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quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Ensaio sobre a necessidade de não ser do mal metafísico

 

Ensaio sobre a necessidade de não ser do mal metafísico

por Luciano dos Anjos  Reformador (FEB) Fevereiro de 1963

 

“Assim também nenhuma fonte pode produzir água salgada e água doce.”  EP. Tiago, 3:12.

             Depois da questão de Deus, o mais grave problema de toda a Filosofia, especialmente nos capítulos da Cosmologia, da Ética e da Psicologia é, sem dúvida, o que diz respeito à existência do Bem e do Mal. Essa gravidade decorre da razão fundamental de que, se devemos evitar o Mal, é preciso antes de tudo definir a sua natureza. A Teologia tem especulado desde muitos anos sobre a origem e essência do Mal. Várias tentativas foram encetadas por todas as escolas visando a conciliar a existência de Deus, todo Perfeição e todo Bondade, com a existência, do Mal na Sua Criação. Quantas soluções já foram propostas é difícil de se saber com precisão. As mais divulgadas sustentam a existência de dois princípios universais, caracterizados respectivamente pela eternidade do Bem e pela eternidade do Mal. Outras afirmam ser um só o princípio - o Bem -, nada mais sendo o Mal do que urna fase imperfeita do próprio Bem. A primeira simboliza o chamado Dualismo filosófico e quer que toda a história da Natureza e da Humanidade seja à história do embate perene entre os dois princípios extremos, externos e antagônicos. A mais antiga concepção talvez seja mesmo a do masdeísmo (admite dois princípios: um, bom, deus de luz, criador, e o outro, mau, deus das trevas e da morte, que travam um combate decisivo para o destino da humanidade.), onde se afirma a realidade desses dois princípios segundo os cognomes de Ormuz (o Bem) e Arimã (o Mal). Mas até entre os povos cristãos essas ideias dualísticas vingaram, embora seguidamente arguidas de heréticas pela igreja dominante. As teorias que revelam existir apenas o princípio do Bem são apanágio das doutrinas monísticas, nas quais podemos classificar o bramanismo e o platonismo, entre as mais antigas. Já o evolucionismo vê no Mal um estacionamento necessário ao menor mal e ao melhor, mostrando por outro lado a sua eliminação paulatina. O pessimismo, a seu turno, é a doutrina da eternidade do Mal e da sua superioridade sobre o Bem. O otimismo, em contrapartida, ensina que este mundo não é absolutamente e bom, porém o melhor possível. A concepção verdadeiramente cristã do Mal é a que se encontra no Gênese, oposta à doutrina masdeísta de Zoroastro, negando a existência do Mal como um ente personificado e apenas o apresentando como a privação de alguma perfeição devida um objeto; ou, como uma subversão de valores no plano moral. No que respeita à origem do Mal várias teorias também surgiram sempre, algumas ridículas e irrisórias. Ora se trata do pecado dum primeiro casal (Adão e Eva), introduzindo com sua queda o Mal na história da Humanidade (?!); ora é a falta cometida pelas criaturas numa outra Vida, que desenrola as suas consequências na atual. As religiões que não aceitam a preexistência da alma procuram ainda, para não cair no pessimismo, completar sua teoria pela da redenção.

            O problema se eterniza. Nenhuma concepção parece satisfazer ao homem e atender-lhe às exigências da razão. O grande paradoxo permanece de pé, inabalável e intangível à crítica. Antes de nos abalançarmos a qualquer tentativa de nossa parte, aclaremos melhor o ponto em tela.

            Distinguem-se três espécies de males: o Mal Físico, que se manifesta através do sofrimento material e pode rematar por dores de ordem espiritual; o Mal Moral, que consiste na violação do dever; e, finalmente, o Mal Metafísico, que é a imperfeição admitida em Filosofia como necessariamente inerente a qualquer criatura, ou, se se prefere, a tudo o que não é Deus.

            Vamos por partes e dissertemos preliminarmente sobre o aspecto menos complexo: o Mal Físico. Este Mal está muito bem capitulado por quase todas as escolas filosóficas, cabendo ao Espiritismo, entretanto, oferecer a sua mais racional e mais lógica explicação, quando o ajusta à lei da reencarnação. Superficialmente concordam quase todos em que O Mal Físico, isto é, a Dor, o Sofrimento, é, antes um Bem do que um Mal. Nada de absurdo existe na assertiva de que Deus criou a Dor. O homem vive um e num mundo inteiramente relativo e por isso não pode avaliar os propósitos que regem o Absoluto. “O homem - diz Kardec em “A Gênese” -, cujas faculdades são restritas, não pode penetrar, nem abarcar o conjunto dos desígnios do Criador: aprecia as coisas do ponto de vista da sua personalidade, dos interesses factícios e convencionais que criou para si mesmo e que não se compreendem na ordem da Natureza. Por isso é que, muitas vezes, se lhe afigura mal e injusto aquilo que consideraria justo e admirável, se lhe conhecesse a causa, o objetivo, o resultado definitivo. Pesquisando a razão de ser e a utilidade de cada coisa, verificará que tudo traz o sinete da Sabedoria Infinita e se dobrará a essa sabedoria, mesmo com relação ao que lhe não seja compreensível” (página 67 – 13ª ed. da FEB). É sempre oportuno aquele velho exemplo da criança à qual negamos uma série de prazeres porque lhe conhecemos melhor as necessidades; ou, então, aqueloutro, da amputação dolorosa dum membro que gangrenaria e levaria o paciente à morte certa. Sabemos todos nós, especialmente os espíritas, que a Dor é a grande dádiva que Deus envia para nos alertar, para nos auxiliar, para nos animar. Vitor Rugo disse bem: “Dor! Chave dos céus!” Por isso mesmo, para uns o prazer é uma grande dor, enquanto outros (os mártires) são capazes de fazer da dor um prazer. A Dor como dor e como sensação desagradável existe apenas em função dos reflexos condicionados pelo homem durante milênios de distorção e má vontade para com esse Bem extraordinário que ela representa! André Luiz refere em seu livro “Ação e Reação” três espécies de dores, mostrando o acerto de Deus ao cria-las, Trata-se da dor-evolução, da dor-socorro e da dor-expiação (pág. 255 – 1ª edição) A dor-evolução é a mola do progresso, atuando “de fora para dentro, aprimorando o ser, sem o qual não existiria progresso”. É a dor dos animais, por exemplo, através do sofrimento adquirido, ou do inato, de ordem teratogênica. (v. “O Consolador”, pergunta 39) . A dor-expiação “vem de dentro para fora, marcando a criatura no caminho dos séculos, detendo-a em complicados labirintos de aflição por regenerá-la perante a Justiça". Esta dor é mais do que compreensível, pois simboliza a justiça na sua plena perfeição. Se o homem de bem é premiado, o faltoso não pode receber igual tratamento. Finalmente temos a dor-auxílio destinada a evitar a queda do homem “no abismo da criminalidade” ou, “mais, frequentemente, para o serviço preparatório da desencarnação, a fim de que não sejamos colhidos por surpresas arrasadoras, na transição da morte”. Quantos não terão deixado o caminho do erro e do vicio devido a uma dor qualquer, chegada certamente em momento aprazadíssimo da sua jornada e que terá representado o único recurso capaz de beneficiá-los!  

            No campo estritamente espiritual desse Mal temos de convir, ainda, que como expressão de sofrimento ele pode ganhar variações multo longe de ser entendidas pelos nossos precários recursos intelectivos. Neste conceito de dor-evolução haverá necessariamente miríades de formas sensitivas, para cujo entendimento ainda estamos sobremaneira despreparados. O que o Cristo sofreu - quem sabe? - talvez não se possa sequer chamar Dor propriamente, traduzindo-se, antes, por uma condição espiritual para a qual carecemos até mesmo de terminologia adequada. Arrematando: a Dor Física (ou espiritual) não é absolutamente incompatível com a grandeza de Deus e, analisada fria e criteriosamente, há de revelar-se sempre como o maior Bem que o Criador nos legou. Podemos mesmo afirmar que Deus não seria Deus se não criasse a Dor. No mais, cumpre levar em conta a profunda tirada de Jean Jacques Rousseau: “O homem que não conhece a dor não conhece nem a ternura da humanidade, nem a doçura da comiseração”...

            Passemos agora ao Mal Moral, isto é, a violação do dever. Esse tipo de Mal diz muito de perto com o livre arbítrio do homem. Da necessidade e da sabedoria de criar o homem inteiramente livre, Deus outorgou-lhe o critério de agir por si, certo ou errado. A violação é definida como uma ciência normativa, estudando os princípios gerais que hão de orientar a ação livre e pessoal do homem. A violação desses princípios gera o Mal Moral. Mas a Ética é muito relativa e até a sua simples definição varia consideravelmente de escola para escola.

            Seria preciso conhecer o Bem Supremo para cumpri-lo com rigor. Como não o conhecemos, os filósofos teorizaram o “bem moral formal” que consiste na subordinação da nossa vontade ao bem em si, na medida em que as circunstâncias nos permitem conhecê-lo. O valor moral das nossas ações dependeria, portanto, da intenção com que elas são praticadas. Desde que a intenção seja boa e vise ao cumprimento do dever, os atos por ela inspirados também serão bons. Assim - concluem os filósofos -, Deus pôs a perfeição moral ao alcance de todos, fazendo-a depender apenas da pureza de intenção e não do conhecimento ou do desenvolvimento intelectual de cada um. O Mal Moral decorre pura e exclusivamente da falta de cumprimento do dever, que representa, por sua vez, a obrigação do praticar o bem que se impõe à nossa vontade, exigindo o fiel cumprimento. A consciência nos atesta que estamos obrigados a seguir a moral, embora conservemos, em virtude do nosso livre arbítrio, o poder de não segui-la. Pelo Mal Moral somente o homem é também culpado, e não chega a constituir-se num problema filosófico- É questão que começa e termina entre os próprios homens, nada podendo ser imputado a Deus pela sua existência ou consequências. A Ética de hoje não é a mesma que a de ontem. O que hoje é moral amanhã pode ser imoral. Tudo depende muito mais de simples convenções humanas que propriamente de leis inerentes à Natureza. O Mal Moral, portanto, só existe enquanto, como e porque os homens queiram. A nosso ver a teoria do "bem moral formal" resolve muito satisfatoriamente qualquer pequena dúvida que se levante e Deus de forma alguma participa do Mal Moral senão no seu eventual aproveitamento para o ensinamento e a evolução das Suas criaturas, cultivando nelas o sentimento do dever, do amor, do respeito, da obrigação, etc.

            Eis que chegamos ao Mal Metafísico, este, sem dúvida, completamente transcendente ao homem e ao mundo, tudo fazendo crer que é imanente a Deus. No Mal Metafísico reside a grande questão: sendo Deus absolutamente Perfeito, porque existe a imperfeição no Universo? Em outras palavras: porque Deus criou a possibilidade do Mal Metafísico? Ele, afinal, já não pode mais ser considerado como o Mal Físico, isto é, como um bem mal compreendido devido à nossa relatividade; nem pode ser tido mais como uma real necessidade para ensejar ao homem à prática do livre arbítrio a fim de conquistar a perfeição por seus próprios méritos, pois representaria um extremado mau gosto do Criador. Aqui a questão se emaranha. O Mal Metafísico não pode, como o Bem, existir antes, fora e acima dos homens sem que se aceite, como corolário, o incongruente princípio dualístico do Universo. Mas, em contrapartida, não pode ter sido criado pelo homem que sempre o viu diante de si, como uma possibilidade “a priori”, tentando-o ou abrindo-se lhe à frente como um caminho terrível diante do qual tom de decidir-se. Frisemos bem: o Mal Metafísico, em última análise, já representa imperfeição a partir da sua possibilidade. Como conciliar tamanhas aberrações? Onde a chave para tão dramático problema filosófico?

            Não pretendemos apresentar como verdade inabalável e absoluta o que se vai expor a seguir. Entretanto, resume o pensamento de quem não quer nem pode admitir o Mal Metafísico como gerado de Deus, da mesma forma que temos a certeza de que se se originou do homem, é porque Deus permitiu essa possibilidade. É possível que a Verdade seja bem outra da que se segue; todavia, esta nos apraz (porque não macula o Criador) e por ora nos satisfaz plenamente (porque desfaz o rigor da dúvida). Até segunda ordem ou até prova em contrário, referimos a solução dialética que apresentamos daqui por diante.

             O MAL METAFÍSICO NÃO EXISTE. NÃO TEM REALIDADE NEM OBJETIVA NEM ABSTRATA; ELE NÃO PODE "SER" DENTRO DA CRIAÇÃO PERFEITÍSSIMA DE DEUS, É PRECISO DEMONSTRAR PELO RACIOCÍNIO A SUA NECESSIDADE DE “NÃO-SER’. E é o que tentaremos, se até lá nos permitirem os leitores, dispensando um pouco mais de sua paciência a este modestíssimo ensaio.

             A simples consulta ao texto enciclopédico deixa clara a antinomia da questão quando regista ser o Mal Metafísico a “imperfeição a tudo o que não é Deus”. A definição é acertadíssima e caberia apenas lembrar que o que não é Deus não pode existir, pois fora d'Ele existe somente o Nada e o Nada não é nada. Para os que querem que o Mal exista como realidade provisória, enquanto não se transforma no Bem, salientemos que, admitida esta asserção, não poderemos negar a sua recíproca, isto é, que o Bem também se transforma no Mal, da mesma forma que a matéria se transforma em energia, e vice-versa . No entanto, como dizia Buda, “o Bem é fim supremo da Natureza.” e não pode degenerar nunca. Aceitar sua degenerescência seria aceitar também a do próprio Deus! Não! O Bem não pode transformar-se no Mal e. por isso, o Mal também não pode transformar-se no Bem. Da mesma forma, não se proclame que o Mal existente se extinguirá sem se transformar em coisa alguma, pois aprendemos com Lavoisier que “nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, Crisna, no "Maabarata", doutrina que “nada do que existe pode perecer porque tudo está contido em Deus”. Dizemos nós que nada desaparece senão o que nunca existiu na realidade. O que “é” nunca deixa de ser definitivamente. Portanto, preferível admitir a necessidade de não-ser do Mal Metafísico a cair na sua perigosa transformação no Bem ou na sua impossível e desconcertante desaparição do sistema de Deus. Nossa afirmativa - diga-se de passagem - não deve surpreender pelo menos aos espíritas mais estudiosos da Doutrina. Em “O Consolador”, pág. 80 – 4ª ed. da FEB, Emmanuel também assevera categoricamente (p. 135) que “o mal essencialmente considerado, não pode existir para Deus, em virtude de representar um desvio do homem, sendo zero na sabedoria e na providência divinas”.

            Leon Denis, o mais notável filósofo da escola kardequiana, aproveitou do Mestre a definição de que “o Mal é a ausência do Bem” (“A Gênese”, pág. 69, 13ª ed. da FEB), incluindo-a, no seu trabalho “O Grande Enigma”, pg, 65,4ª ed. da FEB. O discípulo fiel, entretanto, apresenta de sua parte definição ainda muito melhor, quando afirma mais adiante, na pág. 87, que “o mal é o Menos evoluindo para o Mais, o Inferior para o Superior, a Alma para Deus.” (aqui não haveria uma transformação, mas uma complementação). A nós, soa como o que de melhor se poderia dizer para esclarecer o terrível problema. Quase descobrimos um paralelo entre a sua afirmativa e a que fazemos da inexistência do Mal. Preferimos porém, apenas como meio de linguagem para designar as coisas e podermos entender-nos, aditar à nossa primeira asserção (o Mal Metafísico não existe, não “é”), a afirmativa complementar de que os fenômenos vulgarmente considerados como tais são apenas o ANTES. Posteriormente explicaremos porque essa preferência. Por ora, para não tumultuar o raciocínio, demonstraremos tão só a necessidade de não-ser do Mal Metafísico.

            Como considerar, pois, o Menos de Leon Denis em face da Criação e da Perfeição de Deus, de forma a não tisnar aquele nem apoucar esta? Esse Menos (para nós, o Antes, isto é, o Mal Metafísico) é uma APARÊNCIA. Toda a sua fenomenologia concreta ou abstrata é aparentemente real. Sublinhemos, entretanto: não deve ser confundida aqui a ideia de abstração aparente com os demais fenômenos menos subjetivos da alma, como, por exemplo, a saudade, o tédio, a esperança, etc., que têm, afinal, uma realidade embora abstrata. No caso do Mal Metafísico - desarmem-se. por favor, contra o suposto absurdo de nossas ideias - temos uma abstração irreal, impossível de existir. Registre-se bem a diferença para que possamos prosseguir. Antes de fazê-lo, porém, compulsemos uma vez mais a enciclopédia de forma a apreender melhor a acepção do vocábulo “aparência”, Vejamos: "APARÊNCIA. s. f. Aquilo que se mostra à primeira vista; aspecto; exterioridade: aquilo que parece não é realidade, mostra enganosa, fingimento; disfarce.”  Argumentarão os leitores no sentido de que atrás das aparências existe uma realidade qualquer. Uma roda dentada em grande movimento rotativo aparenta ser continua na sua periferia; todavia, atrás dessa aparência há uma realidade, apesar de diferente. A Terra esteve, durante muitos séculos, aparentemente imóvel no espaço, enquanto o Sol lhe girava em torno; porém, havia uma realidade que, embora contrária, nunca deixou de ser real. A continuidade da matéria - dirão ainda - foi sempre creditada e hoje sabemo-la descontínua, embora ainda a vejamos como antes, isto é, aparentemente contínua. Assim - concluirão contra nós - havia, há e haverá sempre uma realidade, embora diferente, existindo atrás de todas as aparências. Concordamos sem embargo com tais arguições, elas, porém, não se aplicam absolutamente a todos os exemplos e, por isso mesmo, as enciclopédias registram a acepção que, na transcrição acima, grifamos particularmente. É o caso duma imagem no fundo dum espelho. Neste caso, atrás da aparência não existe absolutamente realidade alguma. Ou, se quisermos um outro exemplo muito melhor ainda: o arco-íris, que pode ser visto, medido, fotografado, provocar inclusive consequências morais (falamos de criaturas supersticiosas, sempre prontas a influenciar-se por qualquer coisa}, sem que, no entanto, possua a mais mínima realidade concreta ou abstrata, permanecerão sempre, por mais rápidas que caiam as gotas que lhe dão origem. Temos ainda o exemplo - talvez o menor - da sombra (própria ou projetada). A luz é um corpúsculo-onda e a sombra, fisicamente falando, é definida como a ausência dessa luz. Ela não existe nem concreta nem abstratamente, senão na aparência. Não pode ser medida (mede-se a intensidade da luz, não a da sombra), não pode ser tocada, não pode ser condicionada a coisa alguma. É absolutamente aparente a sua existência, embora possa ser útil, sofrer aplicações e causar inúmeros efeitos práticos. Para esses exemplos há somente uma explicação, nunca uma realidade, o que é bem diferente. Da mesma forma, o Mal Metafisico aparente não comporta uma realidade, embora seja explicável. E essa explicação quem melhor no-la dá é Allan Kardec, em “A Gênese”, pág. 78, 13ª ed. da FEB, quando o Codificador procura justificar o espetáculo da destruição dos seres vivos uns pelos outros, ato que representa, sem dúvida, o paroxismo do Mal Moral e a prática extrema do Mal Físico, ambos ao ensejo do Mal Metafísico. "Por meio do incessante espetáculo da destruição - comenta Allan Kardec -, ensina Deus aos homens o pouco caso que devem fazer do envoltório material e lhes suscita a ideia da vida espiritual, fazendo que a desejemos como uma compensação. Objetar-se-á: não podia Deus chegar ao mesmo resultado por outros meios, sem constranger os seres vivos a se entre destruírem? Desde que na sua obra, tudo é sabedoria, devemos supor que esta não existirá mais num ponto de que noutros: se não o compreendemos assim, devemos atribui-lo à nossa falta de adiantamento. Contudo, podemos tentar a pesquisa da razão do que nos pareça defeituoso, tomando por bússola este princípio: Deus há de ser infinitamente justo e sábio. Procuremos, portanto, em tudo, a sua justiça e a sua sabedoria e curvemo-nos diante do que ultrapasse o nosso entendimento.”

            Assim, pois, embora do Mal Metafísico exista apenas uma aparência incriada, Deus, que tudo pode, não impede ao homem (como poderia, se o quisesse) que ele se deixe "e levar por essa aparência e em nome dela viole as Suas leis. Primeiro, porque quer respeitar-lhe a liberdade que lhe deu; segundo, porque faz dessa violação uma utilidade. Einstein, Poincaré, Nordmann, Riemann, Barnett, Jeans e muitos outros já demonstraram sobejamente que Tempo e Espaço não existem. Entretanto, ambos têm servido para ajudar no progresso do homem. Deus não é o criador nem do Tempo nem do Espaço que os homens concebem com sua mentalidade acanhadíssima. No entanto, aí estão como realidades aparentes e relativas, servindo aos homens, afetando extraordinária utilidade prática e evolutiva.

            A ideia segundo a qual desde que podemos conceber o Mal Metafísico ele tem de necessariamente existir é falsa e arbitrária. Podemos conceber um monstro de dez cabeças, corpo de gente, o pé de cabra e tal ser jamais existiu ou existirá. Da mesma forma, o homem concebe o Mal Metafísico sem que ele exista. Dirão: contudo, embora o monstro não exista, existem os seus componentes isoladamente (a cabeça de gente, o pé de cabra, o corpo humano) e todos eles são perfeitos e criados por Deus. A imaginação do homem cuidou apenas de imitá-los num ente de ficção. O Mal Metafísico poderia ser então o grupamento de determinadas frações reais. Concordamos e até diríamos que a construção aparente do Mal Metafísico nasceu da falsa ideia da dor, do desgosto, enfim, de várias frações do Mal Físico e do Mal Moral, estes, como já vimos, de fato existentes na Criação. Existentes, mas - não nos esqueçamos - aparentemente maus, pois já vimos também que a Dor é um bem, um mal relativo. Podemos então concluir tranquilamente que o erro foi do homem, ao fazer de muitos bens (males aparentes) um princípio inteiramente irreal e oposto ao que realmente existiu sempre sozinho: o princípio do Bem. Deus não pode ser culpado da capacidade se iludir e enganar os seus filhos, a quem dotou do livre arbítrio. Também não se confunda nunca nosso conceito do Mal Metafísico aparente com a Imaginação Criativa (Psicologia), que é um produto real, embora abstrato, da mente humana. O não-ser do Mal Metafísico não é fruto da mente senão na medida em que o homem, invertendo os valores do Bem real, julga estar diante duma outra realidade que, a rigor, vem a ser apenas uma aparência. O Mal Metafísico é irreal e aparente “fora do homem” se bem que a sua aparência “seja” (?!) sempre em função dos homens. Resumindo esta parte, poderíamos sentenciar com A. Lobo Vilela que “o zero das aparências corresponde ao infinito da realidade - quando a aparência é nula a realidade é plena” (“O Problema da Sobrevivência”, pág. 100, ed. da FEB, 1941). Isto quer dizer: se há uma aparência, corresponde sempre a uma irrealidade qualquer...

            Reafirmemos, pois: a possibilidade do egoísmo, do ódio, da ambição, do erro, do vício, etc., na sua essência, não existe. E as guerras? As guerras são de fato uma realidade, mas não se enquadram na ideia do Mal Metafisico. Elas são males puramente físicos, pois representam apenas grandes dores coletivas e tais dores, já frisamos, não impugnam a Perfeição de Deus. A dor é um bem, dissemo-lo seguidamente e conosco a Doutrina Espírita. Entretanto, é bem de ver, as razões do ato de se provocarem as guerras, estas sim, são um Mal Metafísico e não existem senão na aparência. O mesmo se dá com o homicídio. As razões, a possibilidade dada ao assassino não tem nenhuma realidade. Já o crime em si, este é de fato real, tanto no que respeita ao ato de matar por parte do agente, quanto ao de morrer pelo paciente. O primeiro representa a causa duma dor futura; o segundo é o efeito doloroso duma causa passada, funcionando no sentido do resgate este, e do livre arbítrio aquele. Não se infira daí que se deva ou se possa matar, pois esta simples inclinação já é a cessão à tentação do aparente Mal. E, embora este inexista, é contra a Lei de Deus ceder a todos os seus efeitos aparentes. Isto poderia levar alguns a raciocinar pelo ângulo de que, desde que inexiste o motivo da tentação, estamos então diante dum efeito sem causa. Alguém mata a alguém movido por uma ilusão que deveria ser a causa, mas não o é porque ela não existe e é aparente apenas. Replicaremos que a causa do crime existe e é exatamente o procedimento ilegal e violento do homem; as razões da causa é que são apenas aparentes. Certa pessoa incendeia uma casa. O incêndio é o efeito da causalidade de haver essa pessoa provocado o fogo. A pessoa, porém, provocou o incêndio levada por uma aparência.

            Mas, haverá ainda os que perguntem: porque Deus criou a possibilidade da aparência do Mal Metafísico? Ora, já dissemos que Deus não criou coisa alguma nesse sentido. Se é aparente, por isso mesmo não existe nem mesmo dentro do campo restrito da possibilidade; se não existe, não foi criado! Porventura levada em conta essa objeção teríamos então de admitir também, por analogia, que Deus criou - porque ocorre, por equívoco de algumas aparências, a muita gente - a possibilidade de não existir o próprio Criador, ou, simplesmente, o Espirito. Logo, entretanto, havemos todos de convir unanimemente que essa possibilidade não existe e se não existe não foi criada. Dirão ainda nossos opositores: isso não passa dum jogo sofístico de palavras, ao que redarguiremos que, num mundo de cegos, qualquer especulação sobre as cores seria considerada identicamente. Dirão mais: mas é acima de tudo um absurdo incrível! Respondemos: que seja; mas é verdade e crível para quem queira crer na infinita Perfeição de Deus. Podemos repetir com Galileu ante o Tribunal da Inquisição: “Eppur si muove...” Ou, com Camilo Castelo Branco: “A verdade é às vezes mais inverossímel que a ficção...” Tornarão à carga: é mais do que absurdo querer afirmar que o que parece racionalmente existir não existe! Tornaremos a obtemperar: não é maior nem menor absurdo do que a afirmativa inversa dos “sábios” negando o fluido universal e afirmando que... o Nada existe!

            Continuemos assim o raciocínio anterior. Deus não criou a possibilidade da aparência do Mal Metafísico. Entretanto, ela gera, sem existir embora, fatos reais provocados, estes, pelo Homem apenas. “Não é a realidade que separa os homens, mas a aparência, que é a imagem dela, no espelho da consciência e depende portanto do seu ponto de vista”, diz A. Lobo Vilela na página 102 de “O Problema da Sobrevivência", edição citada. A inexistente aparência do Mal Metafísico tem, pois, uma função útil na Criação. Os sábios acreditaram e alguns ainda acreditam cegamente na existência do Nada. Esta crença cega Deus a permitiu sempre porque, sem dúvida, talvez somente assim pudessem surgir os pensadores antagônicos capazes de negar o Nada. Sem falarmos na mentalidade do espírito de Liberdade que se agiganta na medida em que Deus permite, como de fato o faz, que o homem creia até mesmo em que Ele, Deus, não exista, da mesma forma tolera magnânima e sabiamente que o homem creia que existam coisas inexistentes, como, por exemplo, a possibilidade de “acabar” com Deus, pretensão ridícula e louca de muitos filósofos ultrapassados. Mas tudo é útil, o que vem a significar coisa muito diferente de que tudo é real. Assim, a aparência do Mal Metafísico só se tolerou dentro do espírito do homem por tais razões conjugadas: noção de liberdade e sentido de utilidade. Mais uma vez indaguemos: para que serve a aparência do Mal Metafisico? Nossa resposta a essa pergunta, complementando os conceitos de Kardec contidos em “A Gênese” e já transcritos neste trabalho, linhas acima, é a clássica resposta da Filosofia em geral e particularmente do Kardecismo: para destacar o Bem e o Belo, estes reais, existentes e representativos do único princípio monístico do Universo. Não seria possível ao homem conhecer o alto se não lhe surgissem montanhas para, apreender, de cima delas, a noção do baixo. Sem o escuro, o homem não conceberia o claro. Apenas que, nestes exemplos, ele tem diante ele si criações reais representativas dessas antíteses. No caso do Bem e do Mal, entretanto, apenas o primeiro é real: o segundo foi-lhe permitido conceber a sua aparência a fim de alcançar-se aquela mesma diferenciação conceitual interior. Com tal recurso Deus mostra o caminho do Bem ao homem, através duma aparência que Ele não criou e que é produto irreal apenas da própria liberdade do homem. Da mesma forma que sempre permitiu ao homem crer em todas as demais irrealidades concebidas para destacar as realidades da Criação. Aos que nos objetam o raciocínio com tais juízos poderíamos também alegar que, sendo tudo possível para Deus, também o é a possibilidade de criar o Nada. Contudo, isso não tem sentido. Deus jamais criaria a possibilidade do Nada pois o Nada é nada e não poderá ser possível nunca, senão na aparência e na mente fraca e livre do homem! Um último recurso dialético empregarão nossos leitores discordantes: se o homem se deixa levar pelo Mal, ainda que aparente, então o Mal deve existir. Ora, se o homem - e quantos! - se deixar levar pela ideia do Nada, isto não prova absolutamente que o Nada exista. Dir-se-á, finalmente, ser paradoxal que coisas irreais funcionem como coisas reais, embora aparentes. Ora, os paradoxos às vezes só o são em determinada época e relativamente à mente estreita do homem que, não raro, considera paradoxais verdades absolutas. Isto decorre, já se vê, da sua ingenuidade de emprestar à Criação conceitos abstratos que lhe são próprios. Não é o que ocorre, por exemplo, com o famoso paradoxo de Zenão de Eleia, segundo o qual o movimento não pode existir, dada a noção do infinito? Entretanto, quem pode negar o movimento real de tudo? Se o que afirmamos é paradoxal isto implica muito pouco na infirmação do que vimos expondo como verdade. Não ê igualmente paradoxal que, crescendo continuamente a entropia no Universo (2º Princípio da Termodinâmica) não se pode compreender a existência da vida organizada? No entanto, esta existe!

            Entremos agora, num ponto capital deste nosso humílimo ensaio. Não se haveria de concluir disso tudo que o Bem também pode então ser uma aparência apenas? Aqui vamos socorrer-nos de Kant e da sua extraordinária doutrina. Enquanto o Mal Metafísico (aparente, para nós) é relativo e fruto da “razão pura”, o Bem é inato e intuitivo porque é Absoluto e existe “a priorí” do conhecimento. Diz Kant na sua "Crítica da Razão Pura". pág. 31: “Precisamos encontrar uma ética universal e necessária; os princípios “a priorí” da moral são absolutos e certos como os de matemática. Devemos mostrar que a razão pura pode ser prática, isto é, pode por si mesma determinar a vontade, independentemente de qualquer coisa empírica e que o senso moral é nato e não derivado da experiência. O imperativo moral requerido para base da religião deve ser um Imperativo absoluto e categórico.” Will Durant, comentando o kantismo na sua “The Story of Philosophy” escreve:Ora, a mais surpreendente realidade de toda a nossa experiência é precisamente nosso senso moral, nosso sentimento iniludível, em face da tentação, de que isto ou aquilo é um mal. Podemos ceder à tentação; entretanto, aquele sentimento persiste. “Le matin je fais des projets et le soir je fais des sottises (tolices)”; mas sabemos que são “sottises” e renovamos depois os projetos. Que coisa é que nos traz a pungir do remorso e a nova resolução? O imperativo categórico existente em nós; “o incondicional mandamento de nossa consciência para que procedamos como se a norma de ação fosse tornar-se, por nossa vontade, uma lei universal da Natureza". “Sabemos, não pelo raciocínio, mas por um sentimento vivo e imediato, que devemos evitar um procedimento que, adotado por todos os homens, tornaria impossível a vida em sociedade.” “A Prudência é condicional; seu lema é: proceder honestamente, quando for a melhor tática; mas a lei moral é em nossos corações incondicional e absoluta. E uma ação é boa não pelo seu bom resultado ou por sua sensatez e sim por ser feita em obediência a este íntimo sentimento do dever, a esta lei moral que não procede de nossa experiência pessoal, mas legisla imperiosamente e “a priori” sobre o nesse procedimento passado, presente e futuro”. “Se a justificação de virtude fossem meramente a utilidade e a conveniência terrenas, mal avisados andaríamos sendo bons. Conhecendo, todavia, tudo Isto, sofrendo com frequência o choque brutal dessa verdade, sentimos, ainda, a ordem mental de procedermos bem, sabemos que devemos fazer o bem desinteressadamente.

            Reafirmemos, pois, de nossa parte: o Bem é real e absoluto não porque assim o tenhamos considerado pela “razão pura”, mas porque representa um sentimento tamanhamente superior que nos grita dentro do ser como Verdade e que por isso mesmo pode ser alinhado dentro dos conceitos da “razão prática”, conduzindo-nos, pelos atos, à Perfeição e a Deus. Mas é exatamente em vista disso que o Bem e o Belo, tanto quanto o próprio Deus, são indefiníveis na sua essência absoluta. Aclaremos melhor um aspecto importante, tendo em vista o que acabamos de expor. A intuição, o instinto do Bem apriorístico e a aparência do Mal Metafísico experimental não destroem a ideia do livre arbítrio. O homem é livre para seguir a intuição do Bem, que é real e positivo, ou para ceder à tentação do Mal, que é aparente e negativo. Ele pode seguir o Belo (intuição pura) ou a imagem falsa dum espelho, a projeção ilusória duma sombra (aparência pura). Com isso, também a ética espírita em nada é melindrada.

            Retomemos agora, como prometêramos no início, à aplicação do conceito do ANTES para designar à aparência do Mal Metafisico. Essa equivalência se justifica - diga-se de passagem - apenas para que possamos assimilar melhor dentro da “razão pura” de Kant (que nos apraz sobremaneira) toda a complexidade desse terrível problema filosófico. O Menos de Léon Denis sugere, em última análise, uma imperfeição qualquer, uma deficiência, uma insuficiência. Assim, não teríamos, como desejamos, a inexistência ou irrealidade do Mal Metafísico, senão a existência de qualquer coisa que, embora não seja drástica para a bondade de Deus, denotaria, todavia, uma imperfeição de ordem quantitativa, digamos assim. Contudo, na Perfeição de Deus não pode haver a mais mínima imperfeição. O termo. ANTES, que sugerimos, parece solucionar o impasse conciliando Deus e Sua Perfeição com essa aparência do Mal Metafisico. Vejamos como. Antes e depois são variantes do tempo. Ocorre, porém, que o Tempo, tanto quanto o Espaço, não existem como realidades absolutas, senão na teoria objetivista de Newton ou na teoria escolástica (nesta, apenas em parte), ambas inteiramente superadas. Kant, na sua teoria subjetivista, considera-os como formas “a priori” da nossa sensibilidade, negando-lhe objetividade. A teoria relativista de Leibnitz admite que espaço e tempo são apenas ordens de relações entre diversos fenômenos. Finalmente, a Teoria da Relatividade proposta em muito boa hora pelo gênio de Albert Einstein, nega a existência do espaço e do tempo absolutos, considerando-os fundidos no espaço-tempo, espécie de meio contínuo a quatro dimensões. Inclina-se a Ciência pela aceitação desta última, principalmente depois que Einstein conseguiu comprovar experimentalmente algumas de suas assertivas. O Espiritismo tende igualmente para essas conclusões, se levarmos em conta as revelações sobre as questões premonitória, proféticas, prescientes (a presciência implica na anulação do tempo e explica, por exemplo, o conhecimento de Jesus quanto à traição de Judas, que se efetivaria sem qualquer dúvida, em que pese o livre arbítrio de Iscariotes), etc. No Absoluto existe um Eterno Presente. A eternidade, na qual cremos firmemente, seguindo a escola espírita, é um tempo imóvel, que não anda e jamais passa. Segundo Pietro Ubaldi, “ela não é o prolongamento de um tempo que, embora avançando, sempre está limitado pela duração”. "É a ausência do tempo" ("Deus e Universo", pág. 87). Assim, pois, quando chamamos Antes à aparência do Mal Metafísico queremos deixar entrever com precisão que nos referimos a uma irrealidade assim denominada apenas para efeito de entendimento. Como dizemos, por exemplo, “o ontem”, que absolutamente não funciona na eternidade e no absoluto, senão em relação a nós mesmos. Por outro lado, a ideia do ANTES implica - e é o que objetivamos - na idem do DEPOIS, transmitindo-nos assim uma noção abstrata de evolução, de alguma coisa que está para vir, adiante de nós e melhor em tudo. Recorde-se a ideia de alto e baixo e que já nos reportamos e que se fez indispensável à Criação para entendimento das criaturas. Na medida, pois, em que o Espírito evolui, caminha de Antes para o Depois, onde então todas as aparências desaparecem para dar lugar apenas no Absoluto, ao Bem uno e supremo, centro monístico do Universo. Criação perfeitíssima de Deus.

            Tiremos as últimas conclusões deste despretensioso ensaio filosófico. Salientemos que não visamos a galvanizar o Otimismo Cósmico de Leibnitz. Não podem ser postas em paralelo nossas ideias e as do grande filósofo. Não apenas porque entre nós e o notável criador da “mônada suprema” há uma distância infinitesimal como também o conteúdo das duas dialéticas não se ajustam, embora isso possa parecer à primeira vista. Leibnitz não negou o Mal Metafisico. Apenas considerou-o, apesar dos pesares, como “um mal necessário para avivar, pelo contraste, a beleza do conjunto". Na sua Teodiceia encontram-se aliás páginas admiráveis sobre a existência do mal e a sua conciliação com a Providência. De nossa parte, aceitando plenamente a asserção de que o Mal Metafísico é incompatível com Deus, buscamos negá-lo peremptória e radicalmente. Não nos parece isso tão extravagante, se levarmos em conta, por exemplo, que Berkeley, o grande filósofo de Dublin, postula no seu “Tratado sobre os Princípios do Conhecimento Humano", a inexistência... da matéria! Na desesperada tentativa de destruir o Materialismo desenvolveu os princípios idealistas contidos na filosofia de Locke e proclamou tranquila e seguramente que a matéria não existe e as propriedades dos corpos nada mais são do que ideias do nosso espírito. Reduziu pois o mundo a uma simples representação. Convenhamos que o que postulamos é bem mais simples e mais razoável...

            A Codificação Espírita, embora não se tenha demorado muito nessa questão, faz, contudo uma afirmativa que, em parte, empresta alento aos corações, apesar de não alcançar o cerne da dificuldade. Deus é a bondade infinita e não pode ter criado o Mal Metafisico. Allan Kardec, no seu “0 Que é o Espiritismo", pág. 1ó2, pergunta 129, sentencia categórico: "Deus não criou e Mal. Ele estabeleceu leis e estas são sempre boas, porque Ele é soberanamente bom.” Ao tratar do assunto em “A Gênese”, pág. 66, Kardec comenta: "Sendo Deus o princípio de todas as coisas e sendo todo sabedoria, todo bondade, todo justiça, tudo o que d'Ele procede há de participar dos seus atributos, porquanto o que é infinitamente sábio, justo e bom nada pode produzir que seja ininteligente, mau e injusto." Um pouco mais adiante, porém, Kardec admite; “Entretanto, o mal existe e tem uma causa.” Essa espécie de contradição de Kardec é muito natural, principalmente quando se considera que a especulação é absolutamente pessoal. Em “O Livro dos Espíritos” o problema recebe tratamento muito breve. Apenas dezoito questões são respondidas pelos Espíritos e, mesmo assim, tangenciando o âmago do problema, no que respeita propriamente à origem e natureza do Mal (nºs, 629 a 616). Uma pergunta mais objetiva e mais direta Kardec chegou

a apresentar aos Espíritos e consta da primeira edição de “O Livro dos Espíritos”: “Urna vez que tudo vem de Deus, os instintos maldosos não são acaso, também Sua Obra, e por eles o ser deve ficar responsável ?" Responderam os mentores: “O ser humano não é uma alimária. Deus lhe deixa a opção dos caminhos; tanto pior para ele se tomar o mau; A peregrinação será mais longa” (página 116. “Le Livre des Esprits”, Paris, 1857, apud “O Primeiro Livro dos Espíritos de Allan Kardec 1857", de Canuto de Abreu, edição de 1957). Note-se que a resposta dos Espíritos é tergiversante e incompleta. Não chega pois a esclarecer adequadamente e Kardec, possivelmente por essa mesma razão, retirou a questão a partir da segunda edição. Evidentemente o Codificador compreendera que o fato de o ser humano não ser uma alimária e de Deus lhe deixar a opção dos caminhos não explica absolutamente a criação ou a possibilidade desses caminhos. Diz, a seguir, ainda sem equacionar o problema, que se faz necessário ao homem conhecer o bem e o mal para distinguir um de outro. Em parte esse complemento é válido, mas o fundamental continuou de pé. Daí, sem dúvida, a cautela de Kardec, retirando a questão, talvez por determinação dos próprios Espíritos que lhe ditaram a Revelação, já que ainda era cedo para maiores explicações. Tal qual a questão da evolução do princípio espiritual através dos reinos mineral, vegetal, animal e humano, cujas ensinos, pelas mesmas circunstâncias, são dadas apenas de forma muito velada. (V. especialmente as perguntas 604 e 607 de “O Livro dos Espíritos”). Só mais tarde, através da “Revelação da Revelação”, obra complementar de J. B. Roustaing, os Espíritos explicaram mais clara e objetivamente o problema. Da mesma forma, somente agora, através de Emmanuel (“O Consolador”, pergunta nº 135, já citada), o Alto procura ser mais explícito e mais radical; “O mal... não pode existir para Deus.”

            Finalmente, para arrematar este trabalho, busquemos saber onde encontrar ou donde tirar a grande certeza da. Verdade que proclamamos. Dizemos que o Mal Metafísico é irreal e que apenas o Bem existe: que aquele “não-é” e somente este “é”. Qual o critério para esta Verdade? Desta feita é à sombra de Descartes que nos protegeremos. Seu Critério da verdade, adotado aliás pela maioria dos filósofos, serve para atestar nossa afirmativa: a Evidência. Pois não é evidente que Deus, infinitamente Perfeito e Bom, não pode gerar a imperfeição e o Mal Metafisico?

            Aqui termina este ensaio. Com mais vagar havemos de dar divulgação às suas bases científicas, sociológicas, matemáticas e econômicas. Por ora, meditemos apenas no que aí está e concordemos, pelo menos em princípio, que o Mal Metafisico, sendo tudo o que não é Deus não pode existir senão aparentemente ou como noção dum Antes evolutivo, inteiramente relativo e destinado a caminhar necessariamente para o Depois pleno e absoluto da Criação. O Mal Metafísico, até prova em contrário, há de ser um simples ponto matemático e nada mais. Há nele e para ele uma necessidade imperiosa de “não-ser”, a fim de que o Bem possa “ser” sozinho no Princípio das Coisas, dentro do perfeitíssimo sistema monístico (Doutrina filosófica segundo a qual o conjunto das coisas pode ser reduzido à unidade) do Universo, para glória de Deus, nosso Criador.


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