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segunda-feira, 19 de março de 2012

O Dia do Gafanhoto



“O Dia do Gafanhoto”


            Em certas épocas parece que acontece uma espécie de obumbração envolvendo a nossa seara. Gafanhotos, talvez, que vêm chegando famintos de tudo e sem quererem saber de nada: ameaçam a sementeira e eclipsam os céus, impedindo a passagem da luz dos muitos sóis que formam a coorte dos Espíritos Superiores. Então começam a espocar crises, gente aparece em público comprometendo a Doutrina, desentendimentos se registam e, o que é pior que tudo, lançam por aí umas ideias esquisitóides, esdrúxulas, contrárias aos mais comezinhos princípios da Terceira Revelação. São novidades bisonhas que denotam, às vezes, a preocupação dos que nada fazem de quererem fazer qualquer coisa, antes que os que fazem realmente algo possam terminar de fazer tudo, não deixando nada para os que atrapalham. Lembro-me, por exemplo, dum cartãozinho que no ano passado me mostraram com o retrato de certo médium: Tinha lacinho, letra dourada, tudo que nem um santinho, para ser adorado e idolatrado pelos “Fiéis” espíritas... É claro que o médium homenageado - conheço-o muito bem - jamais pediria aquilo, jamais concordaria com aquilo, se consultado fosse. Geralmente inventam essas coisas sem ouvir o homenageado. E não tardaria a aparecer um outro ainda mais empolgado com a ideia, pretendendo logo aprimorá-Ia: cunhar medalhinhas com a efígie do médium a fim de ficar perpetuada a gratidão da família espírita pelo muito que através dele temos recebido do Além. Logo pensei com meus pobres botões: daqui a pouco mais, vão sugerir um cordãozinho para enfiar a medalhinha e - não duvido! - aparecerão espíritas prontos a pendurá-lo ao pescoço. Só faltaria mandar benzer, antes, numa sessão qualquer... Esquecem-se de que o médium não deve ser incensado, não deve ser endeusado de nenhum modo. Essas coisas mais não são senão sutis perigos que põem em risco a missão do mais seguro medianeiro da Espiritualidade. Os médiuns verdadeiramente evangelizados são os primeiros a repelir esses envolvimentos contrários à própria Doutrina Espírita, os quais ressumam a velho ranço de vícios pretéritos, quando ainda vivíamos sob o jugo da Igreja medieval.

            Outra mania que não perdem é a de quererem criar universidades, faculdades, academias, etc., de Espiritismo. De época em época surge o desarranjo. O Alto naturalmente não empresta cobertura a esses voos, que têm mais de vaidade e esnobismo que de trabalho e edificação, e os modernos Ícaros lá vêm penedo abaixo, asas derretidas e penas ao léu ...

            Recentemente me trouxeram uma mensagem do Além  ditada por Carlos Imbassahy e endossada por Ismael, mandando todos apoiarem iniciativa desse tipo, que objetiva a criação duma universidade de cultura espírita! O Imbassahy, a quem conheci muito bem, deve ter largado, do lado de lá, uma daquelas suas costumeiras piadas. Sim, porque dele a mensagem não tinha nada, absolutamente nada. Meu modesto curso de Estilística foi bastante para convencer-me de que não eram do autor de “À Margem do Espiritismo” aquelas palavras. Imbassahy jamais escreveria daquele jeito. Principalmente porque... Imbassahy sabia escrever muito bem, era notável estilista. Além disso, lá vinha no meio da mensagem a referência a Ismael que, acentuava, não deixaria também de apoiar a sensacional ideia. Estranho... muito estranho que Ismael, que até aqui em assuntos que tais só se tem manifestado na Federação Espírita Brasileira, nada nos tivesse dito dessa vez ...

            No fundo, o que conseguem é deixar mal companheiros como Imbassahy, porque a verdade é que sempre esses projetos mirabolantes fracassam, como aconteceu mais esta vez.

            Não sei se já repararam - não por nós, criaturas encarnadas que estamos aqui eventualmente, de passagem, mas por ser a Casa de Ismael - não sei se já repararam que a Federação Espírita Brasileira nunca abona essas ideias um tanto fantásticas, às vezes faraônicas, não raro personalistas. Reclamam da FEB. Até xingam. Ela porém não se altera. O epílogo é sempre o mesmo: o sonho se esfuma, muita vez no ridículo; a FEB fica, intocável e imortal. E com ela - deixem-me confessar - um trabalhão danado, porque os Espíritos umbráticos que geralmente estão alimentando essas megalomanias vão depois bater às portas lá do Grupo Ismael para reclamar, brigar, ameaçar, etc.

            Lembro-me dum companheiro que, há cerca de 10 anos, projetara com o “apoio” do Alto (e Ismael, coitado, como sempre, também estava nessa) uma Universidade piramidal, coisa assim inimaginável em termo de altura e extensão. Era um confrade abastado e, diga-se, honesto, sincero, bem intencionado. Andava era mal acompanhado. Um dia íamos pela rua Evaristo da Veiga, que passo a descrever para o leitor que desconhece o Rio: ela vai do Teatro Municipal, na Cinelândia, até os Arcos, na Lapa, estendendo-se talvez por uns 500 metros. Um dos lados é tomado inteiramente pelo Quartel General da Polícia Militar do Estado da Guanabara. É um prédio de 3 ou 4 pavimentos, tendo ao centro um pátio enorme, muito amplo. Pois bem; nosso confrade, passando pelo Quartel, ao meu lado, parou defronte, encompridou pelo quarteirão seu olhar cheio de otimismo e me disse com a maior sinceridade desse mundo:

            - Aqui é que devo levantar a Universidade Espírita. O Governo localizaria a Polícia lá no subúrbio e nos entregaria o quarteirão. Os Espíritos já me disseram que tudo vai sair bem.

            E pedia a minha colaboração junto ao Governo, na qualidade de Jornalista, para conseguir seu desiderato. Hoje, já desencarnado, meu bom e ingênuo amigo com certeza se integrou no grupo de lidadores que nos ajudam aqui em baixo, mas também deve ter caído em si e compreendido porque, com habilidade, procurei naquela ocasião colocar algumas reservas ao seu sonho...

            Contudo, mais perigoso do que as invenções dessa natureza são o que elas podem sugerir paralelamente. Depois das universidades, das academias, etc., surgirão os Mestres, os diplomas, os reitores, os anéis de grau, as bênçãos desses anéis, as solenidades de formatura, as festas comemorativas, o baile, e não me surpreenderei se... mandarem rezar a missa dos formandos em Espiritismo. Por outro lado, na organicidade da parte cultural, teríamos também ressuscitada a nefasta Escolástica, com todos os seus vícios e um adendo ainda mais pernicioso: o patrocínio dos Espíritos de “luz”.

            Não se confunda nada disso com o aprendizado informal da Doutrina Espírita, nos lares ou nos centros, que é um imperativo da própria Doutrina Espírita. Nem se misture meus reparos à conveniência - certa e proveitosa - de se multiplicarem as chamadas escolinhas de Evangelho para as crianças (a própria FEB mantém uma), bem como a divulgação de métodos didáticos para orientadores de mocidades, métodos esses que cada instituição escolherá segundo a sua vontade.

            Mas, voltemos às novidades. Ando ultimamente muito apreensivo porque me disseram que vão propor a criação do Dia de André Luiz ( ? !) . Não me assustarei se a ideia evolver e a proposição for transformada em Dia de Santo André Luiz. Do jeito em que as coisas vão, tudo é possível. Depois mandam modelar uma imagem de Santo André Luiz e acabarão patrocinando uma quermesse para construção da Igreja de Santo André Luiz. Com a caixinha de esmolas ao lado, e tudo o mais ...

            Ah, meu Deus, será que é tão difícil assim passar uma vista já não digo nas cinco, mas pelo menos na principal obra de Kardee, “O Livro dos Espíritos”? A Federação Espírita Brasileira faz um sacrifício inaudito para editá-Ia a preço mínimo, a fim de que todos os espíritas possam lê Ia, e ainda há quem não o tenha feito? Afinal, são apenas 1.018 perguntas ...

            Por seu turno, André Luiz, coitado, deve ficar num constrangimento muito grande ... Hino, ele já o tinha e agora vai ganhar um Dia. Ele que chegou ao lado de lá e teve a maior surpresa do mundo (digo: do outro mundo) ao perceber a total inversão dos valores morais, a ponto de ser chamado de suicida, quando não havia dado nenhum tiro na cabeça. Ele que ficou um tempo enorme de quarentena até poder ser aceito no trabalho de propagação da Doutrina. Ele, coitado, deve estar apreensivíssimo, a orar pelos seus devotos, que não tardarão a fazer do “Nosso Lar” um missal para ser recitado nos domingos, ao dobre dos sinos que então já terão sido instalados no campanário dos centros espíritas.

            E, aproveitando o entusiasmo de alguns de meus confrades, eu sugiro daqui a criação também do Dia do Gafanhoto. Cada um com a sua ideia. É possível que outro lance a campanha para o Dia do Orador Espírita. Outro idealize o Dia do Doutrinador. Mais outro quererá o Dia do Presidente do Centro. Ainda outro mais lutará pelo Dia dos Desencarnados, em substituição ao de Finados. Poderíamos ter também o Dia do Obsidiado. Eu, cá por mim, lanço a ideia do Dia do Gafanhoto. Afinal, tenho as minhas razões. O gafanhoto é um ortóptero que, no fundo, merece as nossas homenagens materiais, pois, se ele não atacasse a seara, não saberíamos tão bem valorizar os benefícios da colheita quando ela é protegida e preservada. Se a nuvem deles não obstaculizasse a luz que vem do alto, não saberíamos medir o mal que a treva tem. Ora, quem tiver ideia melhor que se apresente. E é só ter cuidado para não acabar homenageado no Dia do Gafanhoto ...


por    Luciano dos Anjos

Reformador (FEB) Julho 1970



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