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Dessas noções, expostas com uma
simplicidade e clareza que as tornam accessíveis às inteligências menos cultas
- e é este sempre o cunho dos ensinamentos formulados por Allan Kardec - parece
resultar que um duplo processo, de absorção de um lado e de adaptação do outro,
se efetua, isto é: à medida que se desenvolve, segundo um tipo que lhe é
peculiar, o gérmen humano vai como absorvendo, molécula por molécula, o perispírito,
ao mesmo tempo que, por intermédio deste, o espírito se vai adaptando à nova
forma em que terá de surgir para a vida neste mundo.
Assim não parece, contudo, ter sido
rigorosamente compreendido pelos espíritas, sobretudo pelos expositores da
doutrina mais em evidencia, entre os quais é corrente, e como tal se tornou um
principio geralmente admitido, que o perispírito, longe de se adaptar às linhas
do corpo em gestação, é que lhe imprime a forma que este vem definitivamente a
adquirir, permanecendo durante toda a vida
como o seu inalterável e fiel mantenedor.
Sobre esta última parte nenhuma
objecção - acreditamos - poderá ser razoavelmente articulada. Que o perispírito,
instrumento do espírito em seu poder de organização sobre a matéria, conserve
em suas linhas estruturais e em sua hierarquia de órgãos e harmonia de funções
o corpo físico, defendendo a integridade da forma contra a perpétua
instabilidade dos tecidos, a que já noutro lugar nos referimos, facilmente se
concebe e chega a se nos afigurar mesmo indubitável. Mas que essa forma resida
peculiarmente no perispírito é o que não se nos afigura suficientemente
demonstrado, susceptível que é de impugnação, a nosso ver, fundamentada.
É verdade que, entre os
ensinamentos da doutrina figura o de que, na erraticidade, os espíritos
conservam geralmente a forma humana, sob a qual, com efeito, costumam se
apresentar em nosso meio físico, fazendo-se reconhecer pelos videntes.
Mas essa forma permanecerá
indefinidamente a mesma, assim na aparência como em todas as minúcias do que se
poderia considerar a sua estrutura interna ou anatômica?
Na ausência de ensinos positivos, da
parte das Inteligências reveladoras do invisível, a respeito, as quais apenas
indicaram vagamente a generalidade daquela forma, fica inteiramente livre o
campo às indagações dos estudiosos, o que importa dizer que é uma questão
aberta, em que à pesquisa analítica, na ausência, por enquanto, de uma
faculdade direta mais segura, caberá pronunciar-se.
Por nossa parte, fundado em razões
que reputamos excelentes, optamos pela negativa à interrogação acima.
É certo que os fenômenos de
materialização, observados por investigadores conscienciosos como Wiliam Crookes,
Charles Richet, Aksakof, etc., parece atestarem que os espíritos que os
produziram possuíam um organismo fluídico que, tornado objetivo por aquele
modo, era a reprodução integral não só da aparência como da constituição
anatomo-fisiológica do corpo humano.
É assim, por exemplo, que em suas
experiências, efetuadas durante mais de três anos em sua própria casa e em seu
gabinete de trabalho com a médium Florence Cook, a que no final do capítulo
anterior nos referimos, William Crookes teve ocasião de verificar que Katie
King, o espírito que repetidas vezes, durante aquele tempo, se materializou,
apresentava todos os caracteres de uma pessoa viva, andando, conversando,
deixando-se examinar e - o que é mais significativo - diferente do médium em
muitas particularidades, tais como a estrutura, as proporções corpóreas, etc.,
sendo Katie mais alta e mais gorda que Florence Cook. Não é tudo.
"Uma noite - refere William
Crookes (1) - contei as pulsações de Katie; o pulso batia regularmente 75, enquanto
o da Srta. Cook, poucos instantes depois, atingia a 90, seu número habitual.
Auscultando o peito de Katie, eu ouvia um coração bater no interior, e as suas
pulsações eram ainda mais regulares que as do coração da Srta. Cook, quando
depois da sessão ela me permitiu igual verificação.
(1) Ver O. d’Argonnel, FATOS ESPÍRITAS,
págs. 73 in fine e 74.
"Examinados elo mesmo modo, os
pulmões de Katie se mostraram mais sadios que os do médium, pois no momento em
que fiz a experiência a Srta. Cook seguia um tratamento médico reclamado por uma
forte bronquite."
Por essas e outras diferenças é que
William Crookes foi induzido a afirmar:
"Tenho a mais absoluta certeza de que a Srta. Cook e Katie são duas
individualidades distintas, pelo menos, no que diz respeito aos seus corpos, Vários
pequenos sinais que se acham no rosto da Srta. Cook não existem no de Katie. A
cabeleira da Srta. Cook é de um castanho tão pronunciado que parece quase
preta; um cacho da cabeleira de Katie, que tenho à vista e que ela me permitira
cortar de suas tranças luxuriantes, depois de o ter seguido com os meus próprios
dedos até ao alto de sua cabeça e de me haver convencido de que ali nascera, é
de um rico castanho dourado (1)."
(1) Obra citada, mesma pág. 73.
Por
seu lado o professor Charles Richet, observando em Villa Carmen, Argélia, as materializações
do espírito Bien Boa, obtidas na residência do general Noel e que foram
relatadas na edição de novembro 1905 da ANNALES DES SCIENCES PSYCHIQUES, de que
ocupam 23 páginas, pode verificar que aquela entidade materializada, soprando,
a seu convite, num balão de vidro contendo uma solução de barita, produziu imediatamente
um precipitado de carbonato de barita, "o que prova - comentou o Sr. Gabriel
Delanne em sua revista - que o espírito materializado possui pulmões que
fabricam perfeitamente o ácido carbônico.”
Pois bem, por mais perturbadoras e inexplicáveis
que pareçam tais verificações, elas constituem apenas um capítulo do que poderíamos
denominar a biologia transcendente, ou extraterrestre, demonstrando, ou - o que
à primeira vista ocorre - que os seres desse plano possuem um organismo etéreo
completo, idêntico ao organismo humano, ou - o que parece mais provável - que
são capazes de o constituir peça por peça, em determinadas condições, num e noutro
caso utilizando, para o tornar visível e tangível, os fluidos hauridos no médium
e, porventura, no ambiente do círculo em que operam e pondo em atividade forças
que lhes são familiares, mas que a ciência humana atualmente nem sequer
suspeita.
Esse processo de assimilação fluídica
tem, para o corroborar, as experiências realizadas por Alexander Aksakof com o
notável médium Sra. d'Esperance, particularmente as que fizeram objeto da
interessantíssima brochura UM CASO DE DESMATERIALIZAÇÃO PARCIAL DO CORPO DE UM
MÉDIUM, durante as quais a própria Sra. d'Esperance, que, ao contrario dos médiuns
do mesmo gênero, que ficam em sono magnético (trance) durante o fenômeno, goza do singular privilégio de permanecer
desperta e perfeitamente consciente, pode verificar que as extremidades
inferiores de suas pernas haviam desaparecido. Esse facto foi comprovado por
Aksakof e outros circunstantes que, apalpando o lugar em que deviam estar aqueles
membros, só encontraram a parte correspondente do vestido e, por dentro, o vácuo.
Isso prova que a materialização do
espirito se opera a expensas da economia vital do médium, quer se trate de uma
absorção de fluidos dessa natureza (que naturalmente lhe serão restituídos ao
cessar o fenômeno, mas com alguma perda, que explica o cansaço, o abatimento que
em geral acusam os médiuns depois de tais experiências, quer de uma paralela
desmaterialização parcial de sua substância corpórea, como no caso mencionado, único
- digamos de passagem - registrado, ao que sabemos, nos anais da experimentação
espirita.
De todo modo, o que parece evidente
é que, utilizando-se daqueles elementos para se materializarem, os espíritos
produzem, como o dizemos, uma destas operações: ou constituem peça por peça o
organismo efêmero com que se apresentam, impregnado da substância do médium, com
todas as suas propriedades físico químicas, e cujo modelo invisível acham a sua
disposição (se o não fabricam, pondo em jogo as forças, porventura mentais, a
que aludimos, mas que inda são desconhecidas): ou condensam com aqueles materiais,
absorvendo-os, por um processo semelhante ao da encarnação, o corpo astral que
ainda conservam e cuja forma concreta se torna então visível, com todas as possibilidades
de um organismo humano.
E aqui dizemos "corpo
astral" - e não "perispírito", para estabelecer intencionalmente
uma distinção, que chegou o momento de fazer e que mais adiante será compreendida.
Que esse corpo astral, duplo
completo do organismo físico, subsista por um prazo mais ou menos longo após a
desencarnação, segundo o grau coesivo de sua materialidade, não temos dificuldade
em o compreender e admitir; mas - e aqui retomamos o fio de nossa argumentação
anterior - que essa forma, intrínseca e extrínseca, permaneça definitiva e perpetuamente
associada ao espírito, é o que nos não parece admissível, nem à luz da razão, intuitiva
sobretudo, nem da experiência, em cujo domínio, neste crepúsculo matinal dos
nossos conhecimentos a cerca do invisível, tão povoado ainda de obscuridades e
mistérios, alguns lampejos de probabilidade pelo menos, começam a fulgurar, esclarecendo
este e outros assuntos semelhantes.
Demonstraremos.
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