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segunda-feira, 13 de agosto de 2012

54. 'Doutrina e Prática do Espiritismo'


54


            O narrador é um velho confrade, modelo de honradez, fiel aos ensinamentos da verdade, incapaz de, em tais condições, alterar de uma linha sequer a exatidão dos fatos que com ele se passaram e sobre cujas notas, obsequiosamente fornecidas, vamos bordar a instrutiva narração.

            Omitiremos o seu nome, em atenção às circunstâncias de sua vida privada, que figuram como parte integrante de tais sonhos e não devem ser, por isso, expostas às indiscrições da publicidade, bastando - nos parece - indicar a pessoa sob as iniciais A. P..

            Comecemos, pois, de acordo com as aludidas notas, historiando os antecedentes do primeiro sonho.

            "Corria o ano de 1880 - refere o nosso amigo A. P. - e como sempre, mas sobretudo nessa época, lutava eu com as mais sérias dificuldades para manter minha família. Quase sem trabalho, ganhando menos que o suficiente para dar o pão à esposa e aos filhinhos de tenra Idade, já havia sido forçado a suprir tais deficiências com o produto da venda dos nossos móveis e, sob um grande abatimento de espírito, acabara por me instalar com a família em um compartimento do prédio, único então e que ainda hoje existe, no morro da Favela, deitando a frente para a rua de Santana.

            ‘AÍ recebi, uma tarde, a visita de um indivíduo desconhecido, trajando sobrecasaca e tendo á cabeça um chapéu alto, o qual, com grande surpresa para mim e não menor escândalo para as minhas crenças, então católico-romanas, pôs-se a discorrer sobre Espiritismo, tendo subido ao morro expressamente para me falar em semelhante assunto.

            "Era um conhecido propagandista dessa doutrina, que eu vim mais tarde a abraçar, depois de tormentosas vicissitudes e dos benfazejos sucessos que intercalo à presente narrativa dos meus sonhos. A prevenção, que a esse tempo nutria contra os espíritas, supondo-os negadores da existência de Deus, quase me deu gana de atirar o tal indivíduo morro abaixo; mas limitei-me a fazer cara de poucos amigos, para o afastar.

            "Alguns meses se passaram e tive o seguinte sonho:

            "Achava-me á beira de um longo, infinito lodaçal, um verdadeiro mar de lama, que diante de mim se estendia a perder de vista. Súbito me aparece um individuo, chamado EDMUNDO (eu conhecia um empregado na Alfandega com esse nome), o qual me falava e me convidava com insistência para atravessar a nado o tal pântano.

            "Eu estava muito aflito, sentindo, não sei porque, a necessidade de fazer semelhante travessia, mas sem o poder. E o EDMUNDO insistia, insistia sempre, ao que eu replicava alegando a evidente impossibilidade e, para a demonstrar, peguei duma vara muito comprida, das que se usam para impelir faluas (tipo de bote com velas), e a atirei ao mar de lama. Caindo verticalmente, a vara sumiu-se no mar sem fundo.

            Na minha aflição, creio que Invoquei o socorro do céu, e, mal o havia feito, vejo aproximar-se, montado num cavalo branco, um menino louro, cujos cabelos flutuavam ao vento e cujas pernas mal chegavam à barriga do cavalo. Vinha a todo galope e estacou ao pé de mim. Contemplei-o e lhe pedi que me amarrasse uma corda ao pescoço e, segurando na outra ponta, me fosse ajudando a atravessar o mar de lama. Se visse, que eu me submergia, puxasse a corda para me salvar.

            "O menino, sem me falar, estendeu a mão por sobre a cabeça do cavalo, na direção do mar, e logo o mar de lama, Edmundo, ele próprio e o cavalo, tudo desapareceu, diante de mim se apresentando então uma rua, ou estrada, muito larga e muito clara, para a qual corri... corri... e acordei."

            Tal foi o primeiro, curioso sonho, cuja tradução, depois de muito meditar, conferindo-a com sucessos posteriores, que resumiremos em seguida, pareceu ao nosso amigo A. P. ser a seguinte:

            "É evidente - diz ele - que uma fase angustiosa e sofredora de minha vida, assaltada de tentações, me era por essa forma anunciada. Resistindo, porém, e apelando para o céu, eu seria socorrido e salvo. Diversos amigos espíritas, aos quais, depois de convertido, tive ensejo de consultar; aprovaram a interpretação que dei. Para uma coisa, porém, nem eu nem eles encontrávamos explicação: porque era o EDMUNDO que me aparecera em semelhante sonho? EDMUNDO, por quê? - Até que, um dia, depois de muitos anos, me veio repentinamente a tradução: "E-d-mundo (ou É DE MUNDO) a tentação que arrasta para o abismo ... "

            Parece, pelo menos, razoável .

            Mais expressivo, contudo, foi o sonho imediato, precedido dos dolorosos sucessos, nesse primeiro por forma simbólica vaticinados, e que, por constituírem um elemento de coordenação que melhor fará compreender a propriedade e significação do segundo sonho, convém historiar. É este o resumo:        

            Sob a pressão de influências invisíveis, de que então não suspeitava, decorridos alguns meses da primeira visão simbólica, o nosso amigo A. P. entrou num verdadeiro estado de obsessão, de que, só mais tarde, graças à doutrina espírita, que abraçou, e lá benévola intervenção de companheiros, que de seu tratamento se incumbiram, veio a ser completamente libertado.

            A ideia dominante, nesse estado mórbido, era o suicídio.

            "Chegava a comprar chumbo de caça – refere o nosso amigo - e com ele encher as meias, os bolsos da calça e do paletó, por duas ou três vezes tendo me encaminhado; noite alta, para a ponte das barcas Ferry, com o firme propósito, minuciosamente delineado na mente, de tomar a última barca da carreira para  Niterói, que transportaria naturalmente poucos passageiros, subir à tolda (discretamente) e quando chegasse ao lugar mais profundo, no meio da Bahia, precipitar-me da proa da barca ao mar, de modo a ser apanhado, na passagem, pelas pás de uma das rodas, e ir ao fundo, sem que o meu corpo sequer voltasse a tona, graças ao peso do chumbo. 

            De cada vez porém que empreendia essa alucinada e criminosa tentativa, ao atravessar o antigo largo do paço, hoje praça 15 de Novembro, rumo da estação das barcas, tanto que me aproximava do chafariz de pedra, que a inda lá existe, ante meus olhos se apresentava a visão de meus dois filhinhos, com as camisinhas esfarrapadas, a dormir, e que ficariam na orfandade e no abandono.

            "Então todo o amor que votava aquelas criaturinhas - o santo a mor paterno - se levantava em meu coração como um protesto e eu voltava para o morro da Favela, a correr como um doido pelas ruas. Entrando no quarto, me debruçava sobre meus filhos e os beijava e chorava como um verdadeiro arrependido.

            Mas no mesmo instante um sentimento estranho, como o remorso de não haver executado o sinistro intento, me assaltava. Era uma luta horrível de duas vontades opostas, que em mim mesmo se travava.

            "Foi nesse angustioso transe que vim a conhecer a doutrina espirita, tendo tido no começo de minha iniciação o seguinte sonho:

            "Achava-me no fundo do mar, em pé e muito admirado de me não afogar, sentindo-me no contrário perfeitamente vivo. Agitava os braços, encontrando a resistência da água, e todavia ... não me afogava. Lembrei-me então de caminhar, até sair em alguma praia . Mas – terrível surpresa! - meus pés estavam como soldados ao fundo do mar, e por mais que me esforçasse movendo o corpo, a fim de me desprender, nada conseguia. Nesse momento as águas começaram a me sufocar, uma angustia espantosa se apoderou de mim, forcejei por gritar ... gritar ... e acordei.

            "Estava deitado na cama, em decúbito dorsal, aos pés de minha mulher e de meus filhinhos. Ao me recostar, já tarde, tinha levado, para ler na cama, uma das obras de Allan Kardec, não me lembra se O Livro dos Espíritos ou O Céu e o Inferno e, invadido pelo sono, adormecera com o livro aberto sobre o peito.

            "Despertado por minha mulher, naquele momento aflitivo dobrei a folha do livro, no Iugar em que interrompera a leitura voltei-me de lado e readormeci.

            "No dia seguinte à tarde, quando (sem me lembrar do sonho) fui prosseguir na leitura, verifiquei, não sem grande surpresa, que havia terminado um capítulo e teria de em seguida ler a descrição do estado em que fica o espírito do suicida.

            "Porque se dera nesse momento a interrupção? Dir-se-ia – e essa é a minha convicção - que o meu bom Guia (1), depois de me haver amparado, meses antes, enviando-me um primeiro aviso pelo indivíduo de sobrecasaca e chapéu alto que me fora visitar no morro, e em seguida me encaminhando a conhecer a doutrina espírita, que me libertou da obsessão; deixara que eu lesse até um certo ponto. Antes que, porém, chegasse à descrição do estado em que fica o espírito do suicida e para que não atribuísse o sonho a impressão da leitura, me fez adormecer, e nesse estado de desprendimento me fez ver e sentir o horror que, pela misericórdia de Jesus e por sua desvelada assistência, me fora poupado. Graças, infinitas graças lhe sejam dadas!"

            (1) Oportunamente nos ocuparemos dessa doutrina, tão racional, dos anjos da guarda, ou espíritos guias e protetores das criaturas neste mundo.

             Dez ou doze anos se passaram depois disso, e o nosso amigo A. P., não mais abandonando o sagrado carreiro da iniciação doutrinária , a que devera positivamente a salvação de seu espírito, prestes que estivera, como se viu, a sucumbir ás tentações do mal, fazia parte da Federação Espírita Brasileira, como um dos membros de sua diretoria,  procurando servir à boa causa com o melhor de sua extrema dedicação, quando teve ainda um sonho do mesmo gênero, porventura mais eloquente na significação de cada uma de suas particularidades.

            Assim no- lo descreve ele:

            "Sonhei que voltava da casa do nosso bom e saudoso irmão Domingos Filgueiras, situada na rua General Caldwell, e acompanhado de algumas pessoas (não me quaies) seguia apressado pela rua Senador Pompeu, em demanda da Estrada ele Ferro Central, a fim de embarcar num trem. Ao chegar à rua Dr. João Ricardo, enveredei por um portão que ali existe, para encurtar distância tal a pressa que tinha de tomar o trem. Logo, porém, ao transpô-lo, senti-me preso (que singularidade!) à traseira de um cavalo. Receoso de levar um coice, fiquei sem me poder mexer e apenas me limitava a mover os olhos.

            "Nesse momento, vejo uma compassiva mão que, estendida do alto, da anca do animal, me libertou da incomoda prisão.

            "Acelerei o passo, rumo da estação, mas comecei a notar que todo o caminho - como a própria estrada da vida! - era negro como carvão, semeado de pedras e cavado de buracos, através dos quais, vencendo mil dificuldades, ia eu seguindo. De repente, sou detido por um extenso fio de arame que, atravessado, me impedia a passagem, inclinando-se até ao chão, se eu me abaixava para passar, e elevando-se, quando eu tentava passar por cima. Afinal, rastejando pelo chão e fazendo grande esforço, consegui vencer esse obstáculo.

            "Ao penetrar na plataforma, que lindo espetáculo se me deparou! Uma Iuz esplêndida, abundante, iluminava todo o local, que estava, entretanto, completamente deserto, destacando-se junto à plataforma uma locomotiva, com os metais reluzentes, parada e a resfolegar ruidosamente, como prestes a partir.

             "Encaminhei-me para ela e vi então meus dois filhos, que ansiosos me esperavam e entraram a me dizer: "Ande, papai, vamos, vamos!

            "Dirigimo-nos para um carro, ligado à locomotiva, e no momento em que eu deitava a mão a um dos varões, para subir, fiquei como estático ao ouvir uma voz, não apenas suave, melodiosa; mas de um acento celeste, inexprimível, que do alto me dizia: "Sim, sim; mas para entrar aí, precisas ter duas bagagens, uma para ti mesmo: Fé e Humildade; e a outra: Amor, Benevolência, Indulgência, Caridade para todos .. para todos .. para todos... E a voz se elevava ao espaço e sumiu-se, repetindo sempre: "para todos.... para todos ... "  
               
            "Acordei sob o deslumbramento dessa amorosa exortação que ainda hoje me desperta na alma a mais grata, perturbadora e porque não dize-lo? - melancólica emoção, pela falência e tibieza, de que me acuso, em ,pô-la em prática!

            “A tradução do sonho, até esse trecho final, claramente explícito e que, por isso, nenhuma interpretação exige, me parece a seguinte:

            "Do convívio com um crente humilde e fiel, como era Domingos Filgueiras - personificação da doutrina de Jesus - saía eu com a apressada resolução de tomar a estrada do progresso, representado simbolicamente na locomotiva. Nessa resolução era,  primeiro, detido pelo meu atraso - a prisão na traseira de um cavalo, - mas o auxilio do alto - a mão que se me estendia - logo me desembaraçava. Em seguida, porém, o que se me apresentava não era uma estrada lisa e plana, senão um caminho cheio de tenebrosos obstáculos, representados nas pedras negras e buracos de que estava semeado, imagem dos embaraços e perigos que têm acidentado toda a minha vida, ao mesmo tempo que dificuldades e resistências opostas do invisível - a vontade oculta que movia para cima e para baixo o arame, impedindo-me a passagem -reforçavam aqueles empecilhos. Para os anular e seguir avante, só um meio se me deparava: inclinar-me até ao chão e rastejar, isto é, fazer-me muito humilde. Com essa humildade, base de todas as virtudes, chegaria à iluminada plataforma do progresso espiritual, onde os mensageiros da Providência, personificados em dois amigos fieis - os meus dois filhos, que o têm sido, sim, mercê de Deus! - me esperavam ansiosos, acima deles e de nós se fazendo ouvir, em amorosa advertência, a voz celeste, indicando a dupla bagagem indispensável ao roteiro eterno.

            "Terei interpretado bem?"

            Para completar a série de sonhos simbólicos que aí ficam, selecionados como os mais interessantes dentre os que nos foram relatados pelo nosso amigo A. P. expressamente para figurarem neste livro e que, assim, nunca foram dados à publicidade, nenhum nos parece mais digno de registro que o seguinte, para cuja compreensão necessário se faz um resumo dos sucessos que o precederam e a que se prende.

            Desempenhava o nosso amigo, como há pouco aludimos, um cargo na diretoria da Federação Espírita Brasileira, e grande era a esse tempo a sua aflição, em consequência dos graves embaraços que ameaçavam a própria existência daquela sociedade, resultantes da crise político-revolucionária que estalara nesta capital, em fins de 1893 e se prolongara até começos de 1894, com a sublevação da esquadra surta no porto, visando derrubar da presidência da República o marechal Floriano Peixoto.

            Os frequentes bombardeios pelos navios revoltados dirigidos contra os pontos fortificados da capital, a exaltação das paixões políticas, dividindo os brasileiros pró e contra esse deplorável pronunciamento militar e arrastando em tão funesta sugestão, grande número dos próprios adeptos do Espiritismo, haviam criado uma situação de permanente sobressalto e de desordem, não somente moral como financeira, e determinado o afastamento dos sócios da Federação, que já se não reuniam para os salutares exercícios de estudo doutrinário, nem contribuíam com suas quotas mensais para a manutenção da sociedade, Resultado: a dupla crise que lhe ameaçava a existência e já dera lugar a ser interrompida a publicação do órgão social, o REFORMADOR, assim se quebrando o único elo que ainda poderia prender os sócios, fazendo entre eles circular o pensamento doutrinário (1),

            (1) Ver, a esse respeito, a narração contida no ESBOÇO HISTÓRICO DA FEDERAÇÃO ESPÍRITA BRASILEIRA, edição de 1912, pags. 13 e 14.

            Foi sob a apreensiva situação de espírito resultante de tais alarmantes sucessos que o nosso amigo A, P. teve o seguinte sonho:

            "Achava-me num cais - descreve ele. - Sobre o mar revolto se agitava um pequeno barco, que as ondas ameaçadoras sacudiam desordenadamente e a cujo bordo eu via companheiros, aflitos por chegar a terra. De momento a momento o barco se aproximava do cais e eu, dando a mão, ora a um ora a outro dos companheiros, os ia ajudando a saltar em solo firme. Entre eles lembro-me bem de ter visto um, que se desligara da diretoria da Federação, quando atingia o auge a sua crise. Esse, ao contrário, procurando equilibrar-se no barco e lá permanecendo, ria francamente como a desafiar as ondas agitadas.

            "Despertei e, buscando a interpretação do sonho, julguei encontra-la deste modo: o naufrágio da Federação, representada no barco era evidente, sendo inúteis para evita-lo os meus esforços, mal podendo auxiliar os companheiros em perigo. Mas porque ficava a bordo precisamente aquele que a abandonara em meio da tormenta.”

            "Como para retificar este meu juízo, tive logo na seguinte noite um sonho breve, mas que se me afigura complementar.

            "Parado ainda em um dos cais tia cidade (não me lembra qual), eu contemplava ao longe a cordilheira que fecha a nossa Bahia, na direção do norte, e na qual se destaca a serra que, pela caprichosa originalidade de sua configuração, mereceu o nome de Serra dos Órgãos, um dos picos recebeu, pelo mesmo motivo e por se assemelhar, de longe, realmente a uma mão fechada, com o indicador voltado para o alto, a denominação de "Dedo de Deus."

            "Pois bem, no ápice dessa altaneira saliência vi eu uma pequena igreja toda branca, solidamente plantada naqueles alicerces. E a intuição me veio de que era a Federação Espírita Brasileira e despertei com esta ideia absolutamente clara: a Federação será salva e ficará inabalavelmente firmada na mão de Deus.

            "Não é verdade que os fatos têm vindo sancionar este aviso ( que, passada aquela última borrasca, depois que sobretudo se firmou na orientação impressa pelo saudoso apóstolo Dr. Bezerra de Menezes, a Federação não tem feito senão prosperar, até alcançar a estabilidade que vem desfrutando há alguns anos?"






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