Manuel Quintão
Reformador (FEB) Jan 1955
Em 16 de Dezembro próximo findo em sua residência à rua
Martins Lage, no Méier, desencarnou o nosso confrade Manuel Justiniano de
Freitas Quintão. Foi sócio da Federação durante 44 anos e ocupou lhe a
presidência em 1915, em 1918 e 1919 e em 1929. Publicou vários trabalhos entre
os quais “O Cristo de Deus".
Em 1939 escreveu a sua própria biografia e deixou-a em envelope
fechado a fim de que fosse publicada em "Reformador", quando da sua
desencarnação.
Ei-la, ortograficamente atualizada:
“Nasci
na Estação de Quirino, da E. F. União Valenciana, aos 28 de Maio de 1874. Foram
meus pais Antônio Gomes de Freitas Quintão (português) e Maria Amélia
Justiniano Quintão. Logo após meu nascimento, meu pai transferiu-se para a
Corte (Rio de Janeiro), onde, estabelecido no comércio de secos e molhados, em
grosso, veio a perder a maior parte dos seus haveres, o que o levou a regressar
ao interior da Província. Em Santa Isabel do Rio Preto, adquiriu o sítio de
lavoura denominado do “Sossego”, que lhe havia de ser, por confirmar a regra,
fonte perene de tribulações e fracassos, culminantes na abolição do regime
servil. Aí, nesse arraial primitivo, fiz os meus estudos primários na escola
pública, a única que conheci nesta vida de relação.
Meu
sonho dourado era a Marinha... O espadim de aspirante era-me uma preocupação obsidente.
Acompanhava nos jornais os exames da Escola Naval, sabia o nome dos seus alunos mais distintos e
devorava toda a literatura peculiar, que me caía nas mãos. Batalha do
Riachuelo, Passagem de Humaitá e feitos outros, da lamentável campanha do
Paraguai, tinha-os de memória e sobre eles discorria, com minuciosidade e
viveza, como se neles houvera tido parte. Aos 14 anos,
desatadas com o golpe da Abolição, as últimas amarras do meu sonho deNelson incipiente,
tive de optar pelo comércio, única porta que se me abria em penumbras. Meu pai, que no
comércio estreara aos nove anos e subira de menino de vassoura a guarda-livros
conceituado, punha no projeto o melhor da sua confiança e do seu empenho, tanto
que me consignou a um seu irmão, estabelecido em Belém do Pará, e cujo nome
ainda hoje (1939) lá se ostenta na “Chapelaria Quintão”. Minha saúde, agravada
pela nostalgia do lar, não se compadeceu com os rigores do clima amazônico.
Dentro de 6 meses já eu revia, enamorado, as plagas sempre risonhas da
Guanabara, e nelas refloriu o áureo sonho. Meu pai chegou a interessar-se por
uma possibilidade de matrícula na Escola Naval, mediante um curso prévio de admissão.
Estava escrito, porém, no livro grande dos Destinos, que os golpes políticos
haveriam de ser a barreira sempre insuperável das minhas áureas aspirações. A
queda do trono, subvertendo e revolvendo todos os valores político-sociais,
inutilizou-me as últimas esperanças de almirantado. A aurora do 15 de Novembro
de 89 foi o crepúsculo do meu ideal embrionário, e já em começos de 1890 estava
eu definitivamente “frigorificado” num escritório comercial. Os livros
comerciais nunca me foram amigos diletos e eu, ingrato e revel nos meus
entusiasmos de moço, sempre os preteri por outros, que, em me não
proporcionarem o pão do corpo, deleitavam-me o espírito curioso e ávido de
saber. Fui, assim de tropel, um autodidata, levado na flutuação
das correntes, ao sabor das circunstâncias, sem plano determinado. Mas lia
tudo, devorava tudo. O comércio, nesses tempos, era uma vilta para as classes
mais cultas. Nele predominava o
elemento estrangeiro, sobretudo o português, em sua quase totalidade ignorante e hostil
ao elemento nacional. Casas havia, que se ufanavam de nunca haver admitido
empregados brasileiros... E as que o faziam, por conveniências econômicas ou
familiares, era para - como se dizia - encher tempo e marcar passo. Qualquer
mostra de intelectualidade, qualquer prurido de autonomia mental, eram havidos
como estigma. A poesia, então, era sintoma de psicose e a música apanágio de
mandrice. Sabe Deus os desgostos que me deu uma velha flauta, que ainda hoje
conservo como recordação dos luares da minha adolescência. O que experimentei,
a dentro dessa muralha chinesa de competições econômicas e materialíssimas,
para abrir caminho e tomar pé na sociedade, daria um romance de largo fôlego e
profundos ensinamentos, que eu desejei mas não pude escrever. Em 1895, perdi meu
pai e, não obstante haver atingido o posto culminante da carreira - pois era
guarda-livros e chefe de escritório aos 20 anos - em tempo em que os cabelos
brancos ainda eram documento, tive de arcar com as maiores vicissitudes,
assumindo os encargos da família - único e melhor legado que recebi dele, além
do nome impoluto. Em matéria de religião, nada me sobrava do que escassamente
recebera no lar e na sacristia lá da aldeia.
Guardava,
sim, nos refolhos da alma os cânticos suaves do mês mariano, e a tonalidade
forte; das ladainhas do gordanchudo vigário Cabral.
Haeckel e Buchner, Voltaire e Renan,
Rousseau, Zola, Junqueiro, eram meus ídolos. Foi nessa altura que,
maltratado da sorte, envenenado de corpo e de alma, comecei a derramar na imprensa a vasa
de minhas ideias.
Artur Azevedo, nunca o esqueceria,
foi, sem o saber, o meu animador.
Mantendo
ele em “O Paiz” uma seção equivalente a esses “programas de calouros” que aí
vicejam na radiofonia atual, foi dele que me, vieram, lourejantes de alegria,
os primeiros estímulos cuidadosamente envolvidos no anonimato. Passei, depois,
a frequentar a Caixa de ”O Malho”, a “Revista da Semana” e, até o... "Rio Nu".
Nessa altura, gravemente enfermo e desenganado pela medicina oficial, depois de
esgotar todos os recursos e a pique de cair na indigência é que fui levado a
tentar a 'terapêutica' mediúnico-espiritista. Este episódio, contei-o na conferência
que, em 1921, pronunciei a propósito das Materializações assistidas pouco
antes, no Pará, publicada sob o título de “Fenômenos de Materialização”.
A
minha cura foi tão rápida quanto eficaz e maravilhosa, e o monista irredutível,
já candidatado ao suicídio,
tornou-se espiritista confesso e professo. Em Vassouras, aonde levara a família,
por imperativos econômicos e de saúde, foi que, ao alvorar do século XX,
comecei a assinar as minhas produções literárias. Ali casei-me, pobre e até
desempregado, com uma moça também pobre e digna, - Alzira Capute - hoje
companheira fiel e dedicada de 38 anos e mãe de 11 filhos, pois que foi isso,
precisamente, em 1901. Nessa época, colaborei efetivamente em ”O Município”,
órgão de grande projeção no cenáculo do jornalismo fluminense e tive encômios
de Quintino Bocaiuva e Nilo Peçanha, que poderiam facilitar-me o trânsito para
a burocracia administrativa. A política, porém, sempre me repugnou e uma das
coisas poucas de que me ufano é de nunca ter sido eleitor, nesta minha longa e
acidentada vida de relação. Transferindo-me novamente para o Rio, filiei-me
então à Federação Espírita Brasileira. Contudo, a idiossincrasia da política
não me esmorecia o gosto dos problemas sociais e muitos dos que hoje aí se
proclamam inadiáveis, quais o do artesanato, da policultura, da colonização, do
ruralismo, da viação, da marinha de guerra, podem ler-se, por mim versados em “O
Município”, antes que o fizera Alberto Torres. Não o digo senão para reiterar
que o fazia sem plano preconcebido e sem estudos especializados, mas de jacto e
por ser médium, já então, inconsciente. Nem a outra circunstância posso
atribuir a minha lavra literária, na Doutrina e fora dela. Também por isso,
imaginei muitos livros, sem jamais poder escrevê-los. Toda a minha obra
doutrinária, ou profana, é ocasional, intermitente, fragmentária, havendo mesmo
quem a tenha julgado, com justiça, incôngrua no estilo. Na Federação, onde
milito desde 1903, sem embargo do premente labor comercial, sempre mantive, com
integridade de consciência evangélica, o exercício da mediunidade curadora.
Combatendo;
em princípio, o personalismo humano e o partidarismo dissolvente no campo
doutrinário, não me pude forrar de grandes mágoas e maiores decepções. Não
sobrariam elas, contudo, para arrefecer-me o ânimo cristão, convicto de que aí,
na Casa de Ismael, em que pesem falhas humanas, está definitivamente traçado o
roteiro da Humanidade futura. Assim, aos 65 anos de minha idade, se amanhã
deixar a carcaça que já me vai pesando, deixo aos meus companheiros de ideal
estas notas de escantilhão, para que possam, jamais, atribuir-me merecimentos
que não tive, não tenho nem poderia reivindicar. O que me diz a consciência, é
que mais poderia ter feito e que no pouco que fiz, se algo fiz, cumpri apenas
estrito dever, tudo recebendo por misericórdia e de acréscimo.
Aliás, da minha passagem ao Além, nascido
na obscuridade e na obscuridade transitando, não desejo mais do que um eco
suficiente para atrair uma prece, um pensamento de paz, uma rajada de luz dos
meus irmãos que ficam.
Rio
de Janeiro, 16 de Maio de 1939.
Manuel Quintão
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