Carta de Roustaing a Allan Kardec
Reformador (FEB) Maio 1953
Os princípios nela superiormente expressos, por partirem
de um homem da sua posição, hão de fazer refletir, talvez, a muita gente que se
presume privilegiada do bom senso e vai, por isso, colocando todos os adeptos
do Espiritismo no rol dos imbecis.
Palavras profundas, verdadeiramente divinas, que nos
mostram a senda mais segura e racional e que nos conduzem à fé segundo a máxima
de São Paulo, que o Espiritismo completa e realiza.
Hoje, venho dizer-vos que Deus me premiou por haver
acreditado sem ver, uma vez que posteriormente vi, e ainda bem que vi em
condições proveitosas, pois a parte experimental veio, se assim me posso
exprimir, animar a fé que a parte doutrinária havia propiciado, fortalecendo-a,
vivificando-a.
Depois de haver estudado e compreendido, eu conhecia o
mundo invisível tal como o estudante que conhecesse Paris pelo respectivo mapa;
ao passo que hoje, pela experiência, pelo trabalho e aturada observação, conheço
esse mundo tal como o forasteiro que percorresse a grande capital, o que não
vale dizer que lhe penetrasse todos os recantos.
Todavia, desde princípios de Abril, graças às relações do
excelente Sr. M. Sabo e sua família - gente patriarcal e toda ela composta de
bons e veros espíritas, pude trabalhar e trabalhei, ora com eles, ora em minha
casa, concorrendo a esses trabalhos outros adeptos convictos da verdade espírita,
posto que nem todos ainda efetiva e praticamente espíritas.
O Sr. Sabo vos enviou o relatório de nossos trabalhos obtidos
a título de ensinamento, quer por evocações, quer por manifestações espontâneas
dos Espíritos superiores.
E creia que
sentimos tanto de alegria e de surpresa quanto de acanhamento e humildade, ao
receber ensinamentos tão preciosos e sublinhados de Espíritos assim elevados,
que nos visitaram ou enviaram mensageiros para falarem em seu nome.
Ah! Quão feliz me considero em não pertencer, pelo culto
material, a esta Terra que, agora o sei, não constitui para o homem mais que um
lugar de exílio, propiciatório ele expiações e provas!
Feliz, sim, por conhecer e haver compreendido a reencarnação
em toda a sua latitude e consequências, como realidade e não como simples alegoria!
A reencarnação, sublime e equitativa fórmula da Justiça
Divina, tal como ainda ontem a definia meu Guia, tão bela, tão consoladora pela
possibilidade de fazermos amanhã o que não pudemos fazer ontem, e que impele a
criatura a caminhar para o seu Criador; - essa lei equitativa e justa na frase
de José de Maistre, em comunicação
que nos deu e vos transmitimos, é ainda, conforme a palavra divina do Cristo, -
o caminho longo e difícil de percorrer para chegar às moradas divinas.
Agora é que eu compreendo as palavras do Cristo a
Nicodemos: "pois quê! Sois doutores
da lei e ignorais estas coisas...”
Hoje que Deus me
permitiu compreender integralmente toda a verdade da lei evangélica, a mim
mesmo eu pergunto como a ignorância dos homens, doutores da lei, pode resistir
nesse ponto à clareza dos textos e produzir destarte o erro e a mentira, que
geraram e entretiveram o materialismo, a incredulidade, o fanatismo ou a covardia.
Pergunto como essa ignorância, como esse erro puderam
produzir-se, quando o Cristo tivera cuidado de proclamar a necessidade de
reencarnar, dizendo: - importa-vos nascer
de novo e, daí, a reencarnação como único meio de ver o reino de Deus, o
que aliás já era conhecido e ensinado na Terra, tanto que Nicodemos deveria
sabê-lo.
“Sois doutores da
lei e ignorais essas coisas.” É verdade que o Cristo acrescenta a cada
passo – “quem tiver ouvidos de ouvir, que ouça” e mais – “eles têm olhos e não
veem, têm ouvidos e não ouvem nem compreendem" - o que se pode aplicar
tanto aos seus contemporâneos como aos que lhe sucederam.
Eu disse que Deus na sua bondade me recompensara pelos
nossos trabalhos e pelos ensinamentos que permitiu nos fossem ministrados por
seus mensageiros, missionários devotados e inteligentes junto aos seus irmãos,
no intuito de lhas inspirar o amor do próximo, o esquecimento das injúrias e o culto
devido ao Ente Supremo.
Eis que agora compreendo as palavras do Espírito de Fenelon,
referindo-se a esses mensageiros divinos – “eles viveram tantas vezes que se
tornaram nossos mestres.”
Eu lhes agradeço humilde e alegremente, a esses
mensageiros divinos, o nos terem vindo ensinar que o Cristo está em missão
sobre a Terra, para propaganda e êxito do Espiritismo - essa terceira explosão
da bondade divina, que colima a última palavra do Evangelho – “Unum ovile et unus pastor.” (um rebanho,
um pastor)
Agradeço-lhes, sim,
o nos virem dizer: “nada temais, pois o
Cristo (que denominam também O Espírito da Verdade é o maior e o mais legitimo
missionário das ideias espíritas.” Aliás, essas palavras me haviam impressionado
vivamente e eu conjeturava onde poderia estar o Cristo em missão na Terra.
“A Verdade dirige – diz então o Espírito de Marius, bispo
dos primeiros tempos da Igreja - essa coorte de Espíritos enviados por Deus, em
missão, para propaganda e êxito ao Espiritismo.”
E que doces e puras alegrias derivam desses trabalhos espíritas
pela caridade feita aos Espíritos sofredores!
Que consolo é o de nos comunicarmos com os que da Terra
se foram, parentes ou amigos, ouvindo-lhes a confissão de que são felizes ou
aliviando--os se o não são!
E, como é viva e
radiante a luz desses mesmos Espíritos, os quais na veracidade integral da lei
do Cristo nos dão a fé pela razão, nos fazem compreender a onipotência do
Criador, sua grandeza, sua justiça, sua bondade e misericórdia infinita e nos
colocam, assim, na deliciosa necessidade de praticar a divina lei de amor e caridade.
Sublime, a ilação de tais ensinos, compreendendo nós que
os seus divinos transmissores, fazendo-nos progredir, progridem também eles e
vão aumentar a falange sagrada dos Espíritos perfeitos!
Admirável, divina harmonia que nos mostra a unidade de
Deus e a solidariedade de todas as suas criaturas, como nos mostra essas mesmas
criaturas sob a influência e impulso dessa solidariedade, dessa simpatia, dessa
reciprocidade, chamadas a gravitar e gravitando - não sem faltas e quedas, de
começo - na longa e alta escala espiritual a fim de, finalmente, degrau a
degrau, atingir- partindo do estado de simplicidade e ignorância originais à
perfeição intelectual e moral e, por essa perfeição - a Deus.
Admirável e divina harmonia que nos mostra esta grande
divisão da inferioridade e superioridade, pela distinção dos mundos de exílio onde
tudo é prova ou expiação, e dos mundos superiores, morada dos bons Espíritos,
onde só lhes cumpre progredir para o bem.
A reencarnação, bem compreendida, ensina aos homens que
eles aqui estão neste baixo mundo apenas de passagem e que são livres de a ele
regressarem, uma vez que se esforcem para isso; ensina que o poder, as
riquezas, as dignidades, a ciência, não lhes são dados senão a título de provas,
como meio de caminhar para o bem; que tudo isso lhes vem às mãos como simples
depósitos e meios de praticarem a lei de amor e caridade; que o mendigo é irmão
do potentado perante Deus, e talvez o fosse mesmo perante os homens; que esse
mendigo poderia ter sido rico e poderoso e que a atualidade miserável de sua
condição representa a falência de suas provas, lembrando assim aquele apotegma
do ponto de vista social – não há mais que
um passo do Capitólio (templo
dedicado para a Tríade Capitolina, ou seja, para Júpiter, Juno e Minerva) a Rocha Tarpeia, (era, na Roma Antiga, um local onde eram feitas
execuções, com as vítimas sendo lançadas desta rocha para a morte) com a
diferença, porém, que, pela reencarnação, o Espírito se levanta da sua queda e
pode, remontando o Capitólio, dali projetar-se às cumiadas celestes, à mansão
esplêndida dos bons Espíritos.
A reencarnação,
ensinando aos homens que, conforme o concerto admirável de Platão, não há rei
que não descenda de pastor, como não há pastor que não descenda de rei, amortece
lhes todas as vaidades humanas, segrega-os do culto material, nivela, moralmente,
todas as condições sociais.
Em uma palavra: a reencarnação constitui a igualdade, a
fraternidade entre os homens, tanto quanto entre os Espíritos, em Deus, e
perante Deus.
E constitui também essa liberdade que, sem amor e caridade,
não passa de utopia, como bem no-lo disse há pouco o Espírito de Washington.
No seu conjunto o Espiritismo veio dar aos homens a
unidade e a verdade em todas as conquistas intelectuais e morais, nessa tarefa
sublime de que somos apenas os mais humildes obreiros.
Adeus, meu caro senhor; depois de um silêncio de três
meses, eis que vos amofino com esta assaz longa carta.
Respondei-me quando puderdes e quiserdes.
Propunha-me ir a Paris para ter o prazer de vos conhecer
pessoalmente, para vos apertar fraternalmente a mão, porém a minha precária saúde
me tem impedido até o presente.
Desta, podeis fazer o uso que vos aprouver, na certeza de
que me honro de ser devotado e publicamente espiritista.
Vosso mui dedicado
Roustaing, advogado."
Os leitores podem,
como nós, apreciar e apreciarão certamente a exatidão dos conceitos expressos
nesta carta.
Por ela, se vê, de fato, que não obstante recentemente
iniciado na Doutrina, o Sr. Roustaing tomou-se mestre na interpretação.
A verdade é que ele a estudou profunda e seriamente, o
que lhe permitiu coligir em pouco tempo todas as consequências deste grave
problema do Espiritismo e, ao contrário de tanta gente, não se deteve à
superfície.
Nada havia ainda visto, di-lo, e já era um convencido
porque lera e compreendera.
Muitos, como ele, assim o tem feito, e nós temos reparado
que, em regra, os que assim procedem, longe de serem superficiais, são os que
mais refletem.
Prendendo-se mais
ao fundo que à forma, a parte filosófica é para eles o principal e os fenômenos
propriamente ditos o acessório.
Então, dizem, mesmo que os fenômenos inexistissem, não
deixaria de haver uma filosofia que resolve, só por si, problemas insolúveis
até agora, única que dá sobre o passado e o futuro do homem a teoria mais
racional.
E a preferência se lhes impõe entre uma doutrina que explica,
e uma doutrina que mal ou nada explica.
Quem quer que raciocine, compreende muito bem que se
poderia fazer abstração das manifestações, sem que a doutrina deixasse por isso
de existir.
Elas, as manifestações, vêm corroborar, vêm confirmar a
doutrina, mas não são a sua base essencial e disto é prova o discurso de
Channing (?) que acabamos de citar, pois cerca de vinte anos do desdobrar das
manifestações na América, o só raciocínio o conduzira às mesmas consequências.
Mas há um outro estalão (medida) pelo qual se pode
aferir a seriedade do espírita.
Pelas citações que o autor
da carta faz de pensamentos contidos em comunicações que recebeu, prova de que
se não limitou a admirá-las como belos tropos (tropeços) literários, dignos de
qualquer álbum, mas que as estuda, medita e aproveita.
Infelizmente, muita gente existe para a qual este alto
ensinamento representa letra morta, gente que coleciona as belas comunicações
como certos bibliófilos colecionam belos livros... sem os ler.
Outra coisa pela qual devemos felicitar o Sr. Roustaing, é
aquela declaração com que encerra a sua carta, pois desgraçadamente nem todos têm,
como ele, a coragem das próprias convicções e é isso que afoita os nossos
adversários.
Contudo, devemos reconhecer que, neste ponto, as coisas se
hão modificado de algum tempo a esta parte.
Há apenas dois anos muitas pessoas não falavam de
Espiritismo senão por olhares significativos os livros, compravam-nos em
segredo e guardavam-se bem de os colocar em evidência. .
Hoje, a coisa é diversa: já nos familiarizamos com o epíteto
(alcunha) de incivis (deseducados) dos zombeteiros e rimo-nos em vez de
corarmos.
Ninguém mais teme confessar-se publicamente espírita, tal
como se não temem outros de se confessarem prosélitos desta ou daquela filosofia,
do magnetismo, do sonambulismo, etc.
Sobre a matéria discute-se com o primeiro adventício como
se faz com os clássicos e os românticos, sem temor de humilhações reciprocas.
Eis um progresso imenso, que prova duas coisas: o
progresso das ideias espíritas em geral e a inconsistência dos argumentos
adversos.
E a consequência disto será o silêncio destes últimos que
só se julgam fortes por se acreditarem mais numerosos; mas, quando de toda parte
encontrarem com quem discutir, não diremos que se convertam, mas que saberão ser
mais comedidos.
Conhecemos uma pequena cidade da província, na qual, há
um ano, o Espiritismo contava apenas um adepto, que, se o conhecessem como tal,
seria apontado a dedo como um animal curioso ou, quem sabe, destituído do seu
cargo e até deserdado.
Hoje, a Doutrina conta ali numerosos adeptos, eles se
reúnem francamente sem se preocuparem com o que deles possam dizer e quando no
seu meio viram autoridades municipais, funcionários públicos, oficiais de patente,
engenheiros, advogados, tabeliões, etc., que não ocultavam as suas simpatias
pela causa, os zombeteiros calaram seus remoques (sem insinuação maliciosa) e o
jornal da terra, redigido por um espírito forte com premissas de ensaios e
aprestos de pulverização da nova doutrina, recolheu-se aos bastidores.
Esta história, é a de muitas outras localidades e se
generalizará à medida que os partidários do Espiritismo, cujo número cresce diariamente,
erguerem a voz e a cabeça.
Porque fácil é abater uma
cabeça que se mostra, mas quando há vinte, quarenta, cem cabeças, que não temem
falar alto e bom som, o caso e diferente.
Demais, isso também dá coragem a quem não na tem.
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