23 *
* *
Ha que assinalar, antes de tudo,
esta verdade: na estrutura imensa da criação universal nada existe inútil nem
supérfluo. A cada coisa está designado o seu lugar, a cada órgão a sua função e
a toda função a sua utilidade presidindo ao conjunto a mais perfeita e
irrepreensível harmonia. E se assim é no plano visível, ordena a lógica inferir
que o mesmo se dá no invisível.
Ora os espíritos, uma vez integrados
no meio espiritual que lhes é próprio, assim nas mais elevadas regiões como em
nossa mesma atmosfera, enquanto aí os retenha a sua inferioridade, não exercem
nenhuma das funções peculiares ao viver terrestre, entre as quais predominam as
que entendem com a conservação do indivíduo e a propagação da espécie, isto é,
as funções de nutrição e de reprodução. Para que serviriam, em tal caso, os órgãos
que lhes correspondem?
Mais ainda: para permutarem entre si
as ideias, não necessitam da linguagem articulada, tal pelo menos como a emitimos,
e se algumas vezes a empregam, dirigindo-se aos homens, (1) - e unicamente
nesse caso - o fazem, produzindo no éter vibrações mentais, de um dinamismo indubitavelmente
isocrono apropriado à correspondência
vibratória da audição humana (2). Entre si, porém, não precisam se entender
mais que pelo pensamento. Não nos afirmam além disso os próprios ensinos da
Revelação que os espíritos possuem um único sentido generalizado, de tal sorte
que todas as suas percepções e sensações se operam, por assim dizer - conforme
as expressões do Mestre - por todos os poros do seu organismo fluídico? Para que
conservariam então os órgãos localizados dos sentidos?
(1) Aludimos aos fenômenos acústicos
diretamente produzidos (vozes que se fazem ouvir) e não aos de mediunidade
falante, em que o médium é o transmissor do pensamento do espírito, pela
palavra articulada.
(2) Que haverá de inadmissível
nesse fato, quando vemos, por exemplo, no violino o atrito do arco sobre as
cordas imitar a voz humana, ou melhor ainda, quando vemos em dois instrumentos,
afinados no mesmo diapasão, o som ferido em um repercutir fielmente no outro?
A mesma observação pode fazer-se
relativamente aos membros de apreensão e de locomoção. Para transpor as distâncias
- se é licito assim nos exprimirmos, na ignorância em que estamos das condições
exatas do meio espiritual, em que a noção de espaço, tal como o concebemos,
desaparece, afetando dimensões que que nos são desconhecidas e permitindo,
porventura, que o ser se encontre simultaneamente em vários pontos, sem se
deslocar (3) - os espíritos não precisam de pernas. Servir-lhes-iam as mãos
para operar sobre a substância fluídica, que os envolve ao infinito, as
infinitas criações, que não podemos sequer imaginar, mas para modelar as quais
sabemos que basta ainda o pensamento, força modeladora de toda sorte de formas
e de imagens?
(3) Nem sequer parece necessário que o
espirito se encontre livre no espaço, para que essa noção consideravelmente se
modifique que ou mesmo cesse. Basta recordar o fenômeno de dupla vista de que fizermos
menção no capitulo II, fenômeno cujo mecanismo nos escapa inteiramente e no
qual a visão de sucessos longínquos se produz instantaneamente.
(1) e (2) Ver Allan Kardec, O LIVRO DOS MÉDIUNS, parte
2ª, c ap. IV nº 74, questionário de nº 1 a 25, particularmente nº 9 e 13.
Se assim é, pois. se na existência
livre do espaço não exercem os espíritos nenhuma das funções grosseiras da matéria,
se nem, quando entre nós se manifestam, utilizam órgãos e membros de que não
necessitam, para que os haveriam de perpétua e inutilmente conservar? A forma
humana, permanente e integral, não pode ser, portanto, a que reveste
indefinidamente o espirito.
Qual será então a sua forma? - Aqui
é que intervêm os lampejos de probabilidade a que aludimos, ministrando, pela
observação, alguns esclarecimentos sobre o caso.
Pois que, em nosso estado de encarnados
e em nosso grau atual de evolução, não podemos conceber o espírito em si mesmo,
como ser abstrato, sem limitação nem aparência, força é que, considerando-o
sempre associado à substância, pesquisemos que forma dessa natureza deve ele
peculiarmente revestir ou revestirá de fato, até pelo menos um certo limite na escala
evolutiva, acessível às nossas investigações.
A forma esférica? - Por maior
estranheza que à primeira vista possa causar esta pergunta, e sem nada
pretendermos afirmar de positivo, lembraremos que mais de um vidente, em
condições propícias, tem acusado a presença de um elevado ser- espiritual, sob
a aparência de uma estrela, ou de um globo luminoso (3), projetando raios em
sentido oblíquo. Temos por nossa parte, como um subsídio para o estudo dessa
atraentíssima questão, o testemunho de uma pessoa de nossa família, médium
vidente, sem nenhum prejuízo ou ideia preconcebida, nem sugestão de nossa
parte, e que, a propósito da desencarnação de um ser que nos era (e é)
sumamente caro, declarou, quando este agonizava, estar vendo ao alto do
aposento um como "foco elétrico " projetando um feixe de luz sobre o
rosto da agonizante.
(3) Não se devem confundir as aparições da
categoria a que aludimos, sob essa forma, com os fenômenos da mesma natureza e
semelhança, isto é, luminosos e esféricos observados em experiências com o
concurso de médiuns de efeitos físicos, como Eusápia Paladino e outros.
Quem sabe, entretanto, que grau
de afinidade ou analogia entre umas e outros haverá?
Esse testemunho coincide com os
outros a que nos referimos e de que temos conhecimento, obtidos em sessões de
experimentação, e tem para o corroborar, mas como uma variante, os que foram
recolhidos pelo coronel de Rochas, no curso de suas observações com sensitivos
magnéticos, os quais, a partir de certo grau de exteriorização (1), declaravam
ver flutuar, no espaço, em torno deles, "seres que apresentavam uma cabeça
com um corpo terminado em ponta, como uma vírgula."
(1) Vide cap. II, págs 20.
Será essa, com apêndice ou sem ele,
a forma geral que no espaço revestem os espíritos? Que variantes apresentará,
conforme o grau de evolução que vão eles alcançando? - Eis aí questões que a
prudência aconselha deixar ao futuro resolver, e que serão para nós de fato resolvidas,
à medida que nos formos libertando, não só da ilusão das formas, como desse ingênuo
preconceito que nos faz conceber como a mais perfeita e mais bela a forma humana,
para nos familiarizarmos com uma estética, por assim dizer, espiritualizada,
cujos prismas delicadíssimos não poderíamos agora apreciar e acaso nos
pareceriam detestáveis.
Tudo quanto podemos atualmente saber
a tal respeito, conciliando os raros subsídios de observação, a que aludimos com
os raciocínios que deixamos formulados, é que, se a forma humana persiste nos
espíritos, após a desencarnação, por um tempo mais ou menos longo, regulado pelo
seu apego à atmosfera terra á terra à vida que deixaram, e se, por outro lado,
os próprios espíritos elevados costumam entre nós se apresentar, para se
fazerem reconhecer, com aquela aparência, no que se refere ao busto pelo menos,
terminando o corpo em diáfanas roupagens flutuantes, uma evolução mais ou menos
lenta se há de necessariamente
operar naquela forma, esbatendo-a, transformando-a, numa palavra, adaptando-a às
condições específicas do meio em que é chamado normalmente o espírito a viver.
Que resulta desse fato? -
Evidentemente que no processo da encarnação do espírito, não é o perispírito, como
tem sido até agora admitido, que fornece o modelo fluídico, invisível, em que
se ajusta o organismo físico. E, pois que esse modelo, entrevisto embora apenas
como ideal, num intuitivo pressentimento da verdade, por um esclarecido cientista
como Claude Bernard, é indispensável para explicar, associado a uma ação diretora,
exclusivamente do domínio biológico e não da física nem da química, a formação
dos seres vivos, forçoso é que lhe pesquisemos outra origem.
Analisando, com efeito, em sua
INTRODUCTION À LA MÉDECINE, o processo evolutivo a que obedece a formação dos seres,
assim se exprimia o eminente fisiologista (1):
(1) Ver Gabriel Delanne, A EVOLUÇÃO ANÍMICA,
págs. 25 e 26.
"Quando se considera a evolução
completa de um ser vivo, claramente se vê que a sua existência é o resultado de
uma lei organogênica, que preexiste numa ideia preconcebida e que se transmite,
por tradição orgânica, de um a outro ser. Poder-se-ia achar no estudo
experimenta! dos fenômenos de histogenia e de organização a justificação das
palavras de Goethe, que compara a natureza a um grande artista. É que, com efeito,
a natureza e o artista procedem do mesmo modo na manifestação da ideia criadora
da sua obra.
"Vemos na evolução do embrião aparecer
um simples esboço do ser, antes de toda organização. Os contornos do corpo e
dos órgãos são a principio simplesmente determinados, começando pelos aprestos
orgânicos provisórios, que servirão de aparelhos funcionais temporários do
feto. Nenhum tecido é então distinto. Toda a massa não está ainda constituída
senão por células plasmáticas e embrionárias. Mas nessa tela vital está traçado o desenho ideal de um organismo,
ainda invisível para nós, que designa em cada parte e a cada elemento seu lugar,
sua estrutura e suas propriedades.
"Alí, onde devem estar os
vasos sanguíneos, os nervos, os músculos, os ossos, etc., as células embrionárias
se transformam em glóbulos de sangue, em tecidos arteriais, venosos, musculares,
nervosos e ósseos."
E mais adiante acrescenta ele:
"O que é essencialmente do domínio vida
e que não pertence nem à química, nem à física,
nem a qualquer outra coisa, é a ideia
diretriz que dessa ação vital. Em todo gérmen vivo existe uma ideia diretriz
que se desenvolve e se manifesta pela organização. Durante toda a existência o ser fica sob a
influencia dessa mesma força vital criadora, e a morte chega, quando ela se não
pode mais realizar."
Pois bem, o que nesta rápida síntese
um pressentimento intuitivo da verdade, como o qualificamos. indica vagamente,
sob a invocação de uma lei organogênica, preexistente numa ideia preconcebida
que se transmite, por tradição orgânica, de um a outro ser, o Espiritismo,
tanto quanto à luz dos seus ensinamentos nos é dado penetrar nesses misteriosos
arcanos da vida e da gênese dos seres, permitirá claramente apreender, sobretudo
se, para determinar com precisão cada um dos fatores que intervêm naquele processo
de organização vital, admitirmos como elemento distinto do períspirito, com o
qual tem sido confundido, o corpo etéreo ou duplo
astral em que, a nosso ver, reside
aquele desenho ideal sobre que é calcado o organismo físico.
Esta ideia se nos afigura tanto mais
plausível quanto sabemos que todos os seres como todas as coisas existentes em
nosso plano material não são mais que a reprodução concreta e objetiva de um modelo
fluídico invisível, oriundo do plano astral que o interpenetra, o que parece tornar,
sem nenhuma repugnância, admissível que a própria célula germinal contenha em
si, com todos os caracteres microscópicos da sua estrutura, aquele desenho fluídico,
ideal, do ser humano em gestação.
Em apoio dessa possibilidade - por
mais dificilmente compreensível que pareça - de uma célula microscópica encerrar
o modelo invisível de um organismo complexo como o nosso - fenômeno ao demais
idêntico para todos os seres, em todas as ordens da natureza - recordaremos o que
se dá no fenômeno da clarividência psicométrica (1), em que um simples, minúsculo
fragmento de objeto parece haver fotografado no seu aura as mais variadas e, às
vezes, gigantescas cenas desenroladas através dos tempos no local de que fora
retirado, o que permite ao sensitivo a sua lucida visão.
Que sabemos, de resto, acerca dos
recônditos mecanismos da natureza, no que se refere sobretudo às coisas invisíveis,
para lhes estabelecer limites às modalidades, que, todavia , a razão e a experiência
associadas no-lo afirmam, podem variar ao infinito?
Admitamos, pois, a coexistência do modelo
ou duplo etéreo do corpo humano em a célula germinal que lhe dá origem e,
ponderando um novo fator de que é tempo agora de nos ocuparmos - o principio
vital – recapitulemos o processo da encarnação, para em seguida reatarmos o fio
da exposição traçada ao começar este capítulo.
O fenômeno, por seu valor e consequências,
merece bem que o apreciemos desde a fase inicial.
Nenhum comentário:
Postar um comentário