A volta do Tigre
José
Brígido
(Indalício Mendes)
Reformador (FEB) Fevereiro 1954
Estabelecera-se o pânico na povoação de Chinduin,
na Birmânia, em consequência das frequentes incursões de grande e ferocíssimo
tigre. Diversos camponeses perderam a vida estraçalhados pelas garras afiadas
da fera, que lograra escapar, até então, aos grupos formados para eliminá-la.
Já acontecera que, cercado por cinco nativos, defendera-se ferozmente o tigre
real, destroçando três deles. Os demais, aterrorizados, fugiram, sem
conseguirem, contudo, sair da floresta. Mais tarde, cinco corpos sem vida demonstravam
que o tigre não os perdoara. A situação de intranquilidade se agravava principalmente
à noite. Na escuridão, ao longe, costumavam aparecer dois focos luminosos, que semelhavam
os olhos duros do animal terrível. Às vezes não era nada de sério, mas o medo
havia transtornado aquele gente simples. Mesmo com o Sol a pino, eram raros os
que se atreviam a sair do povoado, pois havia rastros frescos do tigre nas
imediações. Fogueiras enormes alumiavam casebres e choças, onde os campônios se
revezavam em atenta vigília, noite após noite.
Alarmados, os habitantes de Chinduin
solicitaram auxílio aos povoados mais próximos, de modo que já era grande o
número dos que, bem armados, se dispunham a livrar os camponeses de tão
incômodo e funesto visitante. A lavoura estava abandonada e não poucos eram os
casos de histeria a prenunciarem uma crise coletiva, facilitada pela alta
tensão nervosa de mulheres e crianças.
Chinduin, antes tão feliz em sua vida simples
e sossegada, transformara-se num inferno de sustos e sobressaltos. O mais leve
ruído enchia de pavor os menos afoitos. As mulheres choravam e as crianças
gritavam, agarradas às mães aflitas. Os homens, por seu turno, redobravam os
cuidados, munidos de armas de emergência. Quem olhasse para cima e visse o céu
tão limpo e sereno, as estrelas rebrilhantes como um estendal de diamantes e a
Lua soberba em sua claridade opalina, sentiria ainda mais os efeitos dolorosos e
cruéis desse contraste chocante. Na terra, a dor, o desespero e a angústia; no
céu, a placidez e a harmonia de astros e planetas, seguindo, obedientes, a rota
determinada pelo Criador.
Depois de longos dias e de noites ainda
mais longas de expectativa cruciante, alguém sugeriu:
- Tem sido inúteis até agora todos os nossos
esforços. Cresce o número de vítimas desse tigre amaldiçoado. Acabo de
lembrar-me de um homem que talvez seja capaz de nos orientar para sairmos de
tão crítica situação.
- Quem é AI Bazan, quem?! - indagaram os principais
homens do povoado.
- Krenewec, o eremita. Ele conhece segredos
que vêm de Allah. Entretanto, vive na encosta do monte Abikassim, que dista
daqui cinco dias e cinco noites de marcha constante. Se o encontrarmos lá,
gastaremos mais tempo na volta porque Krenewec já sente o peso de muitas
décadas e não mais cavalga com o desembaraço dos jovens.
Ficou resolvido que o autor da sugestão se
pusesse a caminho sem perda de tempo, ao que ele respondeu:
- Irei imediatamente, enfrentando o perigo
desta noite escura. Antes, desejo explicar como se pode atingir o retiro de
Krenewec. O monte Abikassim, como sabemos, fica ao nordeste, depois do rio
Bakuali. Atravessado este, segue-se em frente, até o desfiladeiro de lnatam-Ogima.
Mais adiante se encontrará o precipício denominado Boca da Morte. Em
determinado trecho, à esquerda, há uma caverna e cinquenta metros após, sobre
uma elevação que margeia o mais perigoso ponto da Boca da Morte, vive Krenewec,
entregue às suas preces e meditações.
AI Bazan partiu em seguida. Começava a
madrugada. A Lua, até então oculta entre as nuvens, buscava o horizonte, concluído
que fora seu plantão noturno, na expectativa do Sol, cujos fulgores não
tardariam a ser percebidos. O cavalo de Al Basan pôs-se inquieto e começou a refugar,
tentando retroceder. Compreendeu o cavaleiro que algo de anormal fora por ele
pressentido. Esporou-o mais, obrigando-o a avançar. Relinchando, o animal se
empinou bruscamente, recusando-se a prosseguir. AI Bazan perdeu o equilíbrio e
caiu, enquanto o ginete, assustado, corria velozmente, rumo ao povoado de onde
viera. Foi quando surgiu o tigre. O infeliz sacou de uma arma, disposto a
defender-se valentemente. Não tinha onde ocultar-se e mesmo que tivesse não
haveria tempo para fazê-lo. Quando a fera saltou sobre AI Bazan, ele errou o
golpe. Entrementes, o cavalo chegara ao povoado, suscitando comentários e
fazendo recrudescer o pavor. Alguns camponeses se lançaram à estrada, na ânsia
de salvá-lo se fosse possível. Lá estava, no pó do caminho, que a Lua, já em
retirada, banhava suavemente, o rastro sangrento que se dirigia para a mata
próxima. Os restos de AI Bazan formavam uma pasta informe... Regresso triste,
esse, depois do macabro encontro. Na manhã imediata, todos se reuniram. Era
imprescindível que alguém fosse em procura de Krenewec. Todavia, ninguém teve
coragem de se oferecer. Mimba-Al-badín, o decano dos habitantes do povoado,
sugeriu que se fizesse o sorteio de quem deveria substituir o inditoso Al
Bazan.
Todas as faces estavam marcadas pelo horror,
ia ser feita a escolha quando apareceu o jovem Tamuraka, forte e valente. Incluído
seu nome
entre os dos que ali estavam para o sorteio, Mimba-Albadin falou:
- Perdemos a presença de AI Bazan, mas
sentimos que ele se acha entre nós, estimulando-nos à luta em defesa de nossas
vidas e de nossa tranquilidade. Estou velho para suportar a viagem ao monte
Abikassim. Entretanto, não censuro os que temem a empreitada. É preciso, porém,
que alguém se arrisque em favor de todos, destas mulheres infelizes, que choram
a sorte dos filhos, destas crianças inocentes, que precisam de proteção. O
sorteio indicará quem pode substituir Al Bazan.
Feita a escolha, foi proclamado o nome de
Tamuraka. O rapaz permaneceu sério. Nada falou. Dirigiu-se ao cavalo que o
esperava e ganhou a estrada, quando o Sol já havia despontado e dourava o cume
dos montes próximos. Quando ele se sumiu entre a poeira do caminho, homens e
mulheres se entregaram a preces fervorosas. Alguns dias de angústia foram vividos,
sem a mais leve notícia do rapaz. O tigre parecia também haver-se acalmado ou
seguido outros rumos, porque não mais foi assinalada a sua presença nas circunvizinhanças.
Mesmo assim, a vigilância continuava, dia e noite.
*
Chovia torrencialmente quando, duas semanas
depois. Tamuraka reapareceu em Chinduin, acompanhado do velho Krenewec. Graças
foram dadas a Allah, por haver permitido não se desfizessem as esperanças
daqueles corações em pânico, Trocadas as roupas molhadas, Krenewec e Tamurak.a
tomaram uma sopa quente, a fim de se refazerem da jornada sob tempo tão
ingrato. Em poucos instantes o velho eremita tomou conhecimento de todos os
pormenores do caso, embora já conhecesse superficialmente a tragédia que se
abatera sobre Chinduin, através do relato de Tamuraka. Não disse palavra. Apenas
meneou levemente a cabeça. Retirou-se para o repouso de que necessitava,
conservando sempre aquela taciturnidade que lhe emprestava ares de mistério.
*
Nos dias que se seguiram, evitou perguntas
e conversações sobre os acontecimentos que perturbavam a paz daquela gente sem
maldade, entregando-se ao meditações profundas, achava estranho que o tigre não
desse sinal algum de sua presença, nem ali nem nos arredores. Teria sido morto?
Estaria devastando outra região? Uma noite resolveu sair sozinho, desatendendo
as advertências do pequeno povo. Desejava falar com Tamuraka, com quem simpatizara.
Não o encontrou, porém, e retornou à cabana mais ensimesmado que nunca. Pela
madrugada, teve a impressão de ouvir longínquo rugido. O povoado estava tranquilo.
Teria sonhado? Não, tanto assim que novo bramido repercutiu em seus ouvidos sensíveis,
como vindo de muito longe. Krenewec saiu em direção ao ponto de onde julgava
ter partido o urro pavoroso. Alguns campônios se movimentaram, emocionados.
Krenewec, sem ser visto, embrenhou-se na floresta. Tinha confiança em si, não
temia o tigre, mas desejava evitar, se possível, outra desgraça. Nisto, atinge
uma clara e depara um quadro sinistro: ali jazia um corpo humano, num rio de
sangue. Estava, irreconhecível. Por ali passara o tigre! Aproximou-se mais do cadáver
e viu a mão direita empunhando uma faca, também ensanguentado. Não havia dúvida
que houvera luta e tudo indicava que a fera fora ferida. Curvou-se sobre o solo
e percebeu que as pegadas do animal se achavam relativamente visíveis. Seguiu-as
com cuidado, sem se lembrar de que, desarmado como estava, poderia ser sua
próxima vítima, A medida que caminhava, as pegadas do tigre se confundiam com
vestígios de sangue. Tal observação o estimulou. Resolveu prosseguir para
localizar a fera, se possível. No entanto, alguns metros mais à frente, um
arroio cortava o caminho e aí desapareciam as marcas das patas do tigre. Tentou
descobrir novos indícios, atravessando o arroio. Foi feliz: encontrou outras
pegadas e sinais recentes de sangue. Resolveu segui-las, o que fez com o mais
absorvente cuidado. Após meia hora de pesquisa, vislumbrou uma cabana oculta
entre a espessa mataria. Seguiu a trilha visível do mato acamado, lá chegando
em alguns minutos. Cautelosamente, acercou-se da porta. Manchas de sangue
comprovavam que o tigre ali estivera. Tudo era silêncio e silêncio
impressionante. Empurrou a porta devagarinho e o que viu foi surpreendente.
- Tamuraka! - exclamou.
Achava-se o rapaz deitado de costas, imóvel,
no chão, com o peito encharcado de sangue. Teria sido também atacado pelo
tigre? Krenewec debruçou-se sobre ele. Estava vivo e gemia.
O velho saiu e pisou ervas que colhera na
floresta, colocando um emplastro no extenso ferimento. Quando Tamuraka
recuperou os sentidos, não ocultou a estranheza que lhe causava a presença de
Krenewec, mas apenas balbuciou:
- O tigre ... Resisti, mas ele é mais forte
... mais forte que a minha vontade...
- Não há de ser nada, rapaz - respondeu o
velho. Foste valente, bem vejo que o foste.
Mais tarde, fez que Tamuraka fosse levado
para a sua cabana, a fim de ser convenientemente tratado.
*
Era grande o alvoroço provocado pela volta
do tigre. Em poucas palavras, Krenewec dissera o mínimo do que vira e todos
louvavam a valentia de Tamuraka. Lutara com o tigre e o ferira, fazendo-o fugir!
O tigre fugira! Talvez, agora, não se mostrasse tão ousado, admitiam.
Quinze dias depois, Tamuraka estava
convalescendo. Trazia no peito uma cicatriz enorme, que parecia um rasgão
produzido pela garra da fera. Se antes era pouco comunicativo, depois disso Tamuraka
se tornou mais calado e arredio. Somente tolerava a presença de Krenewec. O
velho tinha qualquer coisa que ele não sabia explicar. Prendia-o,
influenciava-o. Mesmo assim, Tamuraka disse-lhe que precisava voltar para a sua
cabana, no seio da floresta. Embora seu esconderijo houvesse sido descoberto,
queria voltar para lá.. Não tinha medo do tigre. Fervilhavam os comentários no
povoado, porque ninguém conhecia a cabana de Tamuraka e ninguém poderia supor
que ele se recolhesse justamente ao lugar que a fera escolhera para seu
"habitat". Foi quando Krenewec interveio:
- Tamuraka pode ir. Allah dispõe todas as
coisas com infinita sabedoria... E Tamuraka foi.
*
Recolhido à cabana, o velho voltou a
meditar. Fez reflexões demoradas sobre o ferimento do rapaz. Seu rosto foi-se
iluminando, graças à presença de entidades diáfanas que o rodeavam. Todas
demonstravam o mais profundo respeito pelo venerando Krenewec. Então, pelo
pensamento, ele começou a conversar com os amigos que a sua vidência permitia
distinguir. Humilde, o velho fazia com a cabeça sinais de assentimento e, por
fim, a voz triste, murmurou de maneira quase imperceptível:
- Se é preciso que a Lei se cumpra, cumpra-se
a Lei.
Retomou seus passeios noturnos. Embora, o
tigre houvesse desaparecido de novo, recomendou aos campônios que tivessem
cautela, porque, afinal, podada surgir de um momento para outro, em qualquer
ponto do povoado. E acrescentou:
- O tigre vive, alguma coisa me diz que ele
vive.
- Como, então, te arriscares assim, indo sozinho
por esses matos, adentrando a floresta? - perguntaram-lhe.
Krenewec sorriu, contestando:
- Irei com cuidado. Se vim aqui para ajudá-los,
deixem-me fazer o que me pareça conveniente. Sobre todas as vontades paira a
vontade suprema de AlIah.
Saiu por alguns minutos e regressou à cabana,
de modo que todos o vissem chegar. Mais tarde, saiu de novo, desta vez sem ser
percebido. Queria ver Tamuraka. Seguiu o caminho já conhecido e, ao
aproximar-se da cabana, chamou-o. Não teve resposta. Empurrou a porta e viu o
jovem deitado no chão, como no dia do último
ataque
do tigre. Fez-lhe algumas perguntas e as respostas que teve, muito confusas, pareciam
denotar que Tamuraka se achava embriagado, pois pronunciava frases assim:
- O tigre saiu ... É mais forte do que eu
... Não quero que ele saia. Não quero! Entretanto, não posso evitá-lo... sua
vontade me domina ...
Sua voz foi-se tornando débil. Krenewec deixou
apressadamente a cabana e se recolheu ao lugar que lhe haviam destinado. Não pode
repousar, entretanto, porque, minutos depois, foram chamá-lo. O tigre
reaparecera! Krenewec foi avisado e recomendou que ninguém perdesse a serenidade.
Era preciso calma para que se
concertassem
meios de assegurar a defesa dos que ali se encontravam recolhidos.
*
Dois dias se passaram sem novas notícias do
tigre. Tamuraka foi visitar Krenewec. Estava bem disposto e até mesmo alegre. O
velho recebeu-o com afabilidade. Disse-Ihe que ficasse para ver o que iria
fazer. Em seguida, sentou-se no chão, sobre as pernas, à moda dos iogues, pôs
os braços em forma de arco diante da cabeça, as palmas das mãos voltadas para
dentro e os dedos encostados às têmporas. Ficou assim largos minutos. Tamuraka
guardou absoluto silêncio e acompanhava, intrigado, os movimentos do eremita.
De quando em quando, sentia uns estremeções que o faziam empalidecer. Mas
Krenewec, os olhos fitos nele, falou com voz firme:
- Tamuraka: conheço teu segredo.
O rapaz estremeceu ainda mais e o sangue
lhe fugiu da face, ao responder, ofegante: - Já o desconfiava, mestre. Mas não
sou culpado. Quando sinto o corpo quebrantar-se, sei que "ele vai
"sair""... Tento impedi-lo. É inútil. Seu poder é maior que a
minha determinação. Não posso! Não, não posso...
Tamuraka pareceu perder os sentidos. Antes
que sobreviesse qualquer fato insólito, Krenewec passou aa mãos pela cabeça do
nativo, dizendo com firmeza:
- A minha vontade não é minha, mas de Allah,
de quem sou servo. Em nome d'Ele, ó espírito maligno, eu te impeço de sair!
Deixa em paz este instrumento, do qual te serves para funestos fins! Vamos! Já!
Tamuraka semelhava um cadáver. Alguns
espasmos violentos sucederam à enérgica ordem de Krenewec e, a pouco e pouco,
porém, o rapaz foi recuperando o domínio de si mesmo, até que se ergueu com
dificuldades, como se estivesse
exausto.
Olhou para Krenewec de maneira singular. Baixou em seguida a cabeça e confessou,
mais uma vez desalentado:
- Não tenho forças para fugir a essa
subjugação. Tento reagir, mas sinto como se o meu cérebro obedecesse mais a
ordens estranhas do que a minha vontade. E cedo diante de sensações que não
poderei descrever.
- Não deverias jamais ter praticado a magia
negra, Tamuraka. Tudo está bem agora. Se queres ficar, fica.
- Agradeço-te a bondade. Desejo, entretanto,
estar só. A minha cabana me atrai.
Em poucos minutos, Tamuraka se achava na
floresta. Experimentava ânsias que faziam seu coração saltar. Correu o mais que
pode, até alcançar a cabana. Mal entrou, teve uma convulsão mais forte do que
as que havia sentido anteriormente. Tombou no chão, desamparado. Contorcia-se
todo, gemendo, como se estivesse lutando contra invisível inimigo. De sua boca
saía uma espuma esverdeada e seus olhos foram adquirindo uma expressão dura e
cruel até que se imobilizaram, vidrados.
*
Krenewc a tudo assistia, oculto.
Acompanhara-o, na certeza de que algo de anormal sucederia. Não gostara do que
vira antes que Tamuraka se retirasse, Agora, no entanto, tudo excedera a sua expectativa..
O rapaz estrebuchava. Acercou-se dele, cujo estado semelhava o de um bêbado.
lnterrogou-o. Tamuraka pronunciou palavras ininteligíveis. Depois, pronunciou algumas frases soltas, ora
compreensíveis ora desconexas.
-"Ele" está furioso. Nunca o
senti assim... Quis evitar que saísse. Não pude... "Andei" visitando
a estrada... Eu, não: "Ele"... "Ele"! Ah! Aquele homem, ao
norte... Aquele homem ...
Krenewec não quis ouvir mais nada. Saiu
depressa, tomou por um atalho e logo ao chegar ao reduto dos camponeses,
recomendou:
- Tomem cavalos e sigam em direção ao
norte. Há um homem em perigo! Corram! Numeroso grupo partiu a galope, na
suposição de que ainda fosse possível salvar a vida do homem. Desgraçadamente,
era tarde demais. A três quilômetros, um corpo horrivelmente mutilado atestava
mais uma incursão macabra do tigre homicida. Enquanto isto, Krenewec havia
regressado à cabana do nativo e pudera ver seu dramático retorno à normalidade.
Logo que se apercebeu da presença do
eremita, o rapaz repetiu as justificativas anteriormente feitas:
- Que poderei fazer'? Resisto quanto posso
mas o tigre é mais forte. Quando sinto a sua aproximação, fico com o cérebro
entorpecido. Meu corpo se torna pesado e minha alma parece violentamente
sacudida, deixando-me a impressão de que de dentro de mim sai outro corpo,
ansioso de liberdade. É o tigre! Quando ele volta satisfeito, recupero a
serenidade e vivo como qualquer criatura normal. Se, porém, retorna irritado,
meu sofrimento é grande. Fico acabrunhado, sem ânimo, com os nervos tensos. É
meu destino, esse. Vivo como se nunca estivesse só. Quando "ele" se
afasta do meu íntimo recupero a alegria, tenho vontade de cantar, de viver a
vida simples e saudável dos meus companheiros.
Krenewec ficou pensativo, Abraçou o rapaz e
deixou a cabana. Em seus ouvidos soavam com inusitada insistência:
- "Se é preciso que a Lei se cumpra,
cumpra-se a Lei!”
*
Chegara ao povoado, pouco antes, um troço
de soldados Incumbidos de dar caça ao tigre. Vinham todos excepcionalmente
armados, Passaram pela cabana de Tamuraka e pediram esclarecimentos sobre o
animal que tanto pavor disseminara. O rapaz mostrou os diversos pontos em que fOra
assinalada a presença da fera... Depois que os soldados partiram. chegou
Krenewec. Tamuraka se achava excessivamente nervoso, Decidiu o velho, diante
disto, observá-lo a distância. Queria tirar novas conclusões do mistério que
envolvia a vida desse nativo estranho. A porta se achava escancarada. Tamuraka passou
a mão pela cabeça, espreguiçou-se e cambaleou. Pretendeu reequilibrar-se, mas
não pode, tombando a fio comprido. Krenewec aproximou-se, lenta e cautelosamente,
colocando-se em lugar seguro, de onde pudesse vê-lo sem correr perigo. E o que
viu, espantou-o.
Tamuraka se contorcia em espasmos
violentos. Gemia e babava. Seus gemidos, no entanto, pareciam surdos rugidos. O
corpo se sacudia em convulsões impressionantes. Em dados momento pardacenta
névoas começou a sair da altura do coração do rapaz, que continuava babando,
tal como ema ataque de epilepsia. A face contraída e coberta de profundo palor (palidez), se desatava em
esgares simultaneamente trágicos e grotescos. E, à medida que a névoa fluídica
se adensava, as contorções do corpo aumentavam. Não tardou se esboçasse
disforme volume. Krenewec estava perplexo.
Concentrou toda a atenção no fenômeno que
se desenvolvia. Agora, a névoa cedera lugar a uma pasta viscosa, semi-translúcida,
que ia mudando incessantemente de tonalidade. Descendo do peito largo de
Tamuraka, essa pasta, como se tivesse vida, começou a se estender pelo chão,
como um réptil. Da forma antes indistinta tor
nava-se
visível a cabeça de um tigre real! Lentamente foi surgindo o corpo da fera,
robusta e de incontestável beleza. A operação fluídica chegava a seu termo. Lá
estava o tigre soberbo e poderoso. Escancarou as fauees e seu hálito quente
cobriu o rosto pálido de Tamuraka. Os espasmos haviam desaparecido, mas o
nativo respirava com dificuldade, parecendo em completa inconsciência. O animal
se dispôs a sair. Seu andar majestoso realçava o corpo sólido e ágil. Parecia
enfurecido. Bateu com a pata no chão e rugiu. Olhou desconfiadamente para os
lados como se pressentisse a presença de Krenewec. Este, dotado de agudíssima vidência,
pode observar tênue cordão fluídico ligando o tigre ao coração de Tamuraka. Era
espantoso, sem dúvida! O rapaz agia como médium, fornecendo o ectoplasma para a
extraordinária materialização da fera.
Jamais o velho eremita defrontara problema
tão sério. Como explicar o que vira? Seria possível a materialização de animais
com o ectoplasma de um ser humano? Krenewec não queria aceitar semelhante
hipótese, que contrastava com os conhecimentos que possuía. Mas os fatos ali
estavam, desafiando uma solução. Muito tempo esperou antes de ousar invadir a cabana.
Quando o fez, teve o cuidado de não tocar em Tamuraka. Sentou-se sobre as
pernas, pôs os braços em forma de arco, diante da cabeça, as palmas das mãos
voltadas para dentro e os dedos encostadas às têmperas. Sincera prece saiu de
seus lábios, antes de invocar o auxílio das forças invisíveis. Krenewec
desejava livrar Tamuraka do tirânico domínio do tigre real. Admitia que ele fosse
vítima de Espíritos trevosos. Todavia, tinha a mente em confusão, apesar do
forte controle que exercia sobre si mesmo. Terminada sua tarefa, afastou-se,
disposto a aguardar que o felino regressasse. Já escurecia, quando terrível
bramido sacudiu a floresta. Era o tigre que voltava! Tamukara mantinha-se na
mesma posição. Apenas seu peito arfava cada vez mais, Escudado na prece, Krenewec
aguardava, confiante, a chegada do temível animal. Minutos após viu o tigre
transpor de um salto pequena elevação de terreno e perder-se por trás dos
arbustos. Rumores de vozes nervosas quebraram, nesse instante, a quietude
ambiente e intensa fuzilaria indicou que a fera estava sendo caçada. De fato,
mortalmente ferida, ela soltou tremendo urro, saltando espetacularmente. No
mesmo momento, Tamuraka, deixando escapar angustioso grito, fez violenta e impressionante
contorsão, indo cair do lado de fora da cabana. Krenewec quis correr ao seu
encontro, mas resolveu esperar. Viu, logo após, o tigre real arrastar-se
penosamente, De sua cabeça, grande e bonita, manava sangue... Olhou para
Tamuraka e quase a surpresa o fez soltar uma exclamação. Também da cabeça de Tamuraka,
em ponto idêntico, de um orifício corria um filete de sangue.... Krebewec se
sentiu como que galvanizado. Enquanto o tigre se ia desmaterializando, primeiro
as patas traseiras, o corpo, as patas dianteiras e finalmente a cabeça, o ectoplasma
se encolhia estranhamente, refluindo com relativa rapidez, até desaparecer à
altura do coração de Tamuraka. Nesse instante, o nativo teve um último estremecimento.
Krenewec saiu do esconderijo para socorrê-lo. Era tarde, tarde mais...
*
Morrera o tigre real. Tamuraka também havia
partido. Antes que os soldados surgissem, Krenewec lhe escondeu o cadáver numa
grota, cobrindo-o de folhas secas. Logo após, passaram, por perto, os
caçadores. Invadiram cautelosamente a cabana e saíram desapontados. Para eles,
o tigre conseguira salvar-se.
No povoado, o acontecimento era festejado,
embora restasse alguma desconfiança, por não haver sido encontrado o corpo do
tigre. Krenewec, na manhã seguinte, tranquilizou os mais aflitos:
- Amigos; Krenewec vai embora. Terminou sua
missão. O tigre não voltará mais.
Montando o cavalo que lhe destinaram, tomou
em silêncio o rumo do monte Abikassim. E ao relembrar a coincidência do
ferimento que atingiu o tigre e "repercutiu" em Tamuraka, murmurou
humildemente:
- Há ainda muita coisa que o homem ignora. Allah
é grande e sua sabedoria é infinita.
E, suspirando, rematou:
- Era preciso que a Lei se cumprisse... A
Lei se cumpriu...
Nota do Autor - Este conto foi
baseado num fato narrado por Herbert Tichy em "Hacia em Trono de Ios Dioses", da Editorial Labor S.A., Barcelona,
a respeito dos "homens-tigres", do lugar denominado Tomati, bem ao
Norte da Birmânia. A narrativa é produto de imaginação, exclusivamente, embora seu
desfecho guarde certa similaridade com o episódio mencionado por Tichy, escritor
completamente leigo e intenso ao Espiritismo: "Hace dos meses, vinieron unos amigos ingleses de excursiõn a estas
comarcas y Iograron matar un tigre soberbio. Y a la misma hora en que derribaron
el tigre, moria en Tomati el hombre de referência, sin causa ninguna aparente".
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