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Começaremos por um caso descrito na
obra magistral de Frederick H. Myers, o eminente psicólogo inglês, intitulada A
PERSONALIDADE HUMANA, obra de tão alto valor científico e, conseguintemente,
demonstrativo, que foi adotada em uma, e não sabemos se mais outras Universidades
da Inglaterra, para o estudo da Psicologia.
A narrativa tem, para prestigiá-la, não
somente o agasalho que, na mencionada obra, lhe foi dispensado pelo autor, cujo
rigor na pesquisa e escrúpulo na classificação dos fatos não constitui o seu
menor título de renome no mundo científico, mas ainda a circunstância de ser um
médico o seu protagonista, com a particularidade de se não ter dado a desencarnação,
em cuja iminência esteve, tendo assim podido relatar as suas impressões pessoais,
depois de restituído ao estado de saúde.
Utilizamo-nos da tradução feita pelo
Dr. Souza Couto e por ele publicada, sob a dupla epígrafe "Impressões de um médico - No limiar da
Eternidade," na edição de junho de 1900 de sua excelente revista
ESTUDOS PSYCHICOS (Lisboa), precedendo-a das seguintes observações:
"A última obra, A PERSONALIDADE HUMANA, do profundo investigador F.Myers, documenta-se
com fatos de altíssimo interesse, entre os quais destacamos hoje o relato do Dr.
. Wiltse, que foi publicado no JORNAL DE MEDICINA E CIRURGIA de S. Luís (novembro
de 1889). Esse fato foi recolhido pela Sociedade de Investigações Psíquicas,
tão prudente nos seus inquéritos; mas ainda o Dr. Hodgson e F. Myers o declararam
da maior importância, depois do estudo pessoal que fizeram do seu relator.
"É a própria narração original,
abreviada, do Dr. Wiltze, que vamos reproduzir."
É a seguinte:
"...Quando enfim se me dilataram as pupilas, começou
a vista a desaparecer-me e faltou-me a voz.
Invadido pela sensação de um entorpecimento
geral, fiz um violento esforço para distender os dedos e pude colocar os braços
sobre o peito; depois, tornando a fechar os dedos crispados, fui rapidamente
avassalado por um estado de inconsciência completa.
Durante quatro horas fiquei sem
pulso nem movimento perceptível ao coração, segundo informações posteriores do
meu médico assistente, o Dr. Raynes.
Durante esse tempo muitas pessoas
presentes me consideravam morto, e como a notícia se espalhasse, os sinos da povoação
dobraram a finados.
0 Dr. Reynes enterrou-me uma agulha
na carne, em vários pontos, desde os pés até a cabeça, sem que eu desse o menor
sinal de vida.
Durante essas quatro horas dos sinais descritos, houve meia
hora em que a morte se apresentava com toda a aparência.
Perdi toda a faculdade de pensar e todo
o sentimento de existência; encontrava-me em absoluta inconsciência... Quando a
consciência me voltou, reconheci que ainda estava no meu corpo, mas entre mim e
o corpo nenhum interesse comum existia.
Na admiração e na alegria,
estudava-me a mim mesmo; via o eu, o Ego
real encarcerado no não-eu, como num
sepulcro de argila.
Com a curiosidade de médico, contemplava as maravilhas
da fisiologia corpórea, com a qual me confundia, alma viva desse corpo morto.
E então analisava com calma o meu
estado, raciocinando assim:
- Estou morto, segundo a linguagem dos homens, e, contudo,
mais que nunca, continuo a ser homem, Eis-me prestes a sair do corpo.
Seguia o processus interessante do desprendimento da alma.
Por uma força que não parecia sair
de mim, meu Ego era como sacudido de um lado e do outro lado, semelhantemente
ao balançar de um berço, e isso o ajudava a libertar-se dos laços do tecido
corporal.
Ao fim de um instante, suspendeu-se esse movimento,
começando eu a sentir e como que a ouvir, ao que me parece, numerosas picadas,
formando pequenos círculos, nas solas dos pés, desde os dedos até o
calcanhar.
Depois disso o meu eu começou a retirar-se vagarosamente das extremidades inferiores
em direção à cabeça, e, quando esta ascensão chegou aos quadris, reflexionava:
- Agora já não há vida para baixo,
nos pontos abandonados.
Nenhuma lembrança tenho de haver
atravessado o abdômen e o peito, mas lembra-me claramente ter feito a seguinte reflexão,
quando todo eu estava concentrado na cabeça:
- Eis-me completamente todo na
cabeça: - não tardará que dela me desprenda.
Como se eu fora vazio, atravessei o cérebro, comprimindo-o
e às suas membranas, ligeiramente; e enfim apareço no centro, entre as suturas
do cancro, emergindo como fascículos de folhas tênues de um invólucro membranoso.
Quanto à forma e a cor, recordo-me
nitidamente de que eu me parecia, a mim mesmo, qualquer coisa como uma medusa.
Prestes a desprender-me, percebi duas senhoras sentadas
à minha cabeceira. Calculei a distância entre o leito e os joelhos da senhora
em frente, concluindo que havia um suficiente espaço para eu aí poder ficar em
pé, mas via-me extremamente embaraçado com a lembrança de aparecer despido
diante dela.
Contudo, refletindo que com toda a
probabilidade ela não poderia ver-me com os olhos do corpo, pois eu era um espírito,
ousei subir.
Desde que saí, senti-me flutuar mais alto, mais baixo à
direita, 1 esquerda como uma bolha de
sabão que ainda adere à extremidades duma palha, até que por fim me desliguei
do corpo, caindo ligeiramente sobre o pavimento, donde me levantei, tendo tomado
a aparência exata de um homem. Eu era
transparente como uma chama azulada e encontrava-me completamente desnudado.
Com uma penosa sensação de constrangimento, escapei-me
até a porta entreaberta, para furtar-me ao olhar das senhoras que ficavam
defronte, assim como de outras pessoas, que eu sabia estarem em volta de mim;
mas, tendo atingido a porta, encontrei-me vestido.
Tranquilizado quanto a esse ponto, voltei novamente
para junto das pessoas que tinha deixado.
Havia junto à porta dois cavalheiros e eu, ao passar, toquei
com o cotovelo esquerdo o braço de um deles.
Com grande espanto meu, o braço passou sem resistência através,
do meu, cujas partes divididas se aproximaram sem dificuldade, voltando a
reunir-se como ar.
Então atentei vivamente na fisionomia
desse cavalheiro, para ver se ele tinha sentido o contato, mas disso nenhum
sinal deu, e conservou-se em pé, olhando fixamente o leito, que eu há pouco
tinha abandonado.
Dirigi o olhar na direção do seu e
vi meu próprio cadáver.
Ele lá estava imóvel na atitude que
tanto me custou a dar-lhe, ligeiramente inclinado sobre o lado direito, os pés
juntos, as mãos cruzadas sobre o peito. Fiquei surpreendido com a palidez das faces.
Desde muitos dias, não me tinha visto ao espelho, e por isso julgar-me-ia menos
descorado que a maior parte das pessoas igualmente doentes. A mim mesmo me
felicitei pela atitude decente que tinha sabido dar ao meu corpo, na esperança
de que meus amigos se impressionariam menos à minha vista.
Vi muitas pessoas, umas sentadas, outras em pé, rodeando
o meu corpo, e em particular notei duas senhoras que pareciam ajoelhadas à
minha esquerda. Depois soube que eram minha mulher e minha irmã, mas naquele
momento não tinha consciência das individualidades: esposa, irmã, amigo, para
mim tudo era a mesma coisa.
Depois disso quis chamar a atenção das pessoas, para
ver se as confirmava na certeza da sua própria imortalidade. Fazia-lhes
graciosas saudações e enviava-lhes cumprimentos com a mão direita, colocando-me
no meio delas; mas nenhuma atenção me davam.
Então reconheci o cômico da minha situação.
Eu pensava que isto devia ser
percebido, mas não parecia, porque ninguém tirava a vista do meu cadáver.
Comigo mesmo refletia:
- Os outros só vem com os olhos do
corpo, não podem ver os espíritos. Velam aquilo que tomam por mim, mas eu estou
aqui mais vivo que nunca.
Depois atravessei a porta, desci a
escada e segui até à rua. Aí olhei em torno de mim. Nunca tinha tão distintamente
visto essa rua como naquele momento. Notei a cor rubra do sol e as poças de água
deixadas pela chuva. Olhei ansiosamente em volta de mim, como aquele que vai ausentar-se do lar por muito tempo.
Descobri então que era maior do que na minha vida terrestre, e isso me alegrou.
Corporalmente eu era um pouco mais
baixo do que desejava ser, e então pensava: "na minha vida talvez seja
realizado meu desejo."
Notei também que a minha roupa se acomodava à nova estrutura,
e perguntava a mim mesmo, com admiração, de onde tinha vindo essa roupa e como
me achava com ela sem o saber.
O fabrico era parecido com uma espécie
de tecido da Escócia, uma boa fazenda, não luxuosa, mas conveniente.
Como me sinto bem! pensei eu: e há
alguns minutos eu estava horrivelmente doente e sofria; eis aqui a mudança que
nós chamamos morte, e de que tanto eu me horrorizava!: Mas operou-se: e sou eu
ainda um homem vivo e pensante! - Sim certamente, pensante com maior lucidez do
que nunca; e que bem-estar eu sinto! Nunca mais estarei doente, nunca mais morrerei!
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