver no refúgio de Barudi, ora. Eleva tua alma a Allah, porque quem ora está resguardado do mal. A prece é uma defesa e uma mensagem de harmonia, Disse Maomé que "Para o crente, Allah é o melhor testemunho e a maior das garantias".

*

Quando, mais tarde, Labnir penetrou no aposento interditado a Yamed, a atitude do cãozinho não se modificara, pelo menos aparentemente. Graças à sua vidência, pode o homem ver que Barudi estava cercado de maus Espíritos e dos terríveis cães negros, de olhos fosforescentes. Fez sua prece e em sua volta surgiram círculos de bela luminosidade. Labnir avistou, então, retraído e acossado por outros Espíritos, o Infeliz Khalil. Recusava-se ele a participar das torturas a que era submetido o cão. Por isto, voltavam-se os Espíritos trevosos, irritados, sem compreender que estavam prestes a perder o companheiro. Diante de sua obstinação, agarraram-no violentamente e agrediram-no. Khalil procurou resistir, lutando, mas seus esforços de nada valiam. Os cães negros, então, deixaram Barudi e o atacaram. Seu pavor foi tão grande que ele soltou um grito estridente:

- Valha-me Allah!

E pareceu desmaiar. As entidades inferiores forcejavam por atormentá-lo, mas sentiam que estranho torpor as dormentavam, tornando inúteis seus intentos, Yamed, sentindo-se livre, movimentou-se, lentamente a princípio, mais rapidamente depois, erguendo-se, como se estivesse amparado por alguém. Os Espíritos inferiores manifestavam incoercível ódio contra ele, xingando-o:

- Covarde! Traidor! Não te abandonaremos jamais, hás de ver!

Açulando os molossos contra Khalil, avançaram também, em bloco, mas não puderam tocar no ex-companheiro. Uma tênue faixa de luz defendia Khalil, que, finalmente, compreendera que o mal não pode triunfar sobre o bem, Perturbado ainda, balbuciava o santo nome de Allah, sofrendo, mas cultivando a esperança de que poderia livrar-se dos inimigos do espaço, se escudado na fé.

Labnir tudo vira e ouvira em silêncio, comungando pela prece no trabalho que se processava no mundo invisível. E o que viu foi surpreendente: os cães negros, de olhos fosforescentes, inchavam desmesuradamente, tornando-se como globos escuros, compactos, que em seguida se desfaziam numa fumaça cor de chumbo. Desta ía surgindo o perfil de um homem de catadura feroz... Um a um, todos os obsessores abandonaram a figura de cães e se uniram aos que apostrofavam Khalil de longe, porque contidos pela faixa de luz.

Labnir deu por concluída sua tarefa nessa noite. Voltou-se para o cãozinho, que perdera o aspecto desagradável que vinha mantendo há longos dias. Afagou-o. Barudi procurou levantar-se, Estava muito fraco. Mesmo assim, seus olhos meigos pareciam expedir tocante mensagem de gratidão. Estava contente, de novo. No abanar da cauda se traduzia o contentamento que nele renascera. O mago levantou-o ao colo e levou-o para fora do aposento. Era grande o número de pessoas que lá se encontrava. Muitos se afastaram, medrosos, mas Labnir, sorrindo docemente, tranquilizou-os:

- Tudo está passado, meus irmãos! Não há mais perigo. Barudi teve um pesadelo, mas está bom.

Dirigindo-se a Yamed Bahra, que humildemente aguardara que o chamasse, Labnir entregou-lhe Barudi:

- Toma teu amigo. Está salvo. Alimenta-o bem, porque necessita nutrir-se. Agora, Yamed, quero recordar-te o que te disse quando nos encontramos pela primeira vez: Não descures de tuas obrigações espirituais. Pensa um pouco naqueles que não são felizes como tu. Acarinha teu cão, mas não deixes de ter uma palavra e um ato de caridade para os teus semelhantes em provas ásperas na terra. Mostra tua gratidão a Allah, exemplificando a bondade, fazendo que tuas ações sejam tão belas quanto as páginas do Alcorão. Cresceu teu débito para com a misericórdia de AlIah. Terminamos uma tarefa. Outra, porém, bem mais importante nos aguarda. Tu, principalmente, terás que trabalhar muito. Khalil evoluiu, mas continua em perigo no mundo invisível. Auxiliemo-lo com as nossas preces e o convoquemos às boas ações, porque, mesmo no plano invisível, todos podem trabalhar pela difusão do bem.

*

Quando Labnir partiu, o câozinho Barudi o acompanhou por mais de um quilômetro, latindo alegremente e saltitando. Yamed o acompanhava, contente. Chegaram os três a uma encruzilhada. Foram feitas as últimas despedidas. Se era natural que os olhos de Yamed mergulhassem em pranto, era menos comum que os olhos vivos de Barudi também flutuassem num lago de lágrimas...

E ao ver Labnir sumir-se no fim da estrada, Yamed, sem o sentir, repetiu em voz alta este axioma árabe:


- "Recordar a obra de um benfeitor é o melhor reconhecimento por uma obra de bem." 

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