por Cimba Reformador (FEB) 16 Março 1924
Já se lhe vinha aproximando o termo de penosa existência. E ele via, com satisfação, aparecer o crepúsculo de uma vida de enfermidade, de pobreza, de dores físicas e morais.
Seria o termo de sua lacrimosa peregrinação
pela Terra, por onde ele passara com um corpo doente e fraco, constantemente
acossado pelas inclemências da natura pela ingratidão dos homens.
Amara muito e sofrera muito !..
Tivera uma companheira, que era toda a felicidade de sua vida e ela o traíra.
Tivera um amigo em quem depositava toda a confiança e esse fora o desencaminhador
de seu lar.
Dentro em pouco ficara só. Sentia o
deserto dentro de sua casa vazia e do seu coração enlutado.
E assim foram avançando os anos, sem
que a morte o viesse arrancar da sua solidão, da sua tristeza, do seu opróbrio,
de suas enfermidades.
- Porque, Senhor- apostrofava ele - porque
a mim me deste esta existência de doenças, de dores e de vergonha, enquanto
outros vivem na opulência, na grandeza e na felicidade?
Porque, Senhor, vivo eu triste e só,
enquanto outros passam a vida em tumultuosa companhia?
Porque sou obrigado a carregar este
corpo alquebrado, enfermo e feio?
Nunca fiz o mal, tinha o coração
repleto de afetos e ternuras e fui vilmente, indignamente, enganado por aqueles
a quem mais amei?
Que justiça é essa, Senhor?
E uma voz, saída não sabia ele de
onde, respondeu-lhe:
- Deus é justo. Sofres porque o
mereces.
Queres saber a causa das tuas dores?
Olha !..
E o velho, espantado, reclinou a
fronte.
Dir-se-ia depois que sonhava !..
O Justino era uma dessas criaturas para quem fora pródiga a natureza: inteligente, forte e bonito. Um rapagão! - como se dizia.
Por
maior ventura, nascera de paparicos e que concentravam nele todas as afeições
que poderiam repartir por outros filhos, porque ele era o único do casal.
O menino cresceu cheio de grandes
desvelos e de grandes vontades.
Afortunados, os seus progenitores podiam
satisfazer-lhe os desejos, por mais absurdos que fossem.
Deram-lhe bons mestres e bons livros.
Procuraram fazer dele um sábio, mas descuraram de fazer dele um homem!
Habituado a ver satisfeitos todos os
seus caprichos, rodeado de pessoas humildes e submissas às suas ordens, porque
eram infelizes necessitados, o Justino foi ficando voluntarioso, orgulhoso e mau.
Já rapaz, sem saber o que era obediência,
nem respeito, nem ordem, nem moral, entregou-se aos vícios de todas as espécies.
Era uma lástima a maneira por que
prodigalizava os bens que herdara do pai e da natureza.
A fortuna deixava-a todas as noites
nas mesas de jogo; os dotes físicos ía os malbaratando nas noites perdidas, nas
libações prolongadas, nos lugares mal afamados.
Simpático, instruído, loquaz, insinuava-se nos lares, cativava a simpatia dos de casa, para levar-lhes a infelicidade e a desonra.
*
Mas a infelicidade os estava a
espreitar e os espreitava pelos olhos do Justino, que descobrira a formosura da
dona da casa, numa das vezes que ela assomara, despretenciosamente à janela.
E, lá ia ele às tardes apertar o
cerco, dominador acostumado à vitória, convencido dos seus predicados, seguro
do seu triunfo.
E se travou de relações com o bom e
honesto cavalheiro que era o venturoso dono da casa. E penetrou os umbrais
daquela morada, onde sempre vivera honesta e feliz uma família, trazendo ele
nos lábios o sorriso mendaz (falso)
do amigo e nos dentes o veneno (ameaçador)
minacíssimo da serpente.
Com suas maneiras de salão, seus hábitos
de homem gigante, suas conversas de rapaz instruído, sua plástica física, seu
desembaraço, sua jovialidade, para logo conquistou todas as simpatias.
E como havia conquistado as simpatias
do marido também conquistou as da consorte.
O dono da casa cumulou-o de gentilezas.
Abriu-lhe completamente as portas do lar; convidou-o para compadre; era ele o
seu verdadeiro amigo, o seu íntimo amigo...
O Justino entrava ali a qualquer
hora, porque viam nele um homem de bem.
Mas, em pouco, tudo mudou naquele
remansoso tugúrio (casebre)!
Um amigo do Justino aconselhou-o a
que fosse procurar aventuras em outro lugar. Deixasse estar quieto quem vivia
sossegado.
Não lhe faltavam a ele, moço e rico,
onde só divertir, sem prejuízo de ninguém.
E o Justino, dando de ombros,
respondia:
- Ora, é o que se leva deste mundo!
- Sim, é o que se leva - retrucava o
outro - mas triste daquele que leva tal bagagem!
- A única bagagem que nós levamos - revidava
o Justino - é o corpo para a sepultura, quando ele já não presta para nada. E
Idiota seria eu se não aproveitasse a saúde, a juventude e a riqueza, em gozar,
em gozar o mais que puder, em gozar desmedidamente, valendo-me de todos os
tolos e de todas as tolas, que vou encontrando e que são em grande
quantidade.
O amigo insistia sobre as responsabilidades
do homem, sobre a vida futura, sobre as penas que nos esperam... sobre a infalível
justiça de Deus!
E o Justino, numa casquinada (gargalhada):
-
A coisa única imortal que existe é a ingenuidade das criaturas como tu.
Na casa, outrora feliz, parecia reinar um ambiente de dores e remorsos.
Finava-se lentamente a dona da casa.
Nunca mais sorrira, nunca mais a
viram como dantes, sem preocupações, nem tristezas, percorrer as aleias do
jardim, em busca das flores com que se adornava garridamente (exuberante) para receber o marido.
Nunca mais a viram cantar a meia
voz, dulcissimamente, quando embalava os filhos. A antiga alegria havia
desaparecido. Desaparecera, na companheira daquele lar, com a alegria, o
apetite e o sono.
Os médicos confessavam-se incapazes
de debelar o mal.
E, certa manhã, a pobre doente
acordou sobressaltada, ajoelhou-se aos pés do marido, beijou-os, suplicou-lhe
perdão em lágrimas, sem que ele pudesse compreender o sentido daquelas palavras,
caiu para trás, numa convulsão, e morreu.
E o Justino?
O Justino já havia abandonado a
amizade e o amigo aos primeiros sintomas da enfermidade da mulher.
Na hora da dor não o encontraram.
Ele não estava ali para justificar o prolóquio: - amicus certus in re incerta cernitur. (O amigo certo se manifesta na ocasião incerta).
E depois... e depois toca a esperdiçar (= desperdiçar) a vida e a fortuna.
Encheu os pais de desgostos e os pais
tarde compreenderam que deixaram de dar ao filho o principal, o mais importante
de todos os ensinamentos - os ensinamentos da Moral.
Neste planeta das coisas finitas, em
que tudo passa, em que tudo acaba, em breve o dinheiro e a saúde do Justino se esgotaram.
Morreram-lhe os pais, afastaram-se
os amigos, fugiu-lhe a mocidade, desbotaram-se lhe as cores e a ancianidade (velhice) prematura desenhou-se lhe na fronte
abatida.
A
debilidade física se vieram juntar os horrores da miséria.
O janota de há alguns anos envergou
as roupagens do mendigo.
Então, começaram a toma-lo visões
desesperadoras !..
Depois, levaram-no para um hospital.
Foi impressionante a sua agonia.
Cobria os olhos com o lençol e pedia que lhe afastassem de perto aquelas figuras
que o vinham condenar.
Suas feições descompostas
apresentavam aspecto amedrontador.
- Sai! Sai! - dizia em gritos... E
com as mãos como que procurava afugentar os fantasmas que o perseguiam.
Afinal, arquejante, caía de joelhos
a implorar perdão. E assim, apavorado sempre por espectros invisíveis, a clamar
misericórdia, arrancando os cabelos, em choros sufocantes, se foi minando,
consumindo, até que expirou...
Como se respondessem à pergunta que
ele fizera em solilóquio, disseram lhe:
- É a tua! Foi a tua vida passada.
É a histeria da tua última existência,
Desbarataste o teu vigor, vieste
fraco.
Traíste, foste traído.
No espaço continuaste a suplicar o
perdão, com que fechaste os lábios e os olhos.
Deus, bondoso, te perdoou... E tu
voltaste de novo ao teatro de tuas iniquidades para resgatar as faltas cometidas.
- E quem és tu?
- Um amigo que te falava sempre na
imortalidade e na justiça de Deus!
- E agora?
- Agora agradece ao Criador!
Era a luz de uma nova aurora. Era o
clarão da liberdade!
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